topo_index
titulo_esq_interno titulo_interno_artigos

   

 O DESEJO DO ANALISTA E O DISCURSO DA CIÊNCIA1

 


Rosa Guedes Lopes
Mestrado e Doutorado pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ
Professora da Faculdade de Psicologia da Universidade Estácio de Sá e do Curso de Especialização em Teoria psicanalítica e prática clínico-institucional da Universidade Veiga de Almeida
Psicanalista, Aderente da Escola Brasileira de Psicanálise – seção Rio de Janeiro
rosa.guedes.lopes@globo.com

 

Resumo

A noção de desejo do analista, introduzida por Lacan em 1958, é circunscrita a partir de dois axiomas lacanianos: o que define o sujeito da psicanálise como equacionado ao sujeito da ciência e o que situa a tarefa da psicanálise como sendo a de reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica. A partir desta configuração, a autora apresenta sua tese de que o discurso do analista, criado por Lacan, é a formalização lógica e resumida do desejo do analista. Além disso, mostra que o discurso do analista atualiza o debate de Freud com a ciência, iniciado em “A questão de uma Weltanschauung”, formaliza a tarefa da psicanálise no mundo e torna o debate desta com a ciência equivalente à introdução do termo desejo do analista.

Palavras-chave: sujeito da ciência, sujeito da psicanálise, discurso da ciência, discurso do analista, desejo do analista.

 

   
 

 

  The analyst’s desire and science’s discourse

Abstract

The notion of analyst’s desire, introduced by Lacan in 1958, is circumscribed from two Lacanian axioms: the one that defines the object of psychoanalysis as being equated to the subject of science, and the one that places psychoanalysis’s mission as being in charge of reintroducing the Name-of-the-Father to scientific consideration. From this configuration, the author’s presents the thesis that the analyst’s discourse, created by Lacan, is the short and logical formalization of the analyst’s desire. Besides, it shows that the analyst’s discourse updates the debate between Freud and science, which began in “The issue of a Weltanschauung”, formalizes psychoanalysis's task and takes its debates with science equally to the introduction of the term analyst’s desire.

Key words: Subject of science, subject of psychoanalysis, science’s discourse, analyst’s discourse, analyst’s desire.

 


Escolher o desejo do analista como tema para a minha pesquisa de doutoramento implicou, de partida, um problema metodológico. O desejo do analista não é propriamente um conceito. É uma noção introduzida por Lacan em 1958, que comparece em sua obra daí por diante sem que ele tenha optado por uma definição única. Além disso, e talvez por esta mesma razão, trata-se de uma expressão que, muitas vezes, é usada pelos analistas de um modo pouco preciso, dando margem a muitos mal-entendidos.

Afinal, o que quer um sujeito quando ocupa o lugar do psicanalista? Ele pode “desejar” qualquer coisa? Como cingir o desejo que deve animar o seu trabalho com a psicanálise? Há alguma maneira de delimitar, minimamente, o que deve estar em jogo no desejo do analista? Para onde ele deve “querer” conduzir cada analisante quando dirige um tratamento psicanalítico? Em nome de que ele age?

O primeiro passo foi, então, o de encontrar os pilares conceituais que subordinariam os rumos de toda a pesquisa. A orientação recebida levou-me a decidir pela escolha de dois axiomas lacanianos fortes, ambos presentes no texto “A ciência e a verdade” (1965).

Do ponto de vista lógico, um axioma é uma proposição admitida como verdadeira porque se pode deduzir dela as proposições de uma teoria (Ferreira, 1986). Tratava-se, portanto, de fundar o ponto de partida da tese sob a égide da razão, arbitrária e fundante, ou seja, determinada pelo modo particular como Jacques Lacan sustentou sua leitura da obra freudiana.

O primeiro axioma - “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência” (Lacan, 1998, p. 873) - define o sujeito da psicanálise localizando-o por uma relação de equivalência com o sujeito oriundo do advento da ciência moderna. Dizendo de outro modo, à maneira como a ciência moderna se constituiu corresponde um modo específico de organização subjetiva.

