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clínica do real: uma concepção da sessão analítica

 



Mirta Zbrun

Psicanalista

Diretora da Clac: Clínica lacaniana de atendimento e consulta

Membro da Escuela de Orientación Lacaniana (EOL)/Buenos Aires

Membro da EBP/AMP

Mestre em Teoria Psicanalítica pelo PPGTP/UFRJ

mirtazbrun@terra.com.br

Resumo:

O tema da sessão analítica, seu manejo, duração, o uso de seu espaço como depósito do resto semântico, sua consideração como uma formalização do real na experiência – mostra sua atualidade. O que é uma sessão analítica e como defini-la? Como reduzi-la à sua expressão mais simples e universalmente inteligível? Em que ela se distingue de uma consulta médica, por exemplo? Que caminhos percorrer para fundamentar e atualizar o debate em torno das questões que constituem a essência da sessão analítica?

Palavras chave: sessão analítica, real, desejo, interpretação, gozo.

 

 



the clinic of the real: an idea of the analytical session

Abstract:

The theme of the analytical session, its management, the length and the use of its space as a locus of semantic surplus, the understanding of its role as a form of organizing the real - all this is a proof of its modernity. What is an analytical session and how can we define it? How can we reduce it to its simplest and universal version? How does it differ from a medical appointment? How can we base the debate around the questions that constitute the essence of an analytical session?

Keywords: analytical session, real, interpretation, fruition.

 

O tema da sessão analítica, seu manejo, duração, o uso de seu espaço como depósito do resto semântico, sua consideração como uma formalização do real na experiência – mostra sua atualidade. Por outro lado, uma vez que se trata de um tema tão familiar aos analistas, é necessário dar-lhe o caráter do Unheimlich freudiano, o íntimo-estranho, para melhor nos aproximarmos dele.

A fórmula lacaniana “o paciente deseja encontrar a pessoa do analista na sessão e se o analista não corrige este efeito transferencial, cai numa sugestão grosseira” (Lacan, 1958, p. 597), nos serve de guia para introduzir a relação que pretendemos abordar entre o analista e a emergência do real na sessão analítica. O desdobramento da pessoa do analista será o atalho que tomaremos para tentar alcançar um bem dizer sobre o tema da sessão analítica. Essa via foi escolhida porque possibilita pensar a emergência do real na experiência. Na sessão, o analista pode fazer existir o real ao ocupar o lugar de objeto que lhe cabe no discurso analítico, situando-se como semblante, como suporte das fantasias do analisante. Essa posição se apóia na disjunção entre semblante e real, na qual a liberdade do analista se aliena no manejo da transferência.

Estudar a sessão analítica pressupõe levar em conta a lógica do tratamento, na qual o analista se situa como aquilo que faz insígnia para o sujeito, insígnia do real, a partir daquilo que foi revolucionário no movimento analítico: a introdução por Lacan do tempo lógico e da sessão curta. Hoje, quarenta anos mais tarde, isso não constitui problema mas uma orthedoxia, uma opinião verdadeira. J.-A. Miller (2001-2002) emprega este termo em seu curso O desencantamento da psicanálise, para diferenciar o uso que fazemos de determinados elementos no dispositivo analítico, sem que isso se constitua numa orthodoxia, a qual se sustenta no standard.

O que é uma sessão analítica e como defini-la? Como reduzi-la à sua expressão mais simples e universalmente inteligível? Em que ela se distingue de uma consulta médica, por exemplo? Que caminhos percorrer para fundamentar e atualizar o debate em torno das questões que constituem a essência da sessão analítica? Tomarei alguns ordenamentos quanto a estas questões.

Comecemos com o Lacan dos anos cinqüenta. O princípio da análise que situa o analista “em sua falta-a-ser” mais “do que em seu ser” é uma crítica frente à concepção da análise como “situação analítica”, a uma prática na qual os analistas não se mostravam afetados pela problemática do analisante. As respostas que eles davam eram ingênuas ou antifreudianas, incompatíveis com o discurso analítico, deixando de lado questões fundamentais. Enfrentando o desafio de avaliar a situação de estratificação e congelamento da experiência, Lacan propõe que “o analista está tanto menos seguro da sua ação quanto mais está interessado em seu ser” (1958, p. 592).

Destacamos duas questões importantes que levaram Lacan a fazer essa virada A primeira diz respeito ao analista: na sessão, ele não deve estar envolvido com seu ser mas com sua falta-a-ser, o que lhe dá liberdade para decidir sobre sua interpretação. “Eu decido sobre meu oráculo e o articulo a meu capricho, único amo em meu barco depois de Deus”,diz Lacan (1958, p. 594). A segunda questão se refere ao manejo da transferência, já que a liberdade do analista está fundamentalmente alienada pelo desdobramento que sofre sua pessoa. Mas, paradoxalmente, é justamente nisso, o fato de que o analista se fundamenta mais em sua falta-a-ser do que em seu ser (p. 597) que mora o segredo da análise. Essa afirmação ganha peso se a pensarmos no contexto da psicanálise em 1958, momento em que a Psicologia do ego estava no auge.

O analista na experiência é surpreendido ao se dar conta de que o paciente espera que esta relação seja como as outras, entre dois sujeitos. Buscar resolver o problema do manejo da transferência dizendo, simplesmente, que se trata de contratransferência, é ocultar a verdadeira natureza da transferência, porque não se pode raciocinar, criar as condições lógicas da análise a partir do que o analisante faz suportar de suas fantasias à pessoa do analista, como o faria um jurado ideal que raciocinaria a partir do que supõe sejam as intenções de seu adversário. A função do analista é fazer existir um real além da presença do analista, além do semblante.

Os analistas ditos pós-freudianos, aqueles da era da técnica, entendiam que a situação analítica era uma reeducação do paciente, como comenta Lacan nesse escrito. Se a interpretação é recebida pelo paciente como proveniente da pessoa que ele supõe que o analista é na transferência, este não pode aproveitar-se desse erro. Mas é possível que o analista faça existir o real quando o paciente o toma como suporte de suas fantasias, porque nesse caso ele está ancorado no sujeito suposto saber.

Analisemos agora a posição de Lacan na década dos sessenta. No grafo do desejo, em seu escrito “A subversão do sujeito e a dialética do desejo” (1960, p. 807-864), Lacan esclarece que o desejo se funda na retroação significante produzida pela pergunta, Che vuoi? Nesse texto a sessão analítica é referida ao sujeito do desejo e à sua demanda. A pulsão é homóloga a uma cadeia significante, que tem por efeito o gozo. “Todo o progresso do ensino de Lacan foi para que essas duas paralelas venham a se juntar: a do sentido e a do gozo” (Miller, 1994) O matema da pulsão: $àD põe em jogo essa parceria entre o sujeito do desejo e o circuito pulsional.

No piso inferior do grafo, a identificação ao pequeno outro (a-a’) corresponde à relação eu–outro. A “situação analítica” implicou uma prática que operava neste nível, o que ainda ocorre, hoje em dia, nas psicoterapias. A virada lacaniana se orienta para localizar a sessão analítica no nível superior do grafo, a partir da pergunta sobre o desejo do Outro e do gozo produzido pelo desenrolar da cadeia significante, ambos revelados na localização do desejo. Nesse desenrolar dos significantes, nessas articulações, a linguagem aparece como aparelho de gozo, em que o sujeito se revela a si próprio como objeto na fantasia. O grafo do desejo permite a Lacan definir a pulsão como “o que advêm da demanda quando o sujeito nela se apaga” (1960, p. 807-864).

Lacan concebe a contratransferência como sendo a resistência do analista, e assim o convocou a pagar com sua pessoa: “Haja o que houver, ele [o analista] a [sua pessoa] empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobre na transferência” (1958, p. 593). Ele ressalta também três pontos. O primeiro é que o analista tem que pagar com palavras, “se a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação”; o segundo é que o analista tem que pagar com sua pessoa e, finalmente, ele paga com o que há de essencial, em seu juízo mais íntimo, para intervir numa ação que vai “ao cerne do ser”, ou, como escreveu Freud, ao “núcleo do nosso ser”. Nesse sentido, a transferência negativa, a contratransferência como resistência do analista e a questão do ser do analista se relacionam com o desejo do analista.

O encontro com um analista na sessão analítica tem o status de tiquê, de encontro com um real, no qual um traço do analista vem ao lugar de um significante qualquer que inaugura a experiência analítica: o significante da transferência. Sua significação será da ordem do “sem sentido”. Encontro que é sempre desencontro, já que o automaton, a repetição do mesmo, traz consigo o diferente, convocando o analista a ter que comparecer e pagar sempre com sua pessoa.

A sessão analítica era definida na década de sessenta pelo exercício da função de corte no discurso e visava surpreender o sujeito no ponto em que o seu discurso tropeça. Ela era definida, portanto, como ruptura de um falso discurso. Hoje em dia, o fato de que o analista deva permanecer em silêncio para obter a realização do sujeito poderia ser considerado como uma regra da análise. O silêncio e o corte são regras que tornam possível a emergência do real enquanto funcionamento, na pulsão, de um objeto não especular, que pode ser delimitado pelo corte. Mais tarde, no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise2, Lacan fará do objeto nada o objeto da pulsão por excelência.

Desse modo, para que em cada sessão seja possível o trabalho de construção da fantasia, é necessário que exista “um analista” em sua falta-a-ser, que ele possa ir além da sugestão e da relação imaginária com o pequeno outro. As formulações que Lacan introduz, em seu ensino, a partir da década de setenta, criaram um novo campo de teorizações conhecido como o “último ensino de Lacan”. Aparecem nesse campo a teoria da pluralidade dos gozos, o deslocamento da clínica do Nome-do-Pai para a clínica do sinthoma, abrindo novas perspectivas para a sessão analítica a partir da concepção da linguagem como aparelho de gozo.

A linguagem agora tem, à diferença da doutrina do significante, não só um efeito de significação mas também de gozo, impondo um limite ao sentido. Esse efeito de gozo está para além do principio de prazer e impõe ao sujeito o retorno do mesmo signo, uma insistência da letra. A letra é entendida como signo considerado em sua materialidade, como objeto, diferente portanto da cadeia significante. Observa-se uma mudança na teoria da linguagem e do inconsciente, que é prazer, brincando e gozando com suas substituições, seus lapsos. Daí a fórmula lacaniana, por vezes incompreendida, de que na associação livre o sujeito goza de seu inconsciente. A sessão analítica é a oportunidade para tentar responder à questão sobre a possibilidade ou não de mudança do modo de gozo daquele ser falante.

 

 

Notas

1.  O termo “situação analítica” é utilizado para definir a sessão como uma relação entre dois sujeitos (Lacan, 1958, p. 592).

2.  O gozo é postulado por Lacan no final do escrito “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, porém não é desenvolvido nessa época (Lacan, 1964, p. 176). Apenas em “Subversão do sujeito e dialética do desejo”, apresentado no Congresso realizado em Royaumont em 19 a 23 de setembro de 1960 sob o nome de “Colóquios filosóficos internacionais: a Dialética”.Esta intervenção é muito importante para o entendimento dessas novas formulações.

 

 

Referências bibliográficas

Lacan, J. (1958) “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Em: Escritos. Op. cit; p. 592

_______. (1960) “A subversão do sujeito e a dialética do desejo”. In: Escritos, Op. Cit., p. 807-864.

_______.(1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

Miller, J.-A. (2001-2002) Le desenchantement de la psychanlyse. Curso ministrado no âmbito do Departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII. Aula de 14 de novembro de 2001. Inédito.

_______. (1994). Lo real y el sentido. Buenos Aires: Colección Diva, 2003.