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 A VIOLÊNCIA NO DISCURSO CAPITALISTA: UMA LEITURA PSICANALÍTICA1

 



Maria Angélia Teixeira

Psicanalista
Mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ
Professora assistente da Faculdade de Psicologia da UFBA
Psicanalista, membro de Formações do Campo lacaniano
angelia@campopsicanalitico.com.br

 

Resumo

Este trabalho analisa a dimensão subjetiva da violência, especialmente a que se apresenta no discurso do capitalista, servindo-se das teorias freudianas da pulsão destrutiva e do supereu e das teorias lacanianas dos discursos e do gozo. Orienta-se por três vetores: os fundamentos teóricos da constituição subjetiva da violência; a identificação da violência contemporânea como índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso capitalista; o confronto do poder de intervenção do discurso psicanalítico frente às manifestações de violência na contemporaneidade. O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à pulsão de morte e ao supereu decorre, para Lacan, dos avatares dos quatro discursos e do modo como ordenam o desejo e o gozo nos laços sociais. A violência produzida pelo discurso da tecnociência capitalista interpela a ética da psicanálise a uma nova leitura sobre suas causalidades, efeitos e incidências nos laços sociais.

Palavras-chaves: psicanálise, violência, supereu, pulsão, gozo, discursos.

 

   
 

 

  Violence in the capitalist discourse: A psychoanalytical reading

Abstract

This work examines the subjective dimension of violence. Especially violence in the capitalist discourse, making use of Freudian theories of destructive drive and of the superself as well as Lacanian theories of discourses and of joy. It gets its bearings through three vectors: the theoretical fundaments of violence’s subjective constitution, the identification of contemporary violence as an indicator of subjective mutation produced by the capitalist discourse, the confrontation between the power of intervention of the psychoanalytical discourse and the manifestations of violence in contemporaneousness. According to Lacan the discomfort in civilization which Freud attributed to death wish and to the superself comes from the avatars of the four discourses and from the way they organize desire and joy in social ties. The violence produced by the capitalist techno science discourse interrelates psychoanalysis’s ethics to a new reading on their causes, effects and incidence on social bonds.

Key words: psychoanalysis, violence, superself, drive, joy, discourses.

 

 

Razões cidadãs e profissionais moveram meu interesse para pesquisar as determinações subjetivas da violência. Havia, por um lado, a perplexidade acompanhada da impotência em que se vê, inicialmente, um analista, frente às experiências de extrema violência relatadas por analisandos. De outro, as inquietantes indagações relativas aos impasses gerados pelo crescimento exacerbado da violência e sua imperativa presença na contemporaneidade.

A magnitude do problema leva, via de regra, o cidadão a pensar que não há nada a fazer. O mesmo sentimento de impotência aparece com freqüência diante de tantos outros imperativos do discurso capitalista.

O tema da violência gera debates, vira notícia, cria polêmicas, incita a criação de movimentos estruturados e de organizações supra-estatais para combatê-la, além das medidas formais do Estado, mas nem todas as iniciativas se ocupam das suas causas e efeitos buscando definir as razões que as sustentam e suas implicações éticas. Ademais, tudo leva a crer que não basta explicar e compreender os mecanismos em questão, nem fazer apelos éticos.

Esperam-se novas ações e debates e a psicanálise tem a algo a contribuir, pois ensina que, para além da compreensão das razões e da contabilidade dos prejuízos verificados, falta querer saber por que fazemos exatamente o que dizemos que não queremos fazer, por que repetimos o que dizemos que não queremos repetir, por que desejamos o que dizemos que não queremos desejar.

Responsabilizar ou culpabilizar o capitalismo, a globalização ou a tecnociência não resolve o problema, pois ainda restaria explicar como se constituiu e constitui esta realidade explicitamente devastadora da ordem dos discursos, como dela participamos e o que nela realizamos do desejo e do gozo. É preciso também dizer que o discurso da tecnociência capitalista está sujeito a irônicas contradições, pois, sem dúvida, o progresso engendrado pela tecnologia tem seus encantos.

