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 A PSICANÁLISE E O PESSOAL DA MEDICINA1

  
 


François Leguil
Mestrado pelo Departamento de Psicanálise de Paris VIII
Psiquiatra no Hospital de Saint-Anne
AME da École de la Cause Freudienne
Psicanalista, membro da Associação Mundial de Psicanálise
fleguil@wanadoo.fr

 

 Resumo

Antes da invenção da psicanálise, Freud já advertia seus colegas do preço que iria custar o abandono clinico e epistemológico da consideração pelos poderes da palavra. Embora ele tenha tratado relativamente pouco da medicina propriamente, endereçou-se muitas vezes aos médicos. Poderíamos talvez até demonstrar que o verdadeiro médico para Freud é o psicanalista.

Palavras-chave: psicanálise, medicina, psicopatologia, ciência e terapêutica

 

 




 PSYCHOANALYSIS AND THE MEDICAL SCIENCE PEOPLE
   


       Abstract

Prior to the invention of psychoanalysis, Freud had warned his colleagues about the cost of clinical and epistemological relinquishment of the consideration on the powers of words. Even though he had dealt relatively little with medical science itself, he often addressed doctors. We could even demonstrate that the psychoanalyst is the true doctor according to Freud.

Key words: psychoanalysis, medical science, psychopathology, science and therapeutics

 

 

Antes da invenção da psicanálise, antes do “Estudos sobre a histeria” (1893-1895), Freud advertia seus colegas do preço que ia custar o abandono clinico e epistemológico do cuidado com os poderes da palavra. Pode parecer que ao longo de sua obra - preocupado com o desenvolvimento de uma disciplina que não existia sobre a terra antes que ele a forjasse - que ele não se tenha se debruçado, suficientemente, sobre o futuro da medicina, com exceção de um ou dois de seus textos célebres, para os quais nos voltamos eventualmente.

As coisas parecem ter se modificado desde que nos apercebemos que, se ele não tratou efetivamente da medicina enquanto tal, Freud endereçou-se freqüentemente aos médicos. Poderíamos demonstrá-lo, sustentando que o verdadeiro médico para Freud era... um psicanalista. Assim, a cada vez que sob sua pena surge a palavra médico, podemos identificar todos aqueles que ocupam um lugar ao qual se endereçam as demandas de melhorar ou de sofrer menos. Falar de pessoal da medicina como de “pessoal de Dublin” é restituir este endereçamento de Freud; endereçamento que reencontramos em Lacan – que, em seu ensino, também pouco falou de medicina enquanto tal - mas, que constantemente endereçou-se àqueles que a prática analítica, mais além do seu campo específico, questiona. Com respeito ao pessoal da medicina, uma outra consideração – que aproxima Freud e Lacan - merece ser feita, pois, um e outro, curiosamente, deram testemunho de uma inflexão quase idêntica de suas respectivas posições face à modificação do império incontestado das exigências que a ciência criava em sua aproximação com as doenças do homem.

Podemos partir de nossa atualidade mais recente para examinar as razões desta inflexão comum. Cito um artigo do jornal vespertino francês, Le Monde, datado de 17 de março de 2007. Este artigo informa que a Igreja pensa em beatificar o professor Lejeune, um grande geneticista parisiense, que teve o mérito incontestável de dirigir os trabalhos de uma equipe responsável pela descoberta da trissomia do 21. Depois desta abordagem das causas do mongolismo, Jerôme Lejeune destacou-se pelo seu combate em favor das modificações das vidas sexuais e das maneiras de pensar a procriação. Partidário da condenação papal dos métodos contraceptivos artificiais, militante contra a interrupção da gravidez, este professor de medicina nunca recuou, destacando-se nas lutas que são geralmente conduzidas pela parte mais reacionária da direita de seu país. A Igreja quer beatificá-lo; quer dizer que ela mesma não recua diante do risco de predispor negativamente a fração progressista de sua comunidade.

Há uma razão nesse paradoxo. Há alguns anos, Jacques-Alain Miller apercebeu-se dele, manifestando sua surpresa em ver que a Igreja havia se inclinado nesse campo que é preciso chamar de cientificismo. Entre os que acompanham isso de perto, Alain de Libéra, mostrou num livro grosso, sério e magistral, que o negócio é antigo (Libera, 2003).

Depois do Concílio do Vaticano II, seguido da constituição pastoral Gaudium et spes até a publicação da encíclica do papa João Paulo II Fides et ratio, a Igreja esforçou-se em persuadir seus contemporâneos de que, primeiramente, a separação das ciências da natureza e da filosofia com relação à teologia e a fé, devia ser imputada a um acidente da história das idéias – Alain de Libéra, numa pesquisa apaixonante, buscou a genealogia e a descobre no século XIII –; em segundo lugar, que uma releitura do tomismo que defendia a unicidade do ser permite mostrar – como Karol Josef Wojtyla consagrava-se a fazê-lo– que não há combate em nome da fé que valha a pena se ele não é conduzido, também, em nome da ciência. Com um imenso cuidado e uma fineza convincente, Alain de Libéra explica como, desde os primeiros esforços do Vaticano II, os Pais em concílio defendem a tese segundo a qual uma fé que negligencia as descobertas científicas é suspeita: graças à crença nas Escrituras, segundo eles, é preciso explorar, integrar, levar em conta todos os avanços da cultura. O ponto é que nada que decorra da criação pode ser ofensivo ao nosso laço com o criador... sob a condição expressa de que não postulemos jamais, no estudo da criação, que possa não haver... Criador.

