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A desinserção do campo da subjetividade na experiência de trabalho
de profissionais de saúde

Lúcia Helena Carvalho dos Santos Cunha

Psicanalista
Doutoranda em teoria psicanalítica pela UFRJ
Mestre em ciências, área de saúde mental, pela ENSP/FIOCRUZ/RJ
Professora Adjunta da UNIFESO, no Hospital das Clínicas de Teresópolis/RJ
Membro do Instituto Sephora de ensino e pesquisa de orientação lacaniana/ISEPOL
e-mail: luciahelenacunha@gmail.com

Resumo

Considerando o sofrimento psíquico existente no campo de trabalho do profissional de saúde, a autora considera que as manifestações clínicas, descritas na literatura sobre a síndrome de burnout, indicam a desinserção da subjetividade e do inconsciente presente no discurso médico, uma réplica do discurso do mestre; e apresenta a pesquisa psicanalítica em andamento num hospital universitário como sua estratégia para examinar as possibilidades de introduzir, neste espaço de trabalho, o discurso psicanalítico como o avesso do discurso do mestre, dominante na ordem médica. Esse artigo visa propor uma leitura psicanalítica inédita desse sintoma contemporâneo, reinserindo a consideração pelo sujeito do inconsciente no campo de trabalho desse profissional.

Palavras-chave: psicanálise, desinserção, subjetividade, vida profissional, discurso médico, sintoma psicanalítico.

 

The consequences of denying unconscious subjectivity in the work experience of health professionals

The author discusses the psychic suffering  caused by work, and described by literature as the burnout found often among health professionals; and supposes that the lack of consideration for unconscious subjectivity is a cause for this illness, due to the way in which medical order deals with this subject, very similar to the master’s speech. The author presents a research in progress at a university hospital, as a method to introduce a psychoanalytic speech, thet is the opposite of the master’s speech, predominant in the medical universe. This paper aims to present a psychoanalytic view that has never before been seen of this contemporary sympthom,  re-inserting the concern for the unconscious subject in the work field of the health professional.

Key words: psychoanalysis, subjectivity, work, burnout, medical order, psychoanalytic approach.

 

Les conséquences du déni de la subjectivité insonsciente dans l’expérience de travail des professionnels de la santé

Prenant en compte la souffrance psychique qui existe dans le champ de travail du professionnel de la santé, l’auteur considère que les manifestations cliniques décrites dans la litérature au sujet du syndrome de burnout indiquent la désinsertion de la subjectivité et de l’inconscient présente dans le discours médical, une réplique du discours du maître ; et présente la recherche psychanalytique en cours dans un hopital universitaire comme étant sa stratégie pour examiner les possibilités d’introduire dans cet espace de travail le discours psychanalytique comme étant à l’opposé du discours du maître qui domine dans l’ordre médical. Cet article propose une lecture psychanalytique inédite de ce sympthôme contemporain, en réinsérant  la considération pour le sujet de l’inconscient dans le champ de travail de ce professionnel.

Mot clés: psychanalyse, subjectivité, travail, syndrome, ordre médical, approche psychanalytique.

 



I - Introdução

Amar e trabalhar foram considerados por Freud como dois eixos básicos e necessários à satisfação subjetiva ao longo da vida; dificuldades ou impedimentos que se manifestam nessas atividades produzem sofrimento psíquico, justificando a escuta psicanalítica do arranjo sintomático em jogo nestas situações. Através dessa escuta, abre-se a possibilidade de se identificar a estrutura subjetiva e as modalidades de laço social que se articulam no inconsciente, através de sua produção sintomática, manifesta nas relações amorosas e/ou profissionais dos indivíduos.

O mundo contemporâneo, entretanto, desconsidera a existência do sujeito do inconsciente. Caracterizado pelo ritmo acelerado de vida, imediatismo de resultados, oferta contínua e generalizada de objetos para o rápido consumo de uma sociedade impregnada pelos valores capitalistas, o mundo atual se volta para a produção de gadgets e para o incremento da tecnologia, impulsionando o progresso da ciência em detrimento da investigação da alma humana.

No campo profissional, a inserção dos sujeitos no mercado de trabalho se faz em torno das expectativas de ganho salarial, por um lado, e de elevado nível de produtividade, por outro, havendo pouco espaço e investimento na pesquisa das condições de realização e satisfação subjetiva dos trabalhadores.