O axioma lacaniano do sujeito funda em razão um princípio relativo ao sujeito da psicanálise: há um sujeito que não é uma individualidade. Ao situar o sujeito da psicanálise como equivalente ao sujeito da ciência moderna, Lacan propõe uma teoria estrutural do sujeito e, correlativamente uma teoria sobre a cultura. A psicanálise é tomada como uma das evidências da existência do sujeito da ciência, na medida em que opera sobre os efeitos desse discurso na subjetividade moderna. A partir do sintoma, ela recolhe o retorno real, recalcado, do corte que fundou a ciência como ciência moderna e o sujeito como sujeito do desejo.

O termo “corte” evoca o conceito bachelardiano de corte epistemológico, que designa as rupturas ou as mudanças súbitas que ocorrem na história da ciência e que explicam porque “o passado de uma ciência atual não se confunde com essa mesma ciência no seu passado” (Canguilhem, 1977, p. 15). Para Bachelard, o progresso da ciência não deve ser avaliado a partir de uma perspectiva continuísta, mas por rupturas. Localizar o ponto de ruptura entre o velho e o novo é, então, o que permite mostrar porque, sob o nome habitual que a inércia da linguagem perpetua, encontramos sempre um objeto diferente (Ibid., p. 25).

O gesto cartesiano de introduzir a dúvida como método de obtenção de conhecimento é o ponto de corte entre o mundo antigo e o moderno. Lacan localiza esse ponto baseando-se em Koyré. Para esse autor (1953), o século XVII é marcado por uma revolução espiritual (científica e filosófica) que conta a história do declínio da visão cosmológica do mundo e do surgimento de um novo ponto de vista baseado na indefinição e infinitização do universo.

Descartes funda o mundo moderno a partir de uma estrutura topológica original: a dúvida hiperbólica que resulta num corte com todo o saber oriundo da tradição. Desta estrutura, presente na cultura, Lacan ressalta seus efeitos subjetivos. O nascimento da psicanálise, a descoberta do inconsciente, resulta de que Freud tenha conceituado a censura e a divisão do sujeito articulados à dúvida.

O corte com a tradição antiga, que propiciou o advento da ciência moderna, separou definitivamente o campo do saber e o plano da verdade. Desde então, já não se supõe mais a existência de um cosmo fechado e de um saber finito, o saber de Deus. O universo se torna infinito e todo o saber passa a ser enunciado a partir da perspectiva de um sujeito e não de um referencial absoluto. É por esta razão que Lacan pode afirmar que o sujeito em questão se caracteriza por sua divisão entre o saber e a verdade (Lacan, 1998, p. 870). A cultura moderna, marcada pelo advento da ciência moderna, é o que determina este modo de constituição subjetiva.

A escolha de iniciar a pesquisa a partir deste axioma lacaniano possibilitou tecer e verificar a tese da existência de uma homologia estrutural entre a operação de corte executada pela dúvida metódica cartesiana e a perda de uma parte da realidade conceituada por Freud (1924; 1940 [1938]; 1940a [1938]) como operação fundadora da subjetividade. Ambas as estruturas se distinguem por um corte que implica uma perda de realidade, ou uma perda de gozo, e também por um recomeço, sempre inédito.

O corte que separa o mundo antigo e o moderno retira do mundo um significante especial: Deus. No mundo antigo, é este significante que agencia toda a ordem cósmica, normatiza o pensamento e confere sentido a todas as coisas. É deste modo que entendo a definição de Koyré (1991) do mundo antigo como um cosmo fechado. Na visão cosmológica existe a relação sexual. Os opostos se acoplam, fazem sentido e resultam numa totalidade harmônica.