Desde o aggiornamento2 de Angleo Giuseppe Roncalli, o pitoresco e excelente João XXIII, uma indicação implícita é ressaltada: o saber que se obtém do real. Aquele que conseguimos alojar nesse real, não prejudica a religião, longe disso... desde que preservemos a supremacia de uma verdade: não há criação sem Criador. Não é a insurreição da verdade contra o saber que faz sintoma, segundo os Écrits, de Jacques Lacan, mas a verdade que afrouxa seu laço ao saber, que não deverá sua liberdade senão ao perímetro onde toleramos que ele perambule. Libéra mostra que, no interior desta concepção moderna da doutrina, uma variação decisiva se instala em torno da mesma palavra; a cultura, sob a pluma dos contemporâneos de Paulo VI, engloba todas as descobertas das ciências físicas e das ciências ditas humanas. Em Fides e ratio, ela se reduz àquilo que João Paulo II chama de seus votos: um retorno à filosofia. Libéra cita de modo preciso e bem fundamentado a Karol Wojtyla – formado na fenomenologia e especialista em Max Scheler - uma vez que ele anuncia que a falta da ciência moderna foi abandonar a preocupação filosófica. Na realidade, o apelo a esta preocupação filosófica não é outra coisa senão a expectativa de que esta seja uma garantia do respeito pela transcendência.

Neste movimento de reconquista da ciência, graças a essa substituição da palavra cultura pelo apelo à filosofia, o historiador oculta uma maneira de condenar, sem dizê-lo, aquilo que nos anos sessenta chamávamos de ciências humanas. São claramente visadas a sociologia e a psicanálise por esta tentativa de aumentar nosso saber sobre o real no interior da verdade da criação divina. Lembremo-nos de Lacan na sua carta de dissolução; a igreja...

Falar disso ganha uma certa importância se queremos ter uma idéia do percurso de Lacan depois de 1960. Em 1960, diante dos Pais de Louvain que o convidaram, ele anuncia - é ao mesmo tempo o contrário - e, estranhamente, premonitório do que sabemos ser sua última posição: “Há uma certa desenvoltura na maneira pela qual a ciência se desembaraça de um campo, do qual não vemos bem porque ela se aliviaria tão facilmente do seu fardo. Igualmente, acontece muito freqüentemente que a fé deixe à ciência o trabalho de resolver os problemas quando as questões se traduzem em um sofrimento muito difícil de manejar” (Lacan, 2005, p. 30). Na página precedente, citandos os versículos 7 à 11 do capítulo V da epístola de São Paulo aos Romanos, Lacan explica que esta divisão moderna no campo da verdade confronta a ciência à sua incapacidade de apreender esta parte essencial da clínica que ele designa sob o termo bem geral de moral. “Conotar um domínio do ser, aquele da crença, por mais que ele o seja assim, não me parece suficiente para excluí-lo do exame daqueles que se apegam ao saber. Além do mais, para aqueles que crêem, é de um saber que se trata aí.” (Lacan, 2005, p, 28-29). Seguindo o mesmo impulso, diante do cônego Van Camp e de seus colegas, Lacan afirma que, dentro da clínica – no domínio do pessoal da medicina -, a psicanálise se encarrega daquilo que a ciência abandona e que antigamente era tratado pelas pessoas que tinham a responsabilidade das coisas da fé. Em 1974, diante dos jornalistas da revista italiana Panorama, em Roma, Lacan declara: “Eu detesto a filosofia” (Lacan, 2004, p. 25-29). Este trajeto conduz Lacan desde uma consideração da verdade até uma crescente preocupação com o real; esse trajeto é o inverso incompatível daquele descrito por Libéra de Gaudium et spes até Fides et ratio. Freud, mutatis mutandis, o efetuou. Um e outro ajudam a compreender que, se da parte da medicina, eles não podem mas esperam grande coisa, os psicanalistas têm tudo a esperar e realizar se trabalharem com o pessoal da medicina, interrogando-os de maneira diferente da que se propõem a fazer as religiões revigoradas pelas novas formas de mal-estar na civilização.

Após a Segunda Guerra mundial, ocorreu a real, verdadeira, a grande revolução médica, planejada durante um século e meio pelos maiores espíritos do século dezenove, de Magendie a Paul Ehrlich. O Freud de 1880 já tinha anunciado as conseqüências dessa revolução. A psiquiatria clássica se situava, então, na interseção de dois campos, ambos reivindicados pelo espírito científico, a medicina biológica e a psicanálise.