Com alguma freqüência, a mídia vem veiculando notícias do aumento de suicídios de funcionários de algumas grandes empresas, como nos recentes casos de uma estatal francesa e de uma multinacional chinesa. Esses fatos, entre outros, denunciam a existência de intenso sofrimento psíquico nas relações de trabalho e vêm chamando a atenção de pesquisadores de diferentes campos de atuação, notadamente entre os que se voltam para as ciências humanas e para a saúde do trabalhador. No campo psicanalítico, entretanto, esse tema não tem sido abordado, o que justifica uma investigação clínica da psicanálise aplicada ao sofrimento subjetivo no campo profissional.

O objetivo deste artigo é examinar os efeitos da desconsideração ao sofrimento subjetivo existente de maneira acentuada na experiência profissional no campo da saúde, partindo da premissa que o sintoma de adoecimento profissional conhecido como síndrome de burnout, ou do esgotamento profissional pode ser considerado como indicativo da desinserção do campo da subjetividade nas experiências de trabalho contemporâneas.

Considerada como um transtorno mental e de comportamento associado ao trabalho, o burnout já é reconhecido no Brasil pelo Ministério do Trabalho (Decreto n° 3048, de 1999) e está presente em publicações, teses e dissertações cadastradas no banco da Capes e no CNPq, o que indica sua presença como objeto de estudo em nosso país. Convém salientar que a referida síndrome é considerada como resultante das dinâmicas entre organização e trabalhador, e não como uma manifestação subjetiva, ou seja, um “transtorno de personalidade” (Carlotto et Câmara, 2008; Hallak et al, 2007; Neiva et al, 2006; Kompier et Kristensen, 2006).

Sua descrição e abordagem obedecem à lógica do discurso médico, que a maneira do discurso do mestre, exclui a consideração da subjetividade do paciente e também a do próprio médico, que deve se submeter ao discurso instaurado pela moderna medicina científica (Clavreuil, 1983 p. 224).

A noção de sintoma em psicanálise, entretanto, é bastante diferente da noção de sintoma em medicina. Desde Freud, o sintoma é lido como uma produção subjetiva, como uma manifestação do inconsciente (Freud,1925 p.87). Miller destaca que, com Lacan, a noção de sintoma se torna equivalente à de discurso, como um aparelho que localiza o sujeito e seu gozo em meio aos significantes que presidem o seu laço social (Miller, 1998 p. 16). No campo médico, entretanto, o sintoma é tomado como um sinal, um signo da doença, como a forma visível da doença (Foucault,1994 p.101) e não inclui o sujeito, que fica exilado do discurso médico.

Partirei da pesquisa que envolve a investigação do espaço profissional da instituição hospitalar enquanto meio de trabalho para profissionais de saúde. O desafio dessa pesquisa consiste em introduzir nessa instituição médica o discurso analítico, tal como proposto por Lacan, atravessando assim o discurso médico, predominante no campo hospitalar.

II – Do discurso médico ao discurso analítico:

Acompanhamos Jean Clavreuil (1983) em sua afirmação que “não existe relação médico-paciente” uma vez que o médico só fala enquanto lugar-tenente da ciência médica, e o paciente é considerado apenas como um corpo doente, objeto de intervenções e cuidados, totalmente submetido às determinações desse discurso.

Nos parágrafos abaixo, faço um exercício de articular o ensino de Lacan, formulado a partir de sua escrita sobre os discursos, à minha observação clínica obtida no campo de pesquisa. Começarei examinando o seminário em que Lacan apresenta sua formulação sobre os quatro discursos, O avesso da psicanálise, recortando passagens que orientam esse exercício.

II.1 -Observações a partir de O Seminário, livro 17:

Podemos, com Clavreuil, reconhecer que a ordem médica funciona conforme o discurso do mestre, “esse discurso que em sua essência dá primazia a tudo o que está no princípio”(Lacan, 1992, p. 76), sendo a referência de um discurso, “aquilo que ele confessa querer dominar, querer amestrar” (Lacan, 1992, p. 65). Acompanhamos Lacan em sua formalização do discurso como sendo “um aparelho, a articulação significante, cuja mera presença domina e governa tudo o que eventualmente pode surgir de palavras” (Ibid,p. 158). Seguimos sua indicação para procurar a estrutura significante em funcionamento na instituição médica hospitalar, estrutura determinante dos laços sociais que se estabelecem nesse campo de trabalho profissional. “O produto do discurso do mestre é a constituição de um objeto: a doença, para o discurso médico” (Clavreuil, p. 170).

