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lacan e clérambault, dois pesquisadores incansáveis da psicose.

 



 



Ana Paula Corrêa Sartori
apcsartori@uol.com.br


Resenha do livro:

Harari, Angelina Clínica lacaniana da psicose – de Clérambault à inconsistência do Outro.
Rio de Janeiro: Ed. Contra Capa, 2006, 92 p.

 

  

Neste livro, Angelina Harari nos apresenta sua dissertação de mestrado sobre a clínica lacaniana da psicose, realizada no Instituto de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo, sob a orientação do professor Luiz Carlos Nogueira. Além disso, ela presenteia o leitor com a tradução de três textos do psiquiatra francês Gaëtan Gatian de Clérambault: “Automatismo mental e cisão do eu”, “Definição de automatismo mental” e “Lembranças de um médico operado de catarata”.

A psicanálise não é sem relação com a psiquiatria clássica. Freud, mesmo sendo neurologista, teve como um de seus mestres o célebre psiquiatra francês Jean-Martin Charcot, no seu estágio no manicômio da Salpêtrière, quando entrou em contato com a clínica da histeria e das doenças mentais. Quanto a Lacan, essa relação é muito mais estreita, porque ele era psiquiatra, além de ter sido contemporâneo e aluno de um dos últimos grandes mestres da psiquiatria clássica: Clérambault, referência maior de Lacan na sua formação como psiquiatra, quem lhe imprimiu a marca estruturalista.

Angelina Harari tem como seu fio condutor uma abordagem não deficitária da psicose, tratando da relação da psiquiatria com a psicanálise lacaniana, e, principalmente, das conseqüências desta relação na prática lacaniana da psicose. Ela inicia seu livro falando da vida e da obra de Clérambault, do período de sua vida que vai de 1905 a 1934, quando ele clinicou na Enfermaria Especial da Prefeitura de Polícia de Paris, até seus últimos dias de vida. A clínica deste psiquiatra “se fundamenta na agudeza do olhar do observador” (p. 8).

O olhar clínico de Clérambault se verifica na sua maior contribuição à psiquiatria, como mostra Harari, que foi a elaboração da “síndrome do automatismo mental”. Nesta síndrome ele isola um grupo de fenômenos elementares e estruturais que apontam a entrada na psicose: “a) conteúdo essencialmente neutro (ao menos, em seu início); b) caráter não sensorial; c) função primária no decurso da psicose” (p. 14).

Mas há outra vertente do olhar de Clérambault, aquela do olhar do etnólogo que se interessou pelo drapeado árabe e dedicou-se a fotografá-lo, produzindo uma coleção de fotos sobre o tema, além de tentar classificar milhares de vestes drapeadas, redigindo um texto de 19 páginas. No entanto, uma tragédia marca a vida deste brilhante pesquisador: os problemas de visão, que se iniciaram quando ele estava com 55 anos, o que o levou à perda da visão e ao suicídio, aos 62 anos. Ele próprio descreve esse sofrimento, em um dos textos traduzidos por Harari neste livro, “Lembranças de um médico operado de catarata”:

“Minha meia-cegueira tornava fatigante meu próprio pensamento, pois quando estamos saudáveis, mesmo sonhando, apoiamo-nos no exterior seja para descansar de nosso pensamento, seja para reencontrá-lo. Privados dessa ajuda, nós devemos, com esforço e sem repouso, empurrar o movimento das idéias ou reencontrá-lo. O devaneio é muito menos propício na escuridão total do que diante de um cenário interior ou de uma paisagem. Jamais havia sentido essa dependência das coisas” (p. 75).

Após localizar com precisão a dívida da clínica lacaniana da psicose com Clérambault, Harari mostra a ruptura de Lacan com a psiquiatria e o começo de suas próprias contribuições a esta mesma clínica. Partindo do texto princeps do psicanalista sobre o tema, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957), e do conceito de foraclusão do Nome-do-Pai, ela segue até os anos de 1970, quando Lacan propõe “a foraclusão generalizada como modelo do núcleo real de todo sintoma” (p. 12).