Esta, devido à sua ambição científica defendida desde sempre por Freud e até o início dos anos sessenta por Lacan, oferecia à psiquiatria o horizonte epistemológico capaz de basear suas ambições psicopatológicas. O único, em todo caso, que podia responder à expectativa dos psiquiatras conscientes de que a intervenção, útil e indispensável, dos medicamentos não explicava muita coisa no que tange às causas. Também, romper com a psicanálise, transformou-se para a medicina psiquiátrica em romper com o estudo psicopatológico. Isto é, com a busca das causas. O ateorismo do DSM é testemunha disso.

A psiquiatria delimitava a zona de interseção entre a medicina e a psicanálise. Seu desaparecimento, desejado, planejado em proveito da clínica quantitativa, corresponde a uma ruptura real entre a medicina e a psicanálise. A História não voltará atrás. Resta o pessoal da medicina. “Reabsorvida” – palavra de Lacan em 1966 ou 1967 – na medicina geral, a psiquiatria não desempenhará mais o papel, para nós e para aqueles que se seguirão, que ela tinha para os contemporâneos de Freud e Lacan. Nós éramos aí, os visitantes noturnos. Lá, não seremos mais que in partibus infidelium. Sublinhemos o que Lacan diagnostica: a desaparição da psiquiatria não acontece como um evento da ordem do saber, mas devido ao dinamismo industrial e ao avanço do capitalismo. O DSM não substitui a psiquiatria clássica, ele é a bóia náutica que assinala o local de seu naufrágio, que Lacan chama: reabsorção. Ademais, é no fundamento da desaparição do que se via na superfície que se deve pensar, agora, as relações da psicanálise com o que a fez nascer, e quem era a medicina quando a psiquiatria dissimulava sua transformação; transformação essa que, ao final, implicava na exclusão do que a psicanálise desenvolve.

O que aconteceu com essa interseção entre a medicina e a psicanálise, ilustrada pela psiquiatria em suas disputas internas, suas adesões ou sua proscrição do freudismo? O que queremos dizer é: o que é que está ocupando essa zona de interseção hoje em dia, agora que não se investe mais nela todo o conjunto das preocupações etiológicas, estranhas ao determinismo científico? A causalidade dos viventes, estranha às leis físicas e químicas, que a psiquiatria colocava dentro da medicina, quando ela se interessava por psicanálise, foi substituída pelo quê?

Por uma grande ficção democrática e pelo que chamamos atualmente de consenso, isto é, o reino da norma estatística que valida o que a ciência verifica, que testa o que a ciência pesquisa, que impõe o que a ciência supõe. Dentro deste subterfúgio que se denomina ciência práticas, contabilísticas da clínica moderna, entendemos por que o último papa defunto aconselhava um pouco de filosofia; não para adormecer, como se fazia no tempo de Madame du Châtelet, mas para ficar um pouco mais apresentável.

Assim se fazem os DSM: por consenso. A histeria parece fora de moda: não há mais histeria. A homossexualidade, muito distinta, faz parecer segregação: exit3 da homossexualidade do campo clínico. Lá onde estava a procura das causas, procuraremos o acordo do povo. Enfim, não todo o povo, sem dúvida. Um homem chamado Philippe Pignarre, fundador e animador de uma empresa editorial, que está longe de desprovida de mérito, acaba de “cometer” um livro (Pignarre, Les malheurs des Psys, 2006) – na realidade, um factum dirigido, especificamente, contra o freudismo – onde ele afirma que a única maneira de renovar a clínica das coisas mentais é entregando a elaboração do saber clínico às associações de doentes. Esse autor não menciona precisamente como o acordo democrático, ou, na medicina, o consenso obtido nas práticas pela difusão das normas, impedirá que a ditadura dos efeitos de sugestão que amplificam até a obscena caricatura os fenômenos de massa, assassine qualquer rigor.

O que é um médico? No início desta conferência eu afirmei que um médico, segundo Freud, era na época... um psicanalista. Releiamos, em 1912, suas “Conseils au médicin” (Freud, 1912, p. 143-154) para absorvermos esta evidência: os “médicos” são para Freud seus jovens colegas da coisa... freudiana. Ou seja, alguém com quem Freud pouco se importava, apesar de ele não desprezar nem títulos, nem erudição indispensável, quer eles fossem alardeados pela Faculdade ou não. Um médico, segundo o Freud, tal como nós o lemos com Lacan, é alguém que precisa enfrentar a “demanda que parte de um doente”, e que não encontra resposta na medicina, desde que ela se confundiu - por pior ou melhor que seja isso - com as ciências da vida. Um “médico”, é alguém que está encarregado de muito mais do que o que a medicina contemporânea cobre. É também assim com a “gente de Dublin”: eles podem sê-lo porque nós os encontramos lá, sem que seja necessário verificar se eles são das redondezas ou nascidos na paróquia. O pessoal da medicina idem. Isto não se limita à pele de asno. Eu aposto que é a eles que se dirige o Freud de 1912, assim como o Lacan de 1966 na Salpêtrière.