O objeto surge enquanto um resultado do discurso do mestre e, no discurso médico, é a doença que é localizada a partir do saber médico (S2 sobre a, no quadrante à direita na formulação deste discurso), estando daí excluído o sujeito portador dessa doença ($ no lugar da verdade, recalcada na estrutura desse discurso: S1 sobre $, no quadrante à esquerda). Lemos em Lacan:

“Quaisquer que sejam os sinais, os significantes-mestres que vêm se colocar no lugar do agente, a produção não tem, em qualquer caso, relação alguma com a verdade. [...] Entre a existência de um mestre e a relação de uma produção com a verdade, não há como sair disso.” (Lacan, 1992, p.166)





Não há, no discurso do mestre, acesso ao que está no lugar da verdade (o sujeito dividido), a partir do lugar do produto. Há um obstáculo que impede tal passagem: a impotência da verdade. A verdade, segundo Lacan, deve ser pensada como disjunta em relação ao real, ao que é impossível, à castração - “[...] o que a verdade esconde, e que se chama castração” (Ibid,p.49).

A verdade desse discurso esconde a castração do mestre. E, no discurso médico, esconde a impossibilidade da ordem médica comandar a produção de um saber absoluto sobre a doença, excluindo dela seu sujeito. A verdade oculta do discurso médico está na castração do sujeito que sustenta o discurso: o médico. Castração velada pela estrutura do discurso.

É no discurso do mestre que o sujeito dividido aparece no lugar da verdade enquanto oculto, comprimido, mesmo que, enquanto verdade, aponte para o que não pode ser esquecido, como algo que “precisa ser desdobrado para ficar legível” (Lacan, 1992, p. 74). Nele, o significante mestre no lugar de agente convoca o saber para produzir um objeto de gozo, que permanece impotente em se articular com o sujeito excluído, indicando um obstáculo à formulação do fantasma.

Assim, a impotência da verdade implica nesse fracasso em conjugar, no discurso do mestre, o mais-de-gozar ao sujeito; o produto do discurso à sua verdade. No discurso médico, não há lugar para o inconsciente, que se manifesta entre outras formas, no fantasma, na equação lacaniana que articula o sujeito ao objeto a. Esta transparece na linha de baixo dessa escrita, mas encontra o obstáculo desse fracasso.

A relação fantasmática entre o sujeito dividido e o objeto a, neste discurso, recebe a marca da impotência; enquanto que a relação de estrutura entre os significantes S1 e S2 aponta para o real da estrutura, que porta um impossível. Acompanhamos novamente as indicações de Lacan:

“[...] a fórmula definidora do discurso do mestre tem seu interesse por mostrar que ele é o único a tornar impossível essa articulação que apontamos em outro lugar como a fantasia, na medida em que é a relação do a com a divisão do sujeito. Em seu ponto de partida fundamental, o discurso do mestre exclui a fantasia. E é isso que faz dele, em seu fundamento, totalmente cego” (Lacan,1992,p.101).

 






A relação do mestre com o real é impossível. Governar, educar, analisar, são apontados por Freud como sendo da ordem da impossibilidade; donde o mestre S1 é, neste discurso, o agente da função impossível de submeter S2, o saber que se põe a trabalhar para fazer surgir um produto. O agente, segundo Lacan, “não é forçosamente aquele que faz, mas aquele a quem se faz agir” (Lacan, 1992, p. 161).

O discurso do mestre indica que S1 no lugar do agente é levado a agir, a se dirigir a S2, que se põe a trabalhar. Referindo-se à relação do mestre com o escravo, Lacan comenta que é impossível que haja um mestre que faça seu mundo funcionar (Ibid, p. 166): “Ele dá um sinal, o significante-mestre, e todo mundo corre”. Acionado pelos significantes mestres, o saber médico funciona, mas como escravo alienado; o saber acumulado pela ciência médica se restringe à doença, nada informando sobre a relação médico-paciente. No andar superior dos discursos, uma relação que Lacan define como sendo sempre da ordem do impossível.