Já a operação constitutiva da subjetividade, que é também uma operação de substituição, implica uma realidade insuportável para todos os sujeitos. A perda em jogo aqui é relativa à diferença sexual. Para o aparelho psíquico é impossível subjetivar a castração materna. Por isso, uma corrente psíquica a repudia. No entanto, Freud mostra que o repúdio não abole o reconhecimento da castração pelo sujeito. Este reconhecimento se faz presente “através de outros pensamentos e estruturas de linguagem” (Coelho dos Santos, 1999a, p. 56-57), ou seja, de modo sintomático.

Esta demonstração permite conceituar a operação de corte com o saber da tradição (que funda a ciência moderna) e a perda da realidade (decorrente da expulsão primordial) como operações topologicamente homólogas. Esta equivalência estrutural localiza o ponto de interseção entre a psicanálise e a ciência moderna. Nele, o campo da psicanálise se define por sua relação de exclusão interna ao campo da ciência.

Enquanto a ciência aprofunda, cada vez mais, a separação entre o sujeito e a sua origem, em direção ao ideal do sujeito sem qualidades, a psicanálise se encarrega de recolher os efeitos psíquicos desta operação. A tese de Freud (1933 [1932]) é a de que é impossível erradicar completamente a ilusão porque ela é constitutiva. A divisão psíquica impossibilita que a psicanálise endosse a unidade ideal proposta pela equação cartesiana entre a existência e o pensamento.

Deste modo, Freud desloca o ideal do campo da razão engendrada pela ciência para mostrá-lo completamente articulado ao desejo do Outro, ou seja, ao desejo do casal parental responsável por trazer o sujeito ao mundo.

A descoberta do inconsciente atesta que o sujeito estrutura a sua relação particular com o desejo relacionando-o ao desejo do Outro e esta é a razão pela qual a realidade psíquica é o fundamento da fé, do sentido, do sonho e de toda a espécie de crença (Coelho dos Santos, 1999a, p. 144).

Em conseqüência do desamparo, o espírito humano tem uma inclinação natural para a religião. A ficção de um pai que protege, que é o “primeiro a se amar neste mundo” revela essa tendência universal. A reintrodução no campo da ciência, por Freud, da dimensão edípica presente no sintoma – dimensão identificatória e reguladora - prova a impossibilidade da identidade entre o sujeito e a consciência. Portanto, o sujeito sem qualidades é um ideal e não uma realidade de fato alcançável.

Este caminho conduziu a pesquisa ao segundo axioma lacaniano, que define a responsabilidade do psicanalista em seu ato. Se o sujeito sobre o qual a psicanálise opera só pode ser o sujeito da ciência e se ele se caracteriza pela expulsão da realidade psíquica do campo do pensamento enquanto uma dimensão da verdade, então, a tarefa da psicanálise deve ser, essencialmente, a de reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica (Lacan, 1998, p. 889).

O que isto quer dizer? Este foi o problema teórico que orientou o segundo módulo da pesquisa.

A releitura lacaniana da obra de Freud, sustentada pelo estruturalismo antropológico e lingüístico, privilegiou o registro simbólico sobre o imaginário e o real. O conceito de Outro forneceu a chave para a redução do sujeito aos elementos lógicos que enraízam sua determinação subjetiva no puro pensamento. Estes elementos (S1-S2) precedem o sujeito porque implicam a anterioridade do discurso do Outro. Assim, Lacan reafirmou a diferença geracional, intransponível, como uma das faces da castração.

Do mesmo modo, o Nome-do-Pai foi o conceito pelo qual Lacan formalizou o complexo de Édipo conceituado por Freud a partir da verificação da insistência real do sintoma. O complexo paterno orienta e problematiza os conceitos de sujeito, lei e desejo. Os mitos freudianos sobre o pai são os operadores do advento da lei do que se deve desejar porque o objeto primário é interditado ao sujeito. Por esta razão, eles só permitem subjetivar como impotência o que é da ordem do impossível.