Em seus “Conseils au médecin”, Freud, sem dúvida consciente da necessidade de fazer parecer que a prática nova que ele acaba de inventar seja acolhida pelo senso comum, ele a compara ao exercício da cirurgia, à profissão de cirurgião. Sua argumentação é bastante conhecida. Tanto esse como aquele, devem “eliminar” todo afeto na orientação técnica de suas intervenções, para que a dimensão subjetiva de suas posições não interfira nos resultados. Mas, se lermos bem o breve texto nas entrelinhas, veremos que uma outra razão motiva a analogia freudiana: tanto o psicanalista quanto o médico extraem a causa, acham a origem etiológica do sofrimento em seu próprio ato, em seu manejo da transferência, assim como o cirurgião encontra a fonte do mal, tumor, lesão, mal-formação, etc. em sua operação. Assim como o cirurgião, o psicanalista encontra a causa do distúrbio no interior de seu ato provocado por sua “preocupação em curar” (Lacan, 1936, p. 80). Se, à maneira dos círculos de Euler, colocarmos no conjunto da direita a pesquisa das causas, isto é, a ciência, e à esquerda, a clínica, podemos perceber que em 1912, tanto para a psicanálise quanto para a cirurgia, na parte comum dos dois conjuntos, onde a clínica e a ciência se encontram, está a terapêutica.

Depois de 1930, a posição de Freud em relação à terapêutica se modifica. Não contente em aconselhar aos seus colegas que não precipitassem a cura, ele opõe terapêutica e ciência, e recomenda em nome desta última, em nome do serviço da ciência, que se controle tanto quanto for possível a ambição terapêutica.

O curioso neste assunto de laços da ciência e da terapêutica, é que achamos, durante o ensino de Lacan, uma inflexão comparável a esta. Em “La psychiatrie anglaise et la guerre” (1947, p. 119), exatamente antes do segundo conflito mundial, o sentimento de Lacan é que somente a psicanálise pode trazer a caução de um método científico à medicina psiquiátrica. Até a metade dos anos sessenta, seu ponto de vista praticamente não mudou. No pequeno livro,“Mon enseignement, ele afirma, com certa prudência irônica, que a “psicanálise, pode ser um modo de abordagem científica que concerne às coisas que dizem respeito ao sujeito” (Lacan, 2005, p 80). Dentro dessas três conferências publicadas por Jacques-Alain Miller, todas proferidas em grandes instituições de cuidados e transmissão do saber médico, Lacan separa o que ele chama de “o sujeito” de todas as outras funções que a Faculdade agrupa sob a denominação de “psiquismo”. Assim, ele afirma a estrita relação com a ciência, às “exigências científicas”, ao mesmo tempo que com essa concepção do sujeito ele se proporciona os meios que lhe permitirão distanciar-se: já em 1967 ele estigmatiza esse “extravagante modo terapêutico” (Lacan, 2005, p 32).

Parece ser pela distinção do sujeito como uma função irredutível a uma outra e pela refutação do papel do amor na distribuição dos cuidados, que Lacan demonstra o que são as conseqüências de sua “obediência científica”. Dentre essas três intervenções que compõem um verdadeiro “Improviso ao pessoal da medicina”, Lacan mostra que o amor não trata, não muda nada, porque ele é da ordem do prazer. Há um ano, aproximadamente, Edgar Morin escreveu no jornal Libération, um artigo cujo título, da largura de uma página dupla, retomava a fórmula de Paracelso: “a medicina é amor”. O filósofo, em nossa humilde opinião, erra, na medida em que é exatamente após Paracelso – e em parte, paradoxalmente, graças e ele – que a medicina do século dezessete mudará sua concepção do signo e começará seus primeiros passos na direção da medicina moderna que, um século e meio mais tarde, dará à luz a medicina científica.

Durante os anos cinqüenta e antes deles, a relação da psicanálise com a medicina podia ser reconhecida no ensino de Lacan pela reivindicação do status científico da elaboração conceitual da ação psicanalítica. Nos anos sessenta, notamos que dentro de uma posição específica no que concerne uma definição rigorosa do sujeito como sujeito da ciência e na retomada das apostas freudianas de além do princípio do prazer, Lacan articula a relação da psicanálise com a medicina por uma “marcação” cada vez mais cerrada, centrada na questão terapêutica – marcação essa, no sentido extraído do futebol, de marcar um jogador.

O princípio da reflexão de Lacan é conhecido: em 1936, ele critica a “parcialidade da observação” (Lacan, 1936, p 80), assim como “a bastardia de concepções como a de pitiatismo” (Ibid) – a escola francesa é considerada “bastarda” pois ela se apóia na distinção entre a etiologia orgânica de um distúrbio e a sugestão para pregar com o aluno de Charcot, Babinsky, uma mistura de gêneros que julga uma clínica da palavra com os critérios obtidos em um exame somático. Inspirado, sem dúvida, por sua frequentação do seminário de Kojève - que lhe abre para as virtudes da dialética hegeliana - Lacan postula que a psicanálise foi inventada por alguém que estava preso ao impasse de uma medicina moderna, uma medicina que pretende levar em consideração uma prática de escuta fechando as orelhas.