Os atos de violência banalizaram-se significativamente no final do século XX e início do XXI. Nossa intenção é não ficar petrificada, identificada com o gozo do espectador, nem adotar uma atitude passiva e vitimizada. Recusamo-nos a contemplar com fascínio compulsivo ou evitação fóbica o estado atual da violência. Aliás, Freud já advertira quanto à tendência da maioria a reagir com extrema moralidade e hipocrisia diante das situações de violência.

Partimos do princípio de que tudo relativo ao laço social diz respeito à psicanálise. A violência que se configura na contemporaneidade se apresenta como um dos problemas cruciais da complexa relação do sujeito com a polis. Abordamos psicanaliticamente o estranho e familiar universo da violência, marcando um posicionamento distinto daqueles que atribuem a violência ao outro, a cujo campo não pertencem.

Estudar psicanaliticamente a dimensão subjetiva da violência requer um retorno ao conceito de pulsão de morte postulado por Freud na segunda tópica. Partimos precisamente da revisão realizada pelo autor no texto “O mal-estar na civilização” (1930 [1929]), quando adotou o termo pulsão destrutiva e admitiu a presença imperativa da desfusão das pulsões erótica e destrutiva, em todos os âmbitos, especialmente no clínico. Consideramos que ainda nesse texto Freud realiza significativo acréscimo ao conceito de pulsão de morte ao atribuir a esta nova instância psíquica, o supereu, a responsabilidade dos destinos da destrutividade, da agressividade e da crueldade no ser falante. É sempre surpreendente e clinicamente esclarecedor reencontrar ou mesmo encontrar no meio do caminho o conceito de supereu como o ponto extremo da teoria da pulsão de morte, provavelmente o último elemento colocado por Freud na arquitetura desta teoria.

Impasses de muitas ordens caminharam concomitantes à confirmação das proposições que foram se definindo na construção deste trabalho. Há, entretanto, um impasse freudiano que mereceu nossa consideração, com suporte nas reflexões de Coelho dos Santos (2001) e Rudge (2006). Estou me referindo à clássica definição freudiana da pulsão como o limite entre o somático e o psíquico, que é bastante evidente quando se trata da pulsão erótica, cuja excitação está claramente localizada nas bordas do corpo, consideradas zonas erógenas. No que tange à pulsão de morte, destrutiva, pergunta-se qual a sua evidência corporal, no sentido de localizar uma determinada zona onde possivelmente estaria localizada.  Ou seja, como localizar alguma fonte interna para os impulsos destrutivos relativos aos atos de crueldade sem entrar no mérito do princípio para o qual tudo que é vivo visa retornar ao inorgânico?

Rapidamente, torna-se evidente, em Freud, que é necessário localizar a pulsão de morte, destrutiva, não em zonas específicas do corpo, porém nas manifestações sintomáticas atribuídas ao supereu e ao que supostamente aí se realiza da ordem de certa satisfação colocada para além do princípio do prazer. Satisfação que, sem dúvida, está no corpo, porém de modo muito particular: o masoquismo, a melancolia, a neurose obsessiva, a reação terapêutica negativa, as compulsões e impulsões (bastante ampliadas na contemporaneidade), além de outras modalidades de violência.

Seguimos acompanhando alguns ultrapassamentos significativos feitos por Freud no que tange à concepção da pulsão de morte, às manifestações subjetivas de destrutividade: o aparecimento da pulsão de morte configurada como fusão/desfusão da pulsão de vida; a configuração da pura manifestação da pulsão de morte desfusionada da pulsão de vida; e por último a proposição do supereu como a instância psíquica que decide sobre os destinos subjetivos da destrutividade.

Pudemos constatar que Freud estava interessado em explicar psicanaliticamente alguns fenômenos subjetivos marcantemente determinados pela destrutividade que se apresentaram na experiência analítica. Também estava bem comprometido em explicar a violência que adveio à civilização no entre-guerras. Estava, além disso, preocupado com as conseqüências subjetivas mortíferas provocadas pela primeira guerra mundial e com os horrores já prenunciados da segunda guerra mundial. Temia a barbárie do genocídio nazista que já se anunciava, posteriormente confirmado.