O conceito lacaniano de Nome-do-Pai é um conceito descontínuo. A razão desta descontinuidade deve-se ao fato dele acompanhar as mudanças teóricas que Lacan confere ao conceito de Outro em sua obra. Para tratar esta descontinuidade no âmbito da tese de um modo que me permitisse extrair suas conseqüências, escolhi duas ferramentas teóricas estabelecidas por Jacques-Alain Miller (2002, 1999): os três eixos do ensino de Lacan e os seis paradigmas sobre o conceito de gozo.

Estas balizas me permitiram verificar que a metáfora paterna é a formalização mais precisa do Nome-do-Pai no primeiro ensino de Lacan. Ela introduz o pai como símbolo da falta localizada no Outro primordial e opera em duas vertentes: a do recalque e a da sublimação.

A vertente do recalque separa a criança da qualidade de falo materno. Faz dela um sujeito sem qualidades e promove o recalque das pulsões carregadas de desejo. Separar a criança de sua origem parece endossar a operação da ciência. No entanto, o Nome-do-Pai não metaforiza todo o desejo da mãe. O resto desta operação é o que reassegura o lugar da criança como objeto no plano fantasmático porque o desejo do Outro é confundido com sua demanda, à qual a criança responde como objeto.

Pela vertente sublimatória, o Nome-do-Pai transforma o valor da satisfação pulsional. O valor de uso da criança se torna um valor simbólico. Com isso, a operação paterna garante a sua entrada na rede de trocas, ou seja, promove a passagem da criança ao laço social.

A metáfora paterna permite prescindir dos mitos sobre o pai porque é uma estrutura. Portanto, é anterior ao mito. Ela reduz toda constituição subjetiva a uma operação na qual o pai intervém como operador lógico. Trata-se do passo que permitirá a Lacan colocar a operação paterna como secundária à castração operada pela entrada do sujeito na linguagem.

Se o Outro é desejante, então, ele não é de um campo fechado de saber (A), mas um universo infinito ( ). O Nome-do-Pai funciona como barreira ao automatismo da linguagem porque introduz o falo como significante que sexua e reparte os sujeitos em fálicos ou castrados. Deste modo, organiza a cadeia significante, estabelecendo os seus pontos de basta. A significação fálica torna impossível ao sujeito ser definido como sujeito sem qualidades porque passar pelo código é, efetivamente, tornar presente o desejo do Outro.

A introdução de uma hiância no campo do Outro tem como conseqüência o desvelamento de que a operação do recalque, que inaugura o pensamento científico, funciona também a serviço do princípio do prazer. Enquanto resíduo de uma operação lógica, o desejo marca o sujeito com o significante no mesmo lugar em que ele é habitado pelo desejo do Outro. O sintoma manifesta, portanto, a face de objeto do sujeito e é o que o impede de ser reduzido à pura cadeia significante.

Se, por um lado, o Nome-do-Pai é o significante do Outro da lei inserido no Outro do significante que produz o sujeito como significação fálica, como identificação, por outro, o sujeito só se constitui ao se subtrair do campo do Outro. Ou seja, é preciso que ele crie uma interpretação sobre o seu valor de uso como objeto para o Outro.

Há um paradoxo intrínseco à operação de separação: se, por um lado, ela tem lugar no ponto de falta do Outro no qual o objeto se instaura como causa, por outro, o sujeito encontra um lugar para si ali onde, no Outro, há uma falta. O efeito da separação é uma fixação no Outro através do fantasma.

O campo do Outro não contém o significante do sexo feminino, portanto, ao plano identificatório corresponde sempre um efeito de apagamento (fading) do sujeito. O matema S( ) remete ao significante que poderia preencher a falta do Outro.

No segundo ensino de Lacan, o Nome-do-Pai comporta uma face nova: além de formalizar o Édipo excluindo o gozo e indicando a série constitutiva do desejo, ele implica uma nomeação, definida por uma escritura particular (e não universal) do sujeito em relação ao desejo do Outro, relativa, portanto, ao complexo de castração. Por esta via, o signo é lido como objeto e entra em jogo um novo estatuto do inconsciente, que contempla as ligações libidinais primitivas, auto-eróticas, não incluídas na metáfora paterna por serem anteriores ao advento do desejo e ao objeto do desejo, à lei e à sua simbolização.