“de fato, é um ponto de vista semelhante que impõe ao médico esse impressionante desprezo pela realidade psíquica [...] Mas, porque é no médico, quer dizer, naquele que pratica por excelência a vida íntima, que este ponto de vista aparece da maneira mais flagrante como uma negação sistemática, é também de um médico que deveria vir a negação do ponto de vista dele mesmo. Não a negação puramente crítica [...] mas uma negação eficaz no sentido em que ela se afirmava com renovada positividade. Freud fez esse passo fecundo [...] e a ele foi determinado por sua preocupação em curar, isto é, por uma atividade onde, [...] é necessário reconhecer a inteligência por excelência da realidade humana, no sentido em que ela se aplica em transformá-la” (Lacan, 1936, p. 80).

A “preocupação em curar” era a fórmula - consagrada, explicitamente, por ninguém menos que Louis de Bonald! – que os médicos utilizavam para se oporem à ingerência da ciência na terapêutica. Na conhecida passagem citada acima, através da fórmula “preocupação em curar”, Lacan se opõe à escolha reacionária que deplora a modificação que exige a “obediência científica”. Como Freud, em 1890, não é questão para ele de protestar contra o progresso das técnicas, mas estudar suas conseqüências.

A “preocupação em curar” tem mais um alcance: o de se distinguir da famosa “vontade de curar”, o furor sanandi. É uma preocupação, nada mais e nada menos. Preocupação se opõe à vontade e prepara uma definição do desejo do analista, não como desejo de não curar – isto seria irresponsável - , mas, diferentemente, como um “não desejo de curar” (Lacan, 1986, p. 258), seja como um tipo de suspensão da questão da cura, como também uma recuperação daquilo com que nossa clínica se confronta: a cura é uma demanda que devemos decifrar através da interpretação de um desejo.

Quando na metade dos anos sessenta retornou à palavra preocupação, é novamente de maneira significativa para qualificar sua posição em relação à terapêutica. Lacan opõe desta vez a “preocupação terapêutica à “forma perfeita” – perfeita deve ser tomado em seu sentido antigo: é perfeito o que revela a natureza do que está em questão – isto é, a psicanálise didática: “se a psicanálise tem um campo específico, a preocupação terapêutica nela justifica curtos-circuitos, até temperamentos; mas, se é um caso ao qual deve ser proibida qualquer redução semelhante, é o da psicanálise didática” (Lacan, 1966, p. 231). Em 1936, a preocupação em curar era um princípio de ação; exatamente trinta anos depois, a preocupação terapêutica tornava-se um princípio de limitação da ação psicanalítica, por que esta, em sua forma perfeita, em sua forma pronta, pode fazer o analisando correr um risco, se ele não for capaz de suportar o risco subjetivo potencial.

Ocorre que apenas a psicanálise didática, aquela que dela revela a verdadeira natureza, o “campo específico”, permite elaborar uma “teoria congruente” que possa mantê-la “no status que preserva sua relação com a ciência”... Dentro de um percurso de duração quase equivalente, Lacan encontra Freud, mas com uma nuance que merece ser dita: a terapêutica em nosso campo específico não é tanto o que se opõe à ciência, mas, especialmente, o que no campo específico, em que sua ação se desenrola, não interroga diretamente a ciência; Jacques-Alain Miller em seu curso, define essa zona que questiona nossa posição em relação à ciência como um “além da terapêutica”. A preocupação terapêutica de Lacan consiste em encontrar os casos em que convém manter o sujeito aquém de uma linha, além da qual a ação analítica se define como sendo outra coisa diferente daquilo que apenas melhora a capacidade de um sujeito para se manter dentro de uma divisão tolerável entre prazer e desprazer. Freud, depois de 1930, opõe terapêutica e ciência à psicanálise. Ao fazer da relação da psicanálise com a ciência uma questão que se coloca para além da terapêutica, Lacan faz dela outra coisa, que em nosso campo não pode se fundar, verdadeiramente, na “razão científica”. Seria dizer que tudo o que na ação analítica pode ser considerado relacionado aos efeitos de sugestão, não pode ser confrontado com a ciência.

 

Nessa dupla destituição, tanto lacaniana quanto freudiana, da posição de nosso “campo específico” em relação à terapêutica e à ciência, se encontra uma razão que permite, a partir da psicanálise, identificar um ponto da evolução da medicina e de seu lugar na civilização. Em 1923, em Viena, Freud publica “Le moi et le ça” (Freud, 1981, p. 219-275); neste mesmo ano, em Paris, toda a cidade ia ao teatro assistir à criação por Louis Jouvet do Docteur Knock, de Jules Romain. Não se tem o costume de prestar muita atenção ao subtítulo desta célebre peça teatral: O triunfo da medicina. Em 1925, Freud escreveu a August Aichorn a fim de prefaciar seu livro Jeunesse à l’abandon (1973) dedicado aos desvios delinqüentes. Freud evoca as três profissões impossíveis que a tradução lhe legou: governar, educar, curar. Sabemos que cinco anos mais tarde essa tríade se torna: governar, educar, psicanalisar. A impossibilidade da obtenção da cura tornou-se a tarefa impossível de psicanalisar.