O discurso médico, impondo enquanto impossível, uma autoridade absoluta ao saber científico, a quem se dirige, o faz produzir seu objeto, o paciente enquanto corpo a ser tratado, destituído de sua subjetividade. O laço social construído no discurso médico evidencia a exclusão da consideração à subjetividade, seja do médico, seja do paciente. O propósito desse discurso é fazer o saber científico trabalhar para obter a satisfação da cura, de agir sobre o corpo doente, corpo em posição de objeto de cuidados.

II.2 -Observações a partir do seminário sobre o ato analítico:

Fazer aparecer o sujeito antes elidido pelo discurso médico, a partir da causa do seu desejo; essa é a função do ato analítico, examinado na leitura do capítulo 2 do Seminário XV (22 de novembro de 1967).

O ato interpretativo, que ilumina a formação inconsciente e o gozo em jogo, põe em cena o desejo do analista. Ao situá-lo enquanto objeto a, no lugar de agente do discurso psicanalítico, Lacan considera que o psicanalista não opera enquanto sujeito: “O psicanalista, na psicanálise, não é sujeito, e por situar seu ato pela topologia ideal do objeto a, deduz-se que é ao não pensar que ele opera” (Lacan, 2003, p. 373).

Resíduo da operação que um dia destituiu seu próprio analista da sua suposição de saber, o analista opera a partir do que lhe adveio em sua própria analise, o objeto causa de desejo, fazendo aparecer o desejo do analista. “O psicanalista se faz do objeto a. Ele se faz, entenda-se: faz-se produzir, do objeto a: com o objeto a” (Lacan, 2003, p. 375)

Em seu seminário de 1967-68, ainda inédito, Lacan examina o estatuto e a estrutura do ato analítico indicando que o analista é aquele que, ao final de sua análise, viveu a queda do suposto saber necessária ao advento do objeto a, podendo suportar não ser “nada mais do que este resto. Esse resto da coisa sabida que se chama o objeto ‘a’”. (Lacan, aula de 10/01/1967). É deste lugar que ele opera como agente do discurso analítico, apagando sob a barra deste discurso o saber em lugar de verdade (S2); e se dirigindo ao sujeito dividido, que o discurso fará surgir o S1, significante que determina o sujeito.O produto do discurso analítico é a extração do significante mestre do sujeito, trabalho que, segundo Lacan, induz à castração. “O que afirmo, o que hoje vou anunciar de novo, é que o significante-mestre, ao ser emitido na direção dos meios do gozo que são aquilo que se chama o saber, não só induz, mas determina a castração”  (LACAN, 1992, p. 83). E ainda: “A castração é a operação real introduzida pela ação do significante...” (Ibid., p. 121).

Trata-se, portanto, de colocar em funcionamento o discurso analítico para fazer surgir a dimensão da castração, através dos significantes mestres assim produzidos: desafio a ser enfrentado no campo da psicanálise aplicada, objeto de minha pesquisa.

III - Observações retiradas do campo de pesquisa: a escuta psicanalítica no hospital geral

A psicanálise aplicada no hospital geral, voltada para os profissionais de saúde, está por se construir: não há uma prática estabelecida que oriente essa experiência.

Esse campo vazio de referências, entretanto, é um campo conhecido da psicanálise, na medida em que indica a presença do real, bussola do psicanalista. Indica também a estrutura que sustenta o discurso do analista, que faz com que palavras sejam enunciadas ali onde o real do mal-estar produz o sintoma.

Fazer funcionar o discurso analítico no hospital geral exige a presença de um analista com sua formação teórica, clínica e analítica (tripé da análise pessoal, supervisão e estudo), como em toda e qualquer prática psicanalítica. E com a orientação lacaniana, a escuta analítica orientada para o real é o instrumento de trabalho.

Apresentarei agora a experiência de pesquisa que está em andamento num hospital universitário da região serrana, que se dispôs a desenvolver um programa de acompanhamento à saúde do trabalhador dessa instituição.

De uma maneira mais geral, o referido programa se propõe a criar novos espaços de fala, abertos aos funcionários do hospital em seus diferentes níveis que se interessem em realizar uma atividade de reflexão sobre a maneira como são enfrentados os impasses e dilemas laborais causadores de mal-estar. Como principal atividade, este programa promove a realização de encontros grupais com funcionários de diferentes setores hospitalares, que se declarem interessados em participar dos encontros que se realizam uma vez por semana, dentro do espaço e do horário de trabalho.