Antes, contudo, de entrar nas contribuições feitas por Lacan ao conceito de pulsão de morte e supereu é importante que se diga, para não incorrer em prejuízos para ambos, que passar do campo conceitual de Freud para o de Lacan requer admitir o exercício da pura descontinuidade, pois seguramente o caminho não se faz de modo progressivo, linear, ascendente.

Lacan retoma o conceito de pulsão e de supereu postulados por Freud com o conceito de gozo, o que por si só não incorre em nenhuma simplificação, pois passando ao campo lacaniano, resta ainda precisar a qual teoria do gozo, dentre as suas múltiplas abordagens, está-se referindo. 

Para analisar a dimensão subjetiva da violência privilegiamos em Lacan a teoria dos discursos, por apresentar uma nova concepção do aparelho psíquico e da sua economia de gozo pulsional, baseada na noção de entropia, perda e recuperação de gozo articulado como estrutura significante dos discursos (1969-70). A retomada feita por Lacan do supereu, enquanto imperativo de gozo, pode ser demonstrada na estrutura de discurso, o que veio criar outras possibilidades para a definição da pulsão de morte e conseqüentemente da violência.

 Aqui a discussão não se põe mais nos termos do limite entre o somático e o psíquico, nem da fonte, nem da constância do impulso interno, muito menos do retorno ao inorgânico, mas nos termos da incidência do significante sobre o corpo, das ressonâncias e dos efeitos imaginário, simbólico e real de gozo, próprios das operações da linguagem ou, mais precisamente, do discurso.

Julgamos necessário destacar a importância do conceito do supereu freudiano para a construção do conceito de gozo em Lacan. Lacan afirma no seminário Os escritos técnicos de Freud (1953-54) que o supereu é, a um só tempo, a lei e sua destruição, explicando que nisso ele é a palavra mesma, o comando da lei, na medida em que dela não resta mais do que raiz. É nesse sentido que o supereu acaba por se identificar àquilo que há de mais devastador e de mais fascinante nas experiências primitivas do sujeito. Acaba sendo identificado por Lacan ao que chamou de figura feroz, as figuras que podem estar ligadas aos traumatismos primitivos e aos enunciados primordiais, sejam eles quais forem.

O recalque é primário, a castração e o supereu também. São figuras do significante mestre (S1), efeito de discurso. A gulodice e a severidade auto-acusatória do supereu, que obrigam o sujeito a dizer algo, são estruturais, isto é, não são efeitos da civilização, mas sintoma na civilização. A báscula essencial apresentada por Freud na segunda tópica reside na afirmação de que o supereu é estrutural e não efeito da cultura. Nesta revisão, em que o recalque é produtor da repressão, estão os pontos que levam Lacan a interrogar: “Por que a família, a própria sociedade não seriam criações a se edificarem a partir do recalque?” (1992, p. 52) E sua resposta favorável a esta inversão freudiana está baseada na concepção  da  ex-sistência do  inconsciente, motivado, causado pela estrutura de linguagem, ordenada nas formas dos discursos. Nesta tradição lacaniana podemos compreender porque o supereu ordena  imperativamente: goza!

De acordo com a lógica dos gozos que se articulam nos discursos, o supereu representa a dimensão imperativa que marca a entrada do sujeito na linguagem. O supereu é um imperativo de gozo da linguagem que se ordena na estrutura do discurso sob o comando do significante mestre, o S1, tal qual se coloca no discurso do mestre (Soler, 2000-2001).

Lacan também se ocupou em explicar as manifestações subjetivas destrutivas, identificando-as a certas modalidades de gozo e, como Freud, se preocupou em criar uma teoria que pudesse explicar as manifestações de violência advindas da civilização. Desta vez, não exatamente das guerras, mas do discurso do capitalista, sinalizando para o crescimento da violência própria às várias formas de segregação, chamando especial atenção para o nazismo.