É que, entre as duas guerras, curar se torna possível. A possibilidade terapêutica é a conseqüência da conversão (meditada desde longa data) da medicina à tecnologia científica. Eis o que Jules Romain – o artista que, justamente, precede o analista – tinha previsto: uma capacidade terapêutica que estenda até o infinito todo o domínio da pertinência médica. A sala de espera de Knock fica cheia, pois toda a região quer consultar o médico e sente necessidade de fazê-lo. A possibilidade do “curar” apaga os limites da ação médica. Mas torna-se possível curar graças à tecnologia científica, o que é médico e o que é “cosmético”: recorrer à cirurgia para refazer um rosto devastado por um acidente é unanimemente considerado como questão médica. Mas, não estar satisfeito com a forma de seu nariz ou com a aparição ainda discreta de uma primeira ruga, isto é um caso médico? Isso depende da capacidade de assumir o custo financeiro, isto é, depende de poder político e econômico. Decidir, politicamente, que um cuidado não deve ser fornecido pelo Estado não é declará-lo não médico, mas sim reservar-lhe o acesso aos recursos do mais rico, ou do menos pobre, dependendo da riqueza do país onde se vive.

Essa mudança vem sendo preparada desde o fim da primeira guerra mundial. Isso é o que Knock representa e que Freud consigna quando substitui o impossível do curar pelo impossível do psicanalisar. A atenuação dos limites do domínio médico ocorre também no interior, de tal maneira que hoje é reconhecido que a topicidade dos produtos que a farmácia inventa confunde a repartição das essências patológicas que consagrava a “ontologia” implícita das velhas nosografias. Isto é aceito para os doentes orgânicos; mas, no registro das coisas mentais, a incidência é mais forte ainda. Anestésicos eficazes da dor moral e dos sofrimentos do espírito, os psicotrópicos não “respeitam” a antiga distribuição das essências e das entidades nosológicas: os antidepressivos desangustiam, os ansiolíticos parecem ser capazes de livrar da extravagância delirante, tal neuroléptico será indicado a léguas de distância de sua destinação original, etc. As velhas categorias não resistiram à OPA, chamada de DSM, de tão infiltradas que elas já se encontravam pela irônica contestação da química do cérebro.

Em 1966, quando a terapêutica galopava, Lacan não fez da “preocupação terapêutica um freio para a ação psicanalítica, mas algo como um limite a essa ação que leva em conta os limites do sujeito. Um ano mais tarde, no primeiro terço de sua “Proposition...” sobre o passe, que traça o perfil da finitude própria à psicanálise em uma forma “perfeita” mantendo a relação da invenção freudiana com a ciência, ele enuncia, à guisa de “digressão” uma precisão decisiva que radicaliza o que ele pode distinguir nos anos anteriores:

“Essa experiência é essencial para isolá-la na terapêutica, que não distorce a psicanálise somente por relaxar seu rigor. [§] Podemos encontrar os tempos idos e revolvidos em que aquilo a que se tratava de não causar dano era a entidade mórbida. Mas o tempo do médico está mais implicado do que se supõe nessa revolução – pelo menos, a exigência, tornada mais precária, do que torna o médico ou não um ensino” (Lacan, 1967, p. 251).

Antigamente, havia um tempo específico para a ação médica, que consistia em observar um certo desenvolvimento da entidade mórbida, para apreender o momento específico da intervenção curativa. Isto dava ensejo, aliás, à criação de belas ficções, que faziam da obra do médico um exemplo de prudência e audácia próprio a alçar sua prática ao nível dos grandes gestos da história, comparável ao que escreve o Cardeal de Retz que eu cito de memória: “não há nada no mundo que não tenha seu momento decisivo, e a obra prima da boa conduta é conhecer e escolher este momento”. Lembro-me de um romance de um médico inglês chamado Joseph Archibald Cronin, Les années d’ illusion, (bibliografia nota 22), cuja trama inteira, feita de histórias de amor e aventuras de estudo, era, na realidade, ritmada pelas histórias de suspense que transformavam a terapêutica em proezas épicas.

Em outubro de 1967, Lacan anuncia que esse tempo se foi, isto é, que a temporalidade própria à ação médica, a temporalidade que definia esta ação, que a fundava em razão e técnica, hoje em dia está transtornada. Ele não é o único a diagnosticar isto, mas é o único a notar que esse transtorno impede, hoje em dia, que se identifique o que é médico e o que não o é em seu próprio ensinamento. Em sua “Proposition...” sobre o passe, ele estabelece – só de passagem, se ousarmos dizê-lo – a constatação de uma crise na própria transmissão da medicina conquistada pela tecnologia científica. Essa crise na transmissão do saber não é anódina. Uma das conseqüências dela é a desaparição desse desejo que chamávamos de “vocação”, desejo esmagado pelos princípios de uma seleção universitária por concursos cada vez mais anônimos, reduzidos à questionários esvaziados de qualquer ambição retórica, impostos a candidatos intimados, se quiserem ouvir o dignus est intrare4 de tratar com soberano desprezo sua própria enunciação.