Os sujeitos abordam, nestes momentos em que surge uma oportunidade incomum para sua fala, as dificuldades enfrentadas no cotidiano hospitalar, encontrando nos espaços abertos pelo programa uma possibilidade de nomearem aquilo que lhes surge como o impossível a ser superado. Nos encontros grupais, abordam as situações profissionais que os afligem, seja do ponto de vista organizacional, seja no aspecto do relacionamento interpessoal, examinando situações setoriais e/ou institucionais que são vivenciados como fonte de desamparo.

A psicanalista acompanha, numa pesquisa exploratória, uma vez por semana, as atividades da clínica médica do hospital; e também participa de uma atividade acadêmica, periódica, proposta pelo professor médico que é responsável pelo setor e pela avaliação dos estudantes de medicina que realizam ali parte de seu internato.

Será relatado aqui um fragmento dessa atividade acadêmica, que nos servirá de referência para uma leitura psicanalítica dos aspectos problematizados pelos estudantes como relacionados ao mal-estar na atividade profissional, verificando a possibilidade de extrair, dessa leitura, condições para a aplicação do discurso psicanalítico à prática profissional na área hospitalar.

III.1 - Dramatizações e conversações sobre a ética médica

Ao investigar o sofrimento psíquico de uma coletividade de sujeitos em sua relação de trabalho neste hospital universitário, verifico que médicos em formação endereçam a seus mestres algumas questões que os angustiam, por se associarem a impasses que surgem diante da sexualidade e da morte.

São dilemas que afetam o objeto que causa o desejo dos profissionais de saúde de um modo geral: a manutenção e o prolongamento da vida, a superação da doença, razão de ser do funcionamento hospitalar.

A presença da psicanalista nestas conversações de trabalho impele à produção de uma palavra pela qual cada sujeito se responsabilize, sendo ainda uma experiência pouco usual neste ambiente de trabalho. Há de se considerar as características da própria ordem médica, que silencia as manifestações de subjetividade tanto de pacientes quanto de seus médicos e enfermeiros. A antiga tendência desses funcionários, a abdicar da realização de encontros e reuniões para examinar as fontes do mal-estar no trabalho, reflete essa norma que não costuma ser questionada no meio médico.

O convite para participar, como comentadora, de uma atividade acadêmica, que reúne internos de medicina com seus professores e com os demais membros da equipe de trabalho (chefes de enfermagem do setor e demais médicos da equipe), trouxe uma nova oportunidade de investigar esta realidade.

Situações desencadeadoras de sofrimento psíquico foram examinadas à luz dos depoimentos produzidos pelos estudantes que encenaram, através da estratégia pedagógica da dramatização, algumas situações polêmicas, comuns à experiência da vida profissional dos médicos.

O objetivo acadêmico, de discutir a ética médica diante de situações geradoras de conflito e angústia para o profissional de saúde, cria então a oportunidade para uma escuta analítica, e uma possibilidade ímpar de aplicar o dispositivo da interpretação a uma cena onde médicos em formação falam, em associação livre, dos pensamentos que comandam suas ações, bem como dos obstáculos que encontram à realização de seu desejo profissional.

Orientados pelo professor a encenarem uma situação profissional onde a tomada de decisão dependeria da posição subjetiva de cada um deles, constato que os estudantes que passam pelo internato, sucessivamente, reproduzem quadros dramáticos que repetem algumas situações peculiares, tais como o pedido de jovens grávidas para realização de aborto; o risco de morte provocado pela proibição religiosa, expressa por familiares que são Testemunhas de Jeová, de promover transfusão de sangue; e pedidos de familiares para a realização da eutanásia em parentes com fase terminal de doença.

Invariavelmente, os estudantes escolhem debater situações onde se percebem confrontados com interdições provenientes do discurso jurídico e religioso, e diante de situações onde a sexualidade ou a morte se apresentam.

Na primeira dramatização que será relatada, os estudantes apresentaram um esquete em que uma jovem de dezessete anos procurava o médico com um pedido de aborto, sem o conhecimento da família, alegando ter sido estuprada numa festa, onde perdera completamente a consciência por abuso de drogas e álcool, o que a impedia de apontar quem seria o pai da criança. Alegava não poder recorrer à família bastante religiosa e, portanto, totalmente contrária à prática do aborto, por já estar firmemente decidida a se submeter a tal procedimento; e ainda avisava ao médico, responsabilizando-o pelas consequências, que estava disposta a recorrer a uma clínica clandestina se o aborto não fosse ali realizado, mesmo sabendo do risco de vida que correria neste caso.

A discussão da dramatização contou com a participação da maioria dos internos. O grupo discutiu os aspectos jurídicos da questão, propôs estratégias para driblar a proibição legal, preocupou-se com o risco de vida da adolescente, caso esta recorresse à alternativa clandestina. Perguntou-se pela responsabilidade do médico, e pelos riscos de complicações se ele assumisse o aborto sem a autorização dos pais.

Entretanto, a hipótese de uma convocação dos pais, assim como o exame de algumas possibilidades como a de, por exemplo, entregar a criança para adoção, ou para ser cuidada pelas avós, não foram sequer considerados pelos estudantes.

Identificados à jovem, sonhou-se em poder violar os limites da profissão, transgredindo a lei e ocupando o lugar fantasmático da exceção à regra, embora um pequeno grupo tenha censurado essa posição. O sonho evidenciado é o de intervir sem nenhuma interdição, posse absoluta do corpo do outro, se assenhorear da vida e da morte.

Outras cenas, dramatizadas por diferentes grupos de estudantes, apresentam situações semelhantes, em que o médico se vê confrontado com interdições de natureza religiosa que tolhem sua liberdade de ação. Repetidamente, diferentes grupos de internos escolhem representar o impasse gerado pela recusa familiar à transfusão de sangue de pacientes que são Testemunhas de Jeová, mesmo quando tal impedimento leva o paciente à morte, como muitas vezes acontece.

Nessas situações, em especial, a crença religiosa se sobressai como uma obstrução à intervenção profissional do médico, gerada pela subjetividade do paciente, aspecto inadmissível para esmagadora maioria dos médicos que se confronta com este impasse. Casos verídicos ocorridos, em que os médicos mentiram aos familiares dizendo estar administrando soros avermelhados ao invés do sangue, foram comentados nas conversações que se seguiram à dramatização de cada cena, denunciando a recusa à limitação do exercício profissional neste caso.

Da mesma forma, relatos de julgamentos éticos em que médicos foram cassados ou absolvidos pelos comitês de ética, ou mesmo pelos conselhos regional e federal de medicina, fazem parte dos comentários que encerram os debates sobre o tema. Estupefatos, os profissionais de defrontam com situações onde sua determinação profissional esbarra em impedimentos oriundos de uma estranha liberdade de escolha de seus clientes, que questionam seu direito à ação.

III.2 -A interpretação

O fantasma é uma tela que protege o sujeito do encontro com a castração alimentando fantasias de onipotência, onividência, onipresença; e se manifesta nesse grupo através da fantasia de uma permissão ilimitada para intervir sobre o corpo do outro, trazendo assim a indicação do gozo em jogo.

A imposição ética acorda do sonho o médico e a paciente, e os traz para a realidade onde o imperativo real se faz presente, quer através da interdição da lei ou pela proibição religiosa, indicando a existência da castração, do real limite para a atuação profissional.

Este limite se apresenta igualmente nas dramatizações em que os estudantes se deparam com solicitações familiares para realizarem a eutanásia. Em um dos grupos, a cena trazida ao debate apresentava a mãe de um jovem paciente, acometido por uma doença fatal e em estado terminal, que entregava ao médico uma carta escrita pelo punho do paciente quando ainda lúcido, solicitando o desligamento das máquinas que o manteriam vivo, naquela circunstancia, prolongando artificialmente sua existência.

Diante da hipótese da manifestação de uma vontade subjetiva que contraria o desejo profissional do médico em manter a vida a todo custo, a plateia de estudantes se divide entre a determinação profissional de preservar a vida e contrariar o pedido do paciente e seus familiares; ou sucumbir ao que se apresenta como o impensável, mesmo quando inevitável: a morte de seu paciente. Invariavelmente, algum participante irá supor a mudança na escolha final do paciente naquele instante onde a comunicação não é mais possível, tentado a impor seu desejo profissional ao que foi escrito pelo paciente.

Mesmo quando autorizado legalmente a não realizar novos procedimentos que prolonguem inutilmente a vida já condenada, a ordem médica, representada pelo pensamento dos profissionais em formação, se divide entre recusar a perda do paciente ou se submeter ao aspecto implacável da morte.