Freud e Lacan não viveram o suficiente para assistir ao atual estado globalizado de violência que, neste trabalho, estamos identificando como efeito devastador do capitalismo, seu brasão.

Por todas as razões expostas, o gozo da violência não mais se explicaria como um impulso que vem de dentro do organismo, mas como um gozo que se articula na cadeia dos discursos. Ou ainda, que se transmite e propaga como realidade de discurso. Ele é inerente a esta estrutura que traz o outro como um lugar vazio a ser ocupado em cada discurso por um dos quatro elementos ou letras distintos. É neste lugar, onde, aliás, estão colocados o objeto e o sujeito que, ao circularem nos lugares fixos, se modalizam conforme o discurso em questão. O discurso não precisa necessariamente de palavras (Lacan, 1968-69) para transmitir os enunciados primordiais, os códigos, as leis, enfim todo o universo simbólico que na cadeia significante apresentada por Lacan aparece, inicialmente, como voz.

Esta pesquisa percorreu simultaneamente três caminhos: o primeiro está relacionado aos fundamentos teóricos da constituição subjetiva da violência; o segundo está destinado a identificar a violência contemporânea como índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso da tecnociência capitalista; e, por fim, não pudemos deixar de analisar a participação da psicanálise em toda esta engrenagem discursiva e confrontar o poder de intervenção do discurso psicanalítico frente às manifestações de violência na atualidade. 

A psicanálise define a violência como um modo paradoxal de satisfação pulsional determinante da constituição da subjetividade e da construção/desconstrução da cultura, como se pode verificar no exercício das leis, nas guerras, nos sacrifícios e rituais religiosos, nos dispositivos do poder e no cotidiano das relações humanas. Inerente ao laço social, a violência se encontra na origem da criação das leis, dos contratos e das organizações sociais. Portanto, é preciso evidenciar que a violência, além de uma aberração psicopatológica, é uma vicissitude da vida mental, inscrita nas dimensões de gozo pulsional dos diferentes discursos, e que se modifica com a civilização.

Procuramos registrar em algumas situações a presença exacerbada da pulsão destrutiva desfusionada da pulsão erótica, vicissitude do supereu e do real desarticulado dos registros simbólico e imaginário, como é o caso da sua intensificação no crescimento da violência que se apresenta na tecnociência capitalista. A violência globalizada não confirmou a projeção feita por Freud em “Mal-estar na civilização”, segundo a qual a civilização se faria às custas da redução da pulsão destrutiva. A fórmula se inverteu, e hoje testemunhamos o estrondoso crescimento da tecnociência capitalista produzindo, epidemicamente, a violência.

O trabalho da escritura da tese foi distribuído em três capítulos. No primeiro, intitulado “Violência: avatar da pulsão destrutiva”, abordamos a constituição subjetiva da violência de acordo com os pressupostos da segunda tópica freudiana, em dupla perspectiva: do conceito de pulsão de morte ou de pulsão destrutiva, como Freud preferiu chamar em 1929, e do conceito de supereu.

Numa primeira perspectiva, Freud apresenta três vicissitudes da pulsão de morte. A primeira diz respeito à união de Eros com Tânatos, como vamos encontrar no sadismo e no masoquismo; a segunda, ao aparecimento de Tânatos domado e inibido em sua finalidade, portanto sublimado; e uma terceira, que diz respeito à cega fúria narcísica de destrutividade, de fundamental importância para o nosso estudo sobre a violência, por apresentar a possibilidade primária da desfusão da pulsão de morte com a pulsão erótica.

Na segunda perspectiva, a violência advém dos avatares do supereu, instância do aparelho psíquico responsável pelos destinos da pulsão de morte, paradoxalmente postulada como instituída e instituinte da subjetividade e das leis da civilização.

A concepção de pulsão destrutiva e de supereu, enquanto conseqüências diretas do “Além do princípio do prazer” (1920), produziu avanços teóricos de grande valor para analisar problemas clínicos, especialmente aqueles relativos às violências que se configuram na contemporaneidade, seja no âmbito das manifestações sociais, seja no âmbito das manifestações estritamente subjetivas.