Essa transmissão evidentemente continuou! Talvez até de forma mais inteligente que antes. Mas foi ao preço de uma distinção tornada quase supérflua: aquela que antigamente separava a clínica e a terapêutica, aquela que permitia à oferta suceder logicamente a demanda, e não, como hoje em dia, confundi-la ao precedê-la. É a lei do mercado, sem dúvida. Mas, não era verdadeiramente aquela do velho saber das Faculdades altivas e tenazes. Não temos, obviamente, nada contra as vidas salvas, os destinos recuperados e as dores espantadas. É questão aqui de uma outra coisa, que deve ser menos deplorada do que simplesmente conhecida. Onze anos antes de Georges Canguilhem, a constatação de Lacan, não está em acordo com o que pensa, em 1978, o mestre da epistemologia médica, que vê na medicina: a ciência dos limites dos meios que as outras ciências querem lhe dar. (Canguilhem, 1968, p. Paris, 392-488). Não é tanto aqui questão do lado “ficção científica”, de um “tudo é possível”, que nós podemos inclusive levar à sério, como nos convida Lacan em sua entrevista ao magazine italiano Panorama, em 1974 (Lacan, “Il ne peut y avoir de crise de la psychanalyse, loc. cit.) É mais questão da atualidade, tal qual nós a constatamos quarenta anos depois que Lacan publicou a breve “digressão” de sua “Proposition...” de outubro de 1967. O que podemos observar em todos os sistemas de saúde dos países ditos desenvolvidos prova bem que o limite do cuidado será econômico, político, social, e que não será mais trabalho da medicina dizer o que concerne ao seu saber e o que está fora de seu campo. Na falta de conceber que a questão deve ser situada sobre a demanda, sobre uma demanda exacerbada por uma oferta dopada por suas incontestáveis e às vezes prodigiosas vitórias, isto é, por não acentuar o próprio sujeito, a clínica médica, atravessada pelo desenvolvimento exponencial das capacidades terapêuticas da ciência, não achará mais o que a limite fora do confronto à sua incidência político-econômica; ou social, assim como demonstra a redução crescente ao jurídico da doença mental. A própria definição do campo clínico – falamos das coisas como elas são vividas na cidade, e não nos serviços de ponta dos hospitais e universidades, templos bunkerizados de uma técnica que só deve sua relativa independência ao prestígio justificado do trabalho de elite que nela se realiza – escapa ao controle do clínico e dependerá cada vez mais da ditadura do mercado, maquiado sob seus ideais democráticos, isto é, sob suas ficções igualitárias.

 

O confuso no que constatamos hoje em dia, apesar de estarmos avisados pelas premonições instruídas e calculadas enunciadas por Lacan entre 1965 e 1968, é que podemos adivinhar, certamente, não a profecia, mais a história da maneira como as coisas se acomodavam no início da conversão à ciência do conjunto das práticas médicas; conversão efetiva e contemporânea na alvorada do que podemos chamar de era pasteuriana. Não é impróprio falar de conversão, pois é de fato questão da substituição de um universo de crenças por um outro muito mais eficiente nos métodos que ele prega para localizar o saber no real. Em um artigo do jornal francês Le Figaro, datado do dia 2 de maio de 1973, intitulado “Uma coletividade de pesquisadores é uma ordem mendiga”, o ganhador do prêmio Nobel e pasteuriano, André Lwoff declara:

“Todos sabem que o sufixo –iano se adiciona a nomes para formar adjetivos ou nomes designando a profissão, a escola, a filosofia, a religião, o pertencimento a uma ordem: cartesiano, cisterciano [...] O leque está largamente aberto [...] Minhas preferências vão para pertencer a uma ordem [...] Ser “pasteuriano” é então pertencer a uma ordem [...] Às vezes é questão de ser aluno da Sorbonne, sorboniano jamais” (Lwoff apud Le Grand Robert, vol. 5, p. 2001, artigo: “pasteuriano”)

Essa história, de uma força anunciadora comparável às formulações de um Nietszche, data de alguns anos antes da invenção da psicanálise. Ela é conhecida; ela é de Sigmund Freud em 1890 (Freud, 1905, p. 1-23). Subordinada à ciência, a medicina ganha tudo, exceto o que ela abandona e que desde sempre atravessava sua prática: a autoridade sábia do médico, a dimensão prestigiosa de sua figura que evoca Jacques Lacan em 1966, no hospital da Salpêtrière (Lacan, 1966, p. 761-774), baseava-se na “mágica das palavras” (citação nossa). A ciência apenas cobre uma parte do campo clínico; o outro tem relação com essa potência do verbo (o poder da palavra como diríamos hoje em dia). Dentro do processo de curar, esse poder, essa mágica, intervém quando, segundo Freud, opera-se no paciente, a transformação de uma “espera ansiosa” em “espera crente” (Freud, 1905, p. 8), isto é, a mutação da apreensão angustiada de uma ameaça contra o bem-estar em uma posição subjetiva que ele chamará mais tarde de transferência.

Em sua intervenção na Salpêtrière, Lacan evocou o caso daqueles que esperam do médico serem confirmados em seu “status de doentes”. O que se deve dizer senão que a demanda feita ao saber médico por segurança, garantia pela essência da doença, é uma demanda de ser? Ela demonstra que além da patologia somática, uma zona, uma parte inclusa na situação clínica concerne precisamente o sujeito, a falta de ser e sua queixa. Não há artifício em misturar o Freud de 1890 e a contextualização lacaniana, para colocar que é a foraclusão do sujeito pela ciência que trabalha na eliminação da dimensão da transferência pela transformação tecnológica da medicina.