O código de ética médica orienta e regula o ato médico, levando em consideração as injunções culturais e a ordem jurídica. O respeito à lei e à ordem social submete o profissional a interdições que muitas vezes contrariam seu desejo profissional e barram um gozo dele mesmo desconhecido, presente no fantasma de constituir uma exceção aos limites que acossam os seres humanos.

A interpretação dessa recusa do real da castração aparece aqui como uma intervenção possível do psicanalista, que pode operar em um hospital geral servindo-se de sua formação para produzir um ato analítico equivalente ao que se dá numa sessão de psicanálise pura. O ato interpretativo produz o avessamento do discurso médico, colocando em cena o sujeito do inconsciente e sua fantasia.

IV – Observações finais

Talvez possamos tomar essas cenas, dramatizadas pelos estudantes, como pano de fundo para examinar outras situações protagonizadas pelos profissionais de saúde que trabalham no hospital, pesquisando o real em jogo, o gozo sintomático que se aninha nos momentos de impasse, produtores do mal estar laboral dos médicos na instituição hospitalar.

A orientação para o real indicada por Lacan aos psicanalistas se impõe como o tratamento de situações de vida, tanto no enquadramento clássico da chamada psicanálise pura quanto nas situações onde esta é aplicada a diferentes configurações, como no caso do sofrimento profissional existente em um hospital geral.

O desafio assumido pela pesquisa em andamento, de examinar as possibilidades de introduzir na instituição médica o discurso analítico e, assim, avessar o discurso dominante no campo hospitalar, encontrou na experiência de dramatização realizada pelos estudantes de medicina uma oportunidade ímpar para se aproximar de tal objetivo.

A formação médica prepara os estudantes para a intervenção clínica, mas não abre espaços suficientes para que a subjetividade dos pacientes e dos profissionais seja considerada. A escuta psicanalítica recupera essa dimensão, e ilumina a existência do fantasma e do inconsciente, foracluídos do discurso médico.

Com o discurso analítico, a estrutura do discurso do mestre é avessada. O lugar dominante, agente do discurso, é ocupado pelo objeto causa do desejo, que ao se dirigir ao sujeito dividido coloca em primeiro plano o mundo da fantasia inconsciente, operado pelo gozo. Lacan destaca a dimensão da entropia em jogo, que faz da perda de gozo produzida pela linguagem um mais-de-gozar a recuperar. Fomentar a fala dos sujeitos envolvidos na situação profissional permite a produção dos significantes mestres que os determinam, colocando em cena o real da castração.

O estudo dos seminários de Lacan sobre O avesso da psicanálise e sobre O ato psicanalítico favoreceu o avanço da pesquisa, evidenciando que não há diferença entre a psicanálise pura e a psicanálise aplicada, uma vez que ambas pertencem à psicanálise verdadeira, que “tem seu fundamento na relação do homem com a fala” (Lacan, 2003, p. 173).

O burnout- tomado como um novo sintoma que se manifesta em tempos de excesso de consumo, de trabalho, de liberdade individual e de apostas na superação dos limites humanas - encontra, na fórmula lacaniana do fantasma, a leitura psicanalítica que ilumina a presença, no espaço hospitalar, do sujeito foracluído pela ciência médica e seu mundo inconsciente.

O gozo fantasmático de ocupar o lugar de exceção e se assenhorear do corpo do paciente, interditado pela ética médica, transparece nas condutas que ultrapassam esse umbral e colidem com outros discursos, como o religioso e o jurídico, ou mesmo com a escassez de recursos técnicos e financeiros que exaurem o corpo clínico profissional do hospital até o nível do esgotamento mental de alguns que recusam o impossível do real e o sintomatizam através da síndrome do burnout.

O sofrimento subjetivo, que é lido pela psicanálise sob a forma desse gozo fantasmático presente no campo profissional, pode ser então reinserido na consideração clínica através de sua referência ao campo do inconsciente, que situa o burnout como uma manifestação subjetiva e não mais como um sintoma médico.

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Citacão/Citation: CUNHA, L.H.C.S. A desinserção do campo da subjetividade na experiência de trabalho de profissionais de saúde. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
24/05/2010 / 05/24/2010.

Aceito/Accepted:
15/08/2010 / 08/15/2010.

Copyright:
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