No segundo capítulo, intitulado “Violência, avatar dos discursos”, analisamos a violência de acordo com as proposições teóricas de J. Lacan, que redefine o conceito de pulsão de morte a partir da teoria do gozo, com as categorias do real e do supereu como imperativo de gozo, correlato da castração e do recalque, operações dos laços sociais próprias aos discursos, originariamente configuradas no discurso do mestre.

Se, para Freud, o supereu é paradoxal porque é simultaneamente herdeiro do complexo de Édipo (do Nome-do-Pai) e do Isso (pulsão destrutiva), para Lacan pode-se dizer que o supereu se apresenta duplamente como herdeiro do S1 (significante-mestre), posicionado no lugar do comando do discurso do mestre e como objeto a, enquanto voz, produção derradeira desse discurso.

No âmbito da constituição da subjetividade, a violência primeira é do significante, da arbitrariedade do S1, tal como se apresenta no discurso do mestre, exibida nas vicissitudes tirânicas do supereu, ao imprimir a ferro e fogo as primeiras marcas da relação do homem com o significante.

O mal-estar na civilização que Freud atribuiu à pulsão de morte e ao seu correlato, o supereu, foi por Lacan (1969-70) atribuído aos avatares dos quatro discursos (do mestre, da universidade, da histérica e da psicanálise) e suas modalidades de ordenação do desejo e do gozo nos laços sociais. O que Freud chamou civilização, Lacan chamou discurso e, baseada nessa orientação, realizamos uma leitura de “O mal-estar na civilização” recorrendo à teoria dos discursos em Lacan.

O surgimento do quinto discurso, que é o da tecnociência capitalista (Lacan, 1973, p. 29), transformou o mal-estar em devastação. Por esta razão, confrontamos a violência instituída e instituinte do discurso do mestre, discurso fundante da subjetividade regulada pela perda e recuperação de gozo, nos termos do sujeito e do objeto a, com a violência que se apresenta como mutação subjetiva, ruptura dos laços sociais, como desregulação do gozo no discurso do capitalista.

Do mestre antigo ao mestre moderno, que é o capitalista, o que está em jogo é a mais-valia (Lacan, 1969-70) produzida pelo capitalismo neoliberal, razão da exacerbação de todos os métodos de exploração cruel do homem pelo homem, sem qualquer sentimento de solidariedade, somando-se a este a furiosa devastação da natureza e, conseqüentemente, da vida. Pode-se, portanto, dizer que a violência é do capital, este significante mestre do discurso capitalista.

A violência na atualidade dá a entender que algo da báscula entre o erótico e a destrutividade mudou radicalmente e que o termo mal-estar, relativo à pulsão de morte e utilizado por Freud, se tornou insuficiente para nomear os fenômenos que estão acontecendo na contemporaneidade.

No capítulo três, intitulado “Incidências da violência na clínica psicanalítica”, refletimos, com suporte nas considerações de Carneiro Ribeiro (2006) e Alberti (s/d), sobre aspectos clínicos relativos às vozes e aos silêncios da violência; confrontamos impasses e perspectivas do discurso do capitalista com o discurso psicanalítico e concluímos evocando a participação do psicanalista na construção da atualidade. 

Dividimos a violência que comparece na clínica psicanalítica em dois grandes planos. Aquela que poderia ser chamada de social, por se apresentar entre corpos, e aquela que poderia ser chamada de violência do sujeito, por tomar-se a si próprio, em sua divisão como outro ou como objeto. Queremos chamar atenção para esta misteriosa modalidade estrutural de violência, para as vicissitudes do gozo mortífero do masoquismo, que reage negativamente à vida e à cura, e que, na maioria das vezes, é invisível para o mundo, mas comparece como pano de fundo na clínica psicanalítica. A reação terapêutica negativa lhe é exemplar, inclusive para confirmar sua primariedade e desvelar a lei insensata, feroz e cruel que rege o supereu.