Se Lacan pode considerar que o aporte da ação analítica é bom, no exterior de seu campo específico, tão longe quanto é possível concebê-lo, não seria porque esta obra benfeitora, ao interpelar a ordem da ciência em nome da ordem do sujeito, oferece uma escuta que é bem mais do que a respiração proposta por todas as células psicológicas que o poder político põe, diligentes, a fim de socorrer os acidentados da civilização, persuadindo-os que a bondade de um Outro administrativo conseguirá suprir a inoperância contemporânea do amor do pai?

Ao final de seu ensinamento, o autor de “Question préliminaire...” define a clínica como “o real no sentido em que ele é impossível de suportar” (Lacan, 1977, p.11). Pelo quê, por quem esse real seria impossível de suportar senão pelo sujeito? Pelo sujeito que deve ser reintroduzido na própria prática clínica para que uma parte decisiva de sua queixa entre no cálculo que modelará a resposta adequada.

Deve-se conceber a condução desta tarefa necessária, através da consideração do que Jacques Lacan soube identificar como efeito maior da ação produzida pela ciência. É esta consideração que faz com que se diga que convém muito mais procurar o pessoal da medicina do que dissertar a respeito da medicina, porque dissertar sobre a medicina, quando não se está diante dos problemas concretos colocados pelas demandas, mais cedo ou mais tarde, transforma o indivíduo em professor.

A cientificização da medicina, apesar de ter se iniciado, segundo Michel Foucault, há mais de dois séculos, está apenas começando – para simplificar. Não podemos duvidar da dessubjetivação crescente percebida por Canguilhem. Esta “dessubjetivação” é uma objetivação do doente. Ela é da estrutura. O pessoal da medicina faz o que pode a respeito disso com uma alegria desigual; mas nós não temos que opinar, pois não faríamos melhor no lugar deles! Aquilo que é da nossa competência é o “médico” (no sentido em que tratamos dele), pois é do seu lado, tanto quanto do lado do estudioso que se coloca a questão da destituição subjetiva. Esta destituição subjetiva do pessoal da medicina, da qual temos todos os indícios, ainda que só abrindo o jornal da manhã, como toda destituição do sujeito pela ciência, não pode ser protestada por eles, é uma destituição sem volta dentro do discurso que a engendra, pois este discurso não pode dar lugar à divisão singular de cada um. Essa clínica da destituição, da qual a recente história de um drama hospitalar (Forest, 2007) é testemunha chocante e pungente, é aquilo que podemos transformar numa ocasião de nos endereçarmos e falarmos. Falar com o pessoal da medicina desta posição de desidealização radical na qual eles se encontram, pode ensejar um desejo de uma escuta diferente para a queixa. Propor ao pessoal da medicina que eles digam alguma coisa a respeito do que a medicina faz, sobre a posição deles em sua prática, é mais motivante que as avaliações e outros consensos de pretensões democráticas que cerceiam incansavelmente o desejo de fazer melhor. Não podemos mais tomar posição, como nos tempos heróicos dos grupos Balint que acreditavam em um “todo interpretável”: do dodói à prescrição do tratamento. Não podemos mais fazê-lo, pois isso implicaria numa situação transferencial sociológica que não existe mais, por um lado, e, por outro, porque as perguntas e as respostas estão presas numa exigência de padronização que não permite mais que se decifre integralmente a queixa à ordenança! Mas é possível tomar as coisas pelo viés, senão do sofrimento do pessoal da medicina, pelo menos por aquele de seus sintomas do qual eles conseguem dizer alguma coisa. Para isso, eles devem ser pegos um a um, caso a caso. Se há um futuro para as relações da psicanálise e da medicina, sem dúvida ele não está no que poderemos dizer dos cuidados, mas no que permitiremos fazer os cuidantes dizerem. Ou seja, em maior ou menor escala, o que poderemos fazer todos dizerem, como demonstra o ideal persecutório da medicina preventiva e a promessa sem fim de um tudo saber atiçada pela internet! “Todos doentes” anunciava o Doutor Knock. “Todos cuidantes” responde de mil e uma maneiras a nossa época.

 

Notas

  1. Este texto é uma nova versão da intervenção feita sob o mesmo título em Bruxelas no quadro da ACF - Bélgica (noite “Sobre o vivo”), em 22 de março de 2007. Publicado em Quarto, n. 91. Revue de psychanalyse publiée à Bruxelles.

  2. Termo utilizado em italiano e em várias outras línguas para significar atualização.

  3. N.T.: em inglês no original.  

  4. N.T.:Significa “ele é digno de entrar”. Esta é uma fórmula emprestada da cerimônia burlesca do Malade Imaginaire e que se emprega, sempre como brincadeira, quando é questão de admitir alguém em uma corporação ou sociedade. Segundo o Petit Larousse, de 2007.

 

Referências bibliográficas

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Texto enviado em: 20/03/2007.

Aprovado em: 20/07/2007.