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 O SABER DO PSICANALISTA: A VIZINHANÇA COM A CIÊNCIA E A RELIGIÃO

Tania Coelho dos Santos 
taniacs@openlink.com.br


O momento do fechamento de mais um número de aSEPHallus é sempre uma grande satisfação. Sem a intensa dedicação de Rosa Guedes e Fabiana Mendes, essa teria sido uma tarefa interminável. A elas, meus agradecimentos.

O tema desse número surgiu ao longo da leitura do Seminário XVI, de Jacques Lacan, De um Outro ao outro. Cada um dos artigos escolhidos aborda a especificidade do Outro da psicanálise. O saber do psicanalista desliza entre as estreitas margens do Deus da religião e do Deus da ciência. Lacan a define assim: “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavras” (1968-69, p. 11), evocando, simultaneamente, o saber altamente formalizado da ciência e o saber revelado da religião.

Pierre-Gilles Guéguen, sobre o Seminário XVI, desenvolve um comentário acerca do deslocamento desde Descartes até Pascal, que vai permitir que Lacan redefina o seu conceito de Outro. O Outro não é somente incompleto, um sujeito suposto saber, como em Descartes. O Outro de Pascal é inconsistente, está em todo lugar e em lugar nenhum. Ele não existe e, sobre isto, cada um precisa  fazer a sua aposta. É a aposta, o ato do sujeito, sua fé, que faz existir o Outro e não o saber.

O fato de que o Outro da psicanálise funda-se, tal como na religião, no ato de fé, indica uma analogia possível entre a confissão religiosa e a que é feita na sessão analítica? José Martinho mostra que o enquadramento estrutural das duas práticas difere. A confissão religiosa é um laço social antigo, formado a partir do discurso do mestre. O que se passa numa análise depende, exclusivamente, da emergência do discurso do analista. Diferentemente do que acontece no ato de fala - que se realiza no confessionário - a interpretação analítica daquilo que o sujeito confessa, permite que ele se responsabilize pelo seu fantasma. Não se trata de uma responsabilidade natural ou jurídica, mas da responsabilidade pelo sentido gozado que desacredita a ilusão religiosa.

O tema da responsabilidade pelo gozo, mais além do saber, é abordado por Diana Paulosky. Mostra que, se certos tipos de laços são normais porque são próprios de uma época, isso não justifica que o sujeito possa isentar-se do peso da responsabilidade pela escolha de um tipo de laço em detrimento de outro. Os laços mais universais ou típicos dependem, para constituir-se, de uma escolha particular de objeto, onde se localiza a responsabilidade que cada sujeito tem sobre seu gozo.

Saber e crença, ou responsabilidade subjetiva, não podem ser dissociados. Rosa Guedes Lopes conclui, em sua tese de doutorado, que é o desejo do analista que sustenta esse enlaçamento. A noção de desejo do analista, introduzida por Lacan em 1958, depende de dois axiomas. O primeiro define o sujeito da psicanálise como equivalente ao sujeito da ciência. O segundo define o fazer do psicanalista como o de reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica. A autora apresenta sua tese de que o discurso do analista é a formalização lógica e resumida do desejo do analista. Além disso, mostra que o discurso do analista atualiza o debate de Freud com a ciência e formaliza a ação do psicanalista no mundo. Conclui que o aspecto mais essencial ao debate da psicanálise com a ciência resulta da introdução do termo desejo do analista.

François Leguil, sobre as origens do desejo do analista, recorda que, muito antes da invenção da psicanálise, Freud já advertia seus colegas de que o abandono, clínico e epistemológico, da consideração pelos poderes da palavra, custaria muito caro no futuro. Embora ele tenha tratado relativamente pouco da medicina propriamente dita, endereçou-se muitas vezes aos médicos. O autor lança uma tese original e muito profícua. Acredita que se pode, talvez, até demonstrar que o verdadeiro médico para Freud é o psicanalista.

É precisamente isso que podemos depreender do desafio lançado por Jorge Forbes às pesquisas em genética. Os avanços nesse campo permitem conhecer e, por conseguinte, comunicar a um paciente um prognóstico científico anunciando-lhe uma doença futura. O prognóstico antecipa o sofrimento e a hipótese ousada do autor é que ele facilita, por esta antecipação, o progresso da doença anunciada. O desejo do analista revela, então, sua potência. Perante as famílias dos futuros doentes, o analista interpreta a resignação e a compaixão menos como virtudes religiosas e muito mais como pecado, do vício, da acomodação indiferente que congela a situação em um dueto dor-piedade. O ato do analista consiste desautorizar o sofrimento padronizado.

Que propriedades têm a interpretação do analista? Como é que essa virtude se transmite? Antônio Márcio Teixeira mostra que a interpretação psicanalítica é necessária, pois é restrita a uma situação clínica singular e não está, por isso, aberta a todos os sentidos. Se, ao final, uma análise deve produzir um analista, pode-se falar de uma transmissão da virtude interpretativa? Em 1964, Lacan definiu a virtude como acesso a uma verdade pontual, diferente da verdade científica, por ser anterior à constituição do saber. A verdade que a interpretação analítica deve revelar é o objeto a, causa do desejo, junção do verdadeiro com o real, que Lacan identifica ao ser do sujeito. O dizer da interpretação pode ser ensinado porque expõe a articulação do sujeito, efeito do dito, à estrutura da linguagem em que ele se significa. O mistério da relação necessária entre saber e responsabilidade é essa junção entre o verdadeiro e o real, o ser de objeto e o sujeito.

Esse ponto onde se dá essa junção é justamente o fantasma. Em seu artigo, Roberto Calazans, Fernanda Dupin Gaspar e Tiago Iwasawa Neves pretendem apontar como a disciplina auto-intitulada neuropsicanálise, devido ao seu viés cientificista, não consegue articular um conceito importante para a teoria e a clínica psicanalítica: o de fantasma. As definições propostas pelos neuropsicanalistas não integram o conceito de sexualidade em seus textos. É a partir da noção psicanalítica da sexualidade que somos necessariamente levados a pensar o fantasma, principalmente, no que se refere ao que este conceito aponta, tanto para o sujeito, quanto para a definição de campo de ação da psicanálise. Uma vez que se trata de um campo ético, não legitima a redução cientificista proposta pela dita neuropsicanálise.

A elisão pelo discurso pseudocientífico das organizações de saúde mental, da dimensão eminentemente ética do fantasma – onde desejo e gozo, saber e crença  se depositam para um sujeito – é o tema do artigo de Sabrina Camargo. A autora questiona os efeitos sobre o sujeito do mais recente guia sobre a depressão, publicado e divulgado nos meios de comunicação da França. Fala-se de um aumento do número de casos de deprimidos e, medicamentos são prescritos em larga escala. O discurso oficial, em nome da ciência, contribui para difundir essa nova forma de mal-estar atual. Numa era dominada pela ciência tecnológica, quando o saber se dissocia progressivamente da crença, aumenta a experiência de desamparo dos sujeitos. A aposta da autora é reveladora do desejo do analista. Ela conclui que através da palavra, a psicanálise pode operar sobre o sujeito, levando-o a recuperar o laço social, em sua dimensão simbólica.

Na contramão do discurso oficial que elide a causalidade do sujeito, Jorge Luís Gonçalves dos Santos lembra que a operação significante dos sonhos indica a causa que compõe a estrutura do discurso psicanalítico. Destaca o paradoxo de que essa causa só pode ser definida como condição deste discurso no momento mesmo em que se dá o advento da ciência. A ciência inaugura o sujeito ao excluí-lo do procedimento científico. A verdade que escapa ao saber científico coloca-o permanentemente em questão. Os sonhos de angústia testemunham que a causa do desejo é um objeto logicamente impossível, irredutível aos objetos conhecidos no mundo. O trabalho desse autor, retomando a dimensão ética do sonho, vem somar-se às denúncias de que o discurso da ciência contemporânea desconhece a singularidade do saber e da responsabilidade em jogo no sofrimento subjetivo.

Maria Angélia Teixeira analisa a experiência subjetiva da violência na contemporaneidade, revelando sua dependência do discurso do capitalista. Baseada em sua tese de doutorado, toma a violência contemporânea como um índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso capitalista. O sujeito produzido pelo discurso do capitalismo foi esvaziado de seu saber e de sua responsabilidade singular. A autora pergunta-se sobre o poder de intervenção do discurso psicanalítico nas novas formas da violência, uma vez  que  extravasam os limites do mal-estar na civilização. A violência produzida pelo discurso da tecnociência capitalista nos exigiria, como ela propõe, uma nova leitura da causalidade em jogo no desarranjo dos laços sociais. Neste artigo, somos convocados a responder a contundente questão: quando o saber e o gozo não se enodam no fantasma singular, com que estratégias o desejo do analista e seu discurso podem ainda operar?

Jésus Santiago prolonga a interrogação suscitada pelo artigo precedente. Sabemos que um dos efeitos mais sensíveis do discurso do capitalismo é o fenômeno subjetivo que o autor nomeia como presentismo. Esse fenômeno é um dos modos pelos quais podemos captar a condensação do tempo num eterno presente. O enlace fantasmático, singular, entre saber e crença, sobreviveria a essa redução temporal? O chamado “presentismo”, com suas operações narrativas próprias, não acarretaria conseqüências pouco favoráveis para a instalação do laço transferencial? O autor observa que o historiador, atento aos estilos de vida atuais, verifica o crescimento de uma categoria do presente invasiva, maciça e onipresente. Isto mostra que a experiência do tempo, nas distintas épocas históricas, não é única e nem homogênea. A formidável transformação que se opera sobre a cena das sociedades tecnificadas e opulentas – com a ênfase, cada vez mais acentuada, no mercado, na eficácia técnica e nas mais diversas formas de consumo – promoveu a erradicação das grandes utopias futuristas, ainda presentes em um passado recente.

A redução do Outro - que em nosso passado religioso tinha a forma do ideal – ao outro – que em nosso presente se condensa nas formas metonímicas do objeto de consumo - nos desafia a renovar os poderes da palavra e do ato do analista. Parafraseando Jacques-Alain Miller, à medida que os avanços do capitalismo nos obrigam a abrir mão da hipótese Nome-do-Pai, do sujeito suposto saber, de Deus, talvez, mais do que nunca, não possamos mais prescindir do desejo do analista.

O tema do próximo congresso, que vai se dar em Buenos Aires em abril, tem  relação com o tema desse numero de aSEPHallus: os objetos a na experiência analítica. Em atualidades, eu comento uma pontuação de Jacques-Alain Miller, quando nos propôs esse tema. Em meu pequeno texto, trato desse pequeno excerto: “E falaremos também do analista. Se o analista pode ser assimilado ao objeto a é na qualidade de causa de uma análise e por ele ter revogado o desconhecimento do objeto a, no caso, o desconhecimento de seu ato”.1

 

Nota

  1. Ref.: Miller, J.-A. Os objetos a na experiência analítica. In: Opção Lacaniana, n. 46. São Paulo: Eólia, 2007, p. 30-34.