A teoria do Nome-do-Pai como nome próprio permite ir além do Édipo e pluralizar os Nomes-do-Pai. Ela questiona a primariedade do falo e situa a castração efetuada pelo pai como interpretação fantasmática da operação de separação, uma “elucubração de saber sobre a castração” (Miller, 2004b, p. 37-40). Trata-se de uma necessidade lógica (Lacan, 1964, p. 100-101) que permite a extração do objeto, que é constitutiva do sujeito como tal.

Essa teorização alarga o conceito de inconsciente. Além de discurso do Outro ou suposição de saber, ele também passa a ser pensado como lugar de interseção entre a linguagem e o corpo através das zonas erógenas, um isso pensa sem sujeito. Aqui a lei e a causa se distinguem porque a segunda implica algo de anticonceitual.

O inconsciente pulsional introduz a lei do significante no domínio da causa e faz o sujeito equivaler à causa do desejo como algo que não se encaixa nessa lei ($àa), como tropeço, como fenda (Lacan, 1964, p. 28-31). A ética do inconsciente é a do fracasso da articulação significante, do corte que constitui o circuito pulsional onde o desejo se realiza sem se satisfazer, mas onde a pulsão encontra uma satisfação sempre nova. Este circuito implica o sujeito em vias de advir e isso prova que o objeto causa do desejo precede o sujeito e que a angústia não é sem objeto (Id., 1962-63, p. 113). A via da angústia permite o acesso ao objeto real, à satisfação pulsional, que é gozo. Portanto, o Nome-do-Pai produz o sujeito conectado ao gozo porque localiza o objeto a ao qual o desejo se refere (Ibid., p. 365-366).

A introdução do desejo no Outro provocou uma retificação no conceito de Nome-do-Pai e também uma redefinição do próprio conceito de Outro. Ele se torna o campo do vivo onde o sujeito é chamado a comparecer como tal (Id., 1964, p. 194). Isso permite um deslocamento no campo do gozo: de impossível ao sujeito, ele passa a ser acessível em pequenos fragmentos. O significante tem um vínculo original com o objeto e é esta característica que impede que o sujeito seja sem qualidades. Se a pulsão é equivalente ao tesouro dos significantes, ela também é o circuito pelo qual os significantes se ligam aos objetos pulsionais, como conseqüência da sexualidade no psiquismo.

Quando o Nome-do-Pai era um significante da tradição, seu peso simbólico constituía o sujeito determinado por uma ordem antecedente que o localizava na hierarquia das relações sociais. Porém, o modo acelerado como o discurso da ciência põe todo o saber à prova tem como efeito a destituição das hierarquias e a homogeneização dos indivíduos entre si. O valor de uso do saber é substituído por seu valor de troca. Como conseqüência, os significantes-mestres, que orientavam os sujeitos numa ordem simbólica, devêm equivalentes, tornam-se substituíveis, intercambiáveis. A localização subjetiva, por sua vez, torna-se fluida, questionável. A homogeneização dos saberes é correlata da homogeneização dos homens sob o peso dos ideais modernos da liberdade e da igualdade.

Sem a posição de exceção que encarna a coincidência entre o eixo simbólico e o antropológico (ou imaginário), o campo do Outro vacila, se mostra inconsistente, a verticalidade das relações imposta pelo pai enquanto metáfora torna-se pouco visível e as referências identificatórias, menos passíveis de sustentarem as dessimetrias necessárias à constituição subjetiva normal.

Despido dos ideais, como a função paterna mantém seu caráter subversivo? Onde ancora a dessimetria?

A separação entre o Édipo e a castração, a localização da castração como estrutural porque situada na própria linguagem, bem como a primazia do complexo de castração sobre o complexo de Édipo respondem a estes problemas teóricos. Lacan desloca a função paterna de seu lugar primário para considerá-la uma operação secundária, porém correlata à operação primária da linguagem.