A autora explica a ruptura de Lacan com a psiquiatria a partir do momento em que seu método clínico e mesmo suas apresentações de pacientes deixam “de contribuir para o avanço” (p. 24) daquela ciência, e passam a ter como objetivo servir à psicanálise. A contribuição de Lacan à psicanálise se daria fundamentalmente em três âmbitos: o do diagnóstico, o da relação do sujeito psicótico com o Outro e, na questão das suplências, quando a estrutura psicótica se torna um paradigma. Ou seja, “a inversão de perspectiva conduz, então, à pragmática, ao bom uso do sintoma” (p. 34).

Após especificar o que foi a clínica psiquiátrica de Clérambault e a clínica psicanalítica de Lacan com as psicoses, ela contrapõe as duas clínicas: a de Clérambault, como uma clínica do olhar, e a de Lacan, como uma clínica da escuta. Para tal, ela utiliza os “laudos” que Clérambault redigia e as apresentações de doentes feitas por Lacan, para saber “como é possível tratar o gozo por meio da linguagem, sem inserir o sujeito na norma fálica” (p. 10). Segundo Harari, a orientação lacaniana do tratamento da psicose se faz pela via dos “desdobramentos do conceito de gozo” (p. 45). Quer dizer, é preciso se debruçar sobre o desenvolvimento deste conceito, ao longo de toda a obra de Lacan para, assim, se tirar todas as conseqüências possíveis para o tratamento psicanalítico da psicose.

Contudo, Harari não oferece apenas o mapa lacaniano para se estudar e não recuar no trabalho clínico com a psicose, ela também nos brinda com a tradução de três textos fundamentais de Clérambault, já que dois deles mostram a elaboração e a definição da síndrome do automatismo mental.

O primeiro texto chama-se “Automatismo mental e cisão do eu”, de 1920. Nele, Clérambault relata três casos, nos quais pretende mostrar que o automatismo mental independe da atividade delirante-alucinatória. Ou seja, o sujeito primeiro apresenta os fenômenos elementares: ecos do pensamento, ideação e fala automáticas, fenômenos psicomotores, automatismos gráficos, dentre outros. O automatismo é um “terreno” propício ao desencadeamento psicótico, visto que nele predomina uma cisão do Eu. O delírio, por exemplo, seria uma maneira de o sujeito interpretar o automatismo. “O delírio propriamente dito é apenas a reação obrigatória de um intelecto que raciocina, freqüentemente inalterado, diante dos fenômenos emergentes de seu subconsciente, ou seja, do automatismo mental” (p. 56).

No segundo texto, “Definição de automatismo mental”, de 1924, Clérambault arremata suas considerações anteriores sobre o conceito, de uma forma ainda mais precisa, mostrando que o automatismo em si mesmo não carreia uma alteração de humor, nem mudança no caráter do sujeito. Quando isto ocorre, é em função da atividade delirante secundária.

Por fim, temos o texto “Lembranças de um médico operado de catarata”, onde ele narra sua saga na tentativa de cura de seu problema de visão. É um texto delicado, fino, assim como sua clínica. Ele fala de si mesmo, de suas angústias, medos e esperanças quanto à cirurgia a qual se submeteu na Espanha, com o Dr. Barraquer. Ali podemos entrar em contato com um Clérambault solitário e frágil, que se dizia, naquele momento, pronto para enfrentar a escuridão da semi-cegueira e a “companhia de si próprio”.

De fato, o livro de Angelina Harari retira do escuro aquele psicanalista que quer praticar a clínica lacaniana da psicose. Ela nos reenvia ao estudo. Se, por um lado, ela reafirma a declaração de Lacan de que não se deve recuar diante da psicose, por outro, ela nos alerta para o fato de que este trabalho não pode ser realizado por pessoas desavisadas quanto ao longo caminho que a formação de um psicanalista lacaniano exige. E mais, este caminho não se trilha sem mestres, sem tradição. E, quanto a ela, fica bastante claro que Clérambault, Freud, Lacan e Miller são seus pontos de referência, no que tange à psicose. E é em relação ao trabalho deles que ela pretende contribuir com algo de seu, a partir de seu trabalho de pesquisa.