As operações da castração, do recalque e do supereu, que regulam a violência nos quatro discursos não têm eficácia no quinto, o do capitalista.

A violência que é produzida pelo quinto discurso, que é o da tecnociência capitalista, interpela a ética da psicanálise a uma nova leitura sobre suas causalidades, seus efeitos e incidências nos laços sociais. A primeira oposição entre o discurso do mestre e o do capitalismo tem a finalidade de confrontar a violência instituída e instituinte do discurso do mestre (discurso fundante da subjetividade) com a violência que se apresenta como mutação subjetiva, ruptura dos laços sociais, desregulação do gozo no discurso do capitalista.

A segunda oposição, colocada entre o discurso do capitalista e o do psicanalista, tem a finalidade de rediscutir a evidência clínica da psicanálise, seu grau de comprometimento com o discurso capitalista, bem como a participação do psicanalista na construção da atualidade, regida por este discurso.

Adotamos a proposição feita por Lacan (1969-70) de que o discurso psicanalítico dispõe de recursos para interpretar os desfuncionamentos subjetivos do discurso do capitalista advindos dos desvios da relação da ciência com o gozo do saber. Há mais de meio século, o saber transformado em mercado e a apropriação da mais-valia pelo capitalista dão a medida da deriva do sujeito, do objeto, do grande Outro e do saber, especialmente do saber enquanto privilegiado meio de gozo.

Antes de concluir, gostaria de reafirmar que, para estudar a violência, adotamos uma teoria segundo a qual a realidade se define como realidade de discurso regulada pelas modalidades de gozo nos laços sociais. Desta perspectiva, a linguagem, o inconsciente, as pulsões e os laços sociais são constitutivos da subjetividade, são propriamente a subjetividade. Os quatro discursos, a saber, o do mestre, da universidade, da histérica e do psicanalista, regidos pela castração, pelo recalque e pelo supereu, são os ordenadores da estrutura de linguagem. O quinto discurso, que é o do capitalista, não mais obedece a essas leis nem se inscreve nestes princípios. Paradoxalmente, o crescimento da violência no capitalismo termina expondo de forma maximizada a presença deste significante, destrutividade, e das suas operações próprias à estrutura do discurso e da linguagem.

Quero também evocar um aspecto que apareceu nas considerações finais da tese, e que certamente merecerá um estudo posterior. Consideramos que as proposições teóricas sobre as manifestações subjetivas da destrutividade apresentadas por Freud e Lacan caminham de certo modo paralelamente ao que a filosofia política explora, até os dias de hoje (Hobbes, Zizek e Janine Ribeiro). A compreensão da realidade como estrutura de discurso nos leva a concordar com aqueles que defendem que a barbárie contemporânea, as guerras, as crueldades, as crescentes segregações não dependem das paixões gananciosas do ser humano, mas da razão. A análise desenvolvida pela filosofia política, de que a razão é o instrumento que permite inferir a guerra porque o lugar onde esta se dá é o das relações humanas, pode ajudar a refletir acerca da concepção dos discursos como fundamento da subjetividade no sentido da nova razão inaugurada pela psicanálise.

Enfim, a psicanálise, enquanto um discurso entre outros, pode e deve se somar às outras áreas do conhecimento e aos múltiplos movimentos que fazem resistência às múltiplas formas de segregação e violência advindas do capitalismo. Munidos do discurso do psicanalista, acreditamos que resta-nos favorecer a circulação da suposição de saber ao Outro.

Concluo, dizendo que considero válida a aposta psicanalítica de reinventar o mundo com o vigor da palavra que supõe saber ao Outro. Aposto, na contramão do capitalismo, que o método psicanalítico, sustentado no amor ao saber do inconsciente, tenta resgatar a relação do saber com a verdade, relançando o gozo da vida.

 

Notas

1. Texto da defesa da tese de doutorado da autora, orientada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

 

Referências Bibliográficas

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Texto recebido em: 10/09/2007.

Aprovado em: 14/10/2007.