A teoria dos quatro discursos (Lacan, 1969-70) coroa a conceituação do Nome-do-Pai no segundo ensino de Lacan porque implica a passagem da primazia do simbólico à primazia do gozo. Ela formaliza a existência da relação primitiva entre o significante e o gozo. Reintroduzir o Nome-do-Pai é reintroduzir a dimensão discursiva do gozo no campo da interpretação. Por esta via, o que caracteriza a reintrodução do Nome-do-Pai é a conjunção original entre o significante e o gozo.

Esta conjunção orienta a posição original do sujeito como objeto no nível da satisfação pulsional relativa à castração do Outro, designa a constituição do sujeito como desejo relativo ao objeto causa e impõe a dessimetria entre os sexos e as gerações. O Nome-do-Pai nomeia a causa como sexual.

As definições lacanianas do Nome-do-Pai fornecem o contorno do que significa reintroduzi-lo na consideração científica. Portanto, definem o que suporta o ato analítico.

Ao longo da pesquisa, acompanhei os deslocamentos deste conceito introduzindo questões que indagam sobre a efetividade de sua operação para ambos os sexos e também sobre sua localização em relação ao que se passa na cultura, no que se refere ao aprofundamento do discurso da ciência. Neste percurso, mostrei que é a entrada do saber no mercado das trocas que separa efetivamente o saber e a verdade. Quando o saber devém mercadoria, ele se torna um saber sem qualidades, um saber desvinculado de todo o peso sexual veiculado pela enunciação de alguém em posição de exceção. Isso elucida o aparelhamento que as relações discursivas (ou os laços sociais) dão ao sexual e também como ocorre a elevação dos objetos à dimensão do significante.

As descontinuidades sofridas pelo conceito de Nome-do-Pai respondem especificamente aos efeitos subjetivos do aprofundamento, na cultura, da entrada do saber no mercado das trocas, promovido pelo discurso da ciência, e de suas conseqüências psíquicas no âmbito da diferença sexual. Elas visam garantir que a reinserção do Nome-do-Pai guarde sua fundamental função de manter a psicanálise em sua relação original subversiva em relação ao discurso da ciência. Além disso, localizam a direção do tratamento analítico relativamente ao final da análise que estes deslocamentos permitiram a Lacan formalizar até aqui - a assunção da castração, o atravessamento da fantasia e a identificação ao objeto a.

Na terceira e última parte desta pesquisa defendi a tese de que o discurso do analista formaliza, lógica e resumidamente, a partir de novos fundamentos, a noção de desejo do analista.

Se o desejo do analista é o “que, em última instância, opera na psicanálise” (Lacan, 1998, p. 868) e se a operatividade da psicanálise pode ser resumida pela reintrodução do Nome-do-Pai na consideração científica (Ibid., p. 889), então, é esta tarefa que deve guiar o ato analítico.

Neste percurso o lugar do analista se desloca em relação ao lugar do Outro, ou seja, ele deixa de ser representante do pai, tal como Freud. Para Cottet (1985, p. 70), localizado neste lugar, o analista nada tem de real. Ele se torna uma invenção do analisando, um sujeito suposto saber. Como conseqüência, a estrutura do desejo funciona sempre como desejo do Outro e a transferência se torna interminável porque, quanto mais dividido o sujeito, mais ele engendra efeito de saber (S2) dirigido ao Outro.

Operar um tratamento analítico no âmbito do discurso do mestre (S1S2), resulta na localização do gozo como impossível ao sujeito porque apenas o pai poderia alcançá-lo. Ele é a exceção que profere a lei que faz a castração incidir sobre todos os sujeitos. Isso os torna desejantes em relação ao lugar da exceção ($àa).

No Seminário 17, Lacan mostrou que a crença no pai como exceção tem, como efeito, a impossibilidade de castrá-lo porque, morto, o pai se torna mais forte do que vivo. Do assassinato decorrem o amor pelo pai e a ordem fálica. O efeito é a impossibilidade de se obter o gozo todo e também o desejo de alcançá-lo mesmo assim. Para Lacan (1969-70, p. 92-94), toda essa mitologia é apenas um saber com pretensão de ser apreendido como verdade e só serve a uma finalidade: esconder a castração do pai.

O discurso do analista representa um progresso de Lacan em relação a Freud e também um giro teórico importante. Agir a partir do lugar do objeto a não faz do analista uma suposição dependente dos significantes do analisante (Cottet, 1985, p. 70). Ao contrário, o objeto a faz objeção à significação fálica, ao imaginário. Ele desloca o acento da operação analítica do encadeamento significante, para privilegiar o mais-de-gozar intrínseco ao próprio funcionamento da cadeia.

O discurso do analista mostra que a autoridade do significante-mestre se origina na satisfação obtida na própria articulação significante. Portanto, não há discurso desinteressado e a verdade em jogo se fundamenta no gozo. O que o discurso do analista ilumina é que “há sempre uma satisfação no discurso” (Coelho dos Santos, 2005e, p. 146).

Se tanto o objeto a quanto o S1 pode ocupar o lugar de agente de um discurso, isso quer dizer que S1 comporta gozo. Então, é possível afirmar que, como agente, o objeto a interpreta a mestria de S1. Denuncia que, de algum modo, a histérica tem razão: a identificação tem uma relação íntima com o gozo (Ibid., p. 124). Portanto, o mestre é castrado.

A escolha de balizar a pesquisa pelos axiomas lacanianos me permitiu verificar e defender a tese de que o modo como Lacan introduziu o termo desejo do analista em 1958 - ou seja, sua proposta de que se formule “uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para colocar em seu vértice a questão do desejo do analista” (Lacan, 1998, p. 621) - tem a mesma estrutura do axioma de 1965, “a psicanálise é o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai” (Ibid., p. 889).

Ambas as afirmações participam do mesmo debate sobre a natureza da estrutura do sujeito moderno e sobre o papel da psicanálise no mundo. Este debate, aliás, foi inaugurado por Freud em “A questão de uma Weltanschauung”. A reinclusão do Édipo no campo da ciência como prova de que não se pode abrir mão totalmente das ilusões porque elas são estruturais é a tese freudiana ali presente e que considero topologicamente idêntica às de Lacan.

Em 1958, Lacan propôs a reinserção da dimensão simbólica da análise e da natureza edípica do desejo referido à falta-a-ser onde o sujeito se experimenta como desejo. Sob este ângulo, o ato do analista seria orientado pela lógica do falo para dar lugar ao discurso do inconsciente enquanto discurso do Outro.

Em 1965, a reintrodução do Nome-do-Pai já contava com o conceito de objeto a, que permite a reintrodução da presença do analista enquanto algo que não pode ser reabsorvido de modo algum porque “encarna a parte não simbolizada do gozo” (Laurent, s/d). É a partir deste ponto que o sujeito pode se separar de suas identificações e extrair o modo de gozo só apreensível pelas coordenadas de linguagem que caracterizam o circuito pulsional.

Defendi a tese de que, ao formalizar o discurso do analista, Lacan reuniu estes três momentos.

Na parte superior do discurso (a$), encontram-se, invertidas e separadas por uma flecha, as mesmas letras que compõem o matema da fantasia ($àa) e que, assim posicionadas, propiciam a histerização artificial do discurso do analisante (Lacan, 1969-70, p. 31) e a produção dos significantes-mestres que suportam a fantasia. Se o objeto a é a causa do desejo, então ele é relativo à falha da metáfora paterna, denuncia o segredo da identificação ao pai e vem em suplência a essa falha. Como efeito, introduz a distinção entre os níveis da demanda e do desejo.

No andar parte inferior do discurso do analista, a disjunção entre o significante-mestre (S1) e o saber coletivizável (S2) reproduz o corte que funda o sujeito como resposta inédita, gozo novo, que abre as portas ao inconsciente como pulsão, à redução da fantasia ao funcionamento pulsional, ou seja, à experiência deste funcionamento na falha central onde o sujeito é idêntico ao desejo.

A dimensão do desejo do analista e do discurso do analista é tão subversiva quanto a própria introdução da psicanálise no mundo por Freud. Ela implica “o analista como homem de desejo, e de um desejo articulado ao insuportável, ou seja, um desejo que não recua diante do ponto de insuportável de cada um” (Brousse, 2002, p. 20). No diálogo da psicanálise com a ciência está em jogo a relação fundamental do analista com a dimensão política da psicanálise, o inconsciente (Ibid., p. 11).

A noção de desejo do analista é coerente com o discurso do analista enquanto matema da operação analítica sobre o campo do gozo. Além disso, considero esta noção como o germe do objeto a. Localizado agora como agente do discurso do analista, torna-se o seu operador. O objeto a deve, então, ser pensado como uma posição subjetiva que sempre recusa o que lhe é oferecido pelo paciente no dispositivo analítico porque sabe que “não é isso”. O desejo do analista faz objeção ao encadeamento significante porque ressalta o mais-de-gozar em jogo.

O discurso do analista é a formulação amadurecida, conceitual e lógica do desejo do analista, é a redução do desejo do analista ao seu mínimo essencial.

Como resto do trabalho de confrontação entre o desejo do analista e o discurso do analista, destaco as seguintes questões: como um analista vivo pode vir a ocupar o lugar dominante do discurso do analista, o lugar de objeto a? O que é, afinal, estar na posição discursiva cuja função de agente é ocupada pelo objeto a? Trata-se de uma posição que possa, efetivamente, ser ocupada por alguém? Como isso pode ser feito se Lacan afirma que se trata de uma posição impossível? (Lacan, 1969-70, p. 168).

Foi com estas questões que minha pesquisa encontrou, temporariamente, o seu termo.

Nota

    1. Texto da defesa da minha tese de doutorado orientada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

 

Referências Bibliográficas

Antunes, M.C.C. (2002). O discurso do analista e o campo da pulsão: da falta de gozo ao gozo com a falta. Tese de doutorado em Teoria Psicanalítica. Orientada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos. PPGTP/UFRJ. Rio de Janeiro, 2002.  Mimeo. Disponível em: www.nucleosephora.com > Tania Coelho dos Santos > Teses e dissertações.

Bachelard, G. (1938). A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. 316p.

Brousse, M.-H. (1999) Los 4 discursos y el Otro de la modernidad. Cali: Letra (Grupo de Investigación de Psicoanálisis de Cali), 2000. 191p.

Canguilhem, G. (1977). Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa: Edições 70.

Coelho dos Santos, T. (1991) A pulsão é pulsão de morte. In: SPID (1991) Revista Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro: Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, n. 25, p.69-83, set. 1991.

_________. (1999) As estruturas freudianas da psicose e sua reinvenção lacaniana. In: Birman, J. (Org.). Sobre a psicose. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999. p.45-73.

_________. (2001) Quem precisa de análise hoje? – O discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 336p.

_________.(2005). Sinthoma: corpo e laço social. Rio de Janeiro: Ed. Sephora/UFRJ. Disponível para download em: <http://www.nucleosephora.com/laboratorio/aulas/sinthomacorpoelacosocial.pdf>

Cottet, S. (1985) Estudos clínicos. Salvador: Fator ed., 1988.

_________. (1989) Freud e o desejo do psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Ferreira, A.B. de H. (1986). Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

FREUD, S. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

______. (1924) A perda da realidade na neurose e na psicose. Vol. XIX.

______. (1933 [1932]). Conferência XXXV: A questão de uma Weltanschauung. Vol. XXII.

______. (1940 [1938]) A divisão do ego no processo de defesa. Vol. XXIII.

______. (1940a [1938]) Esboço de psicanálise. Vol. XXIII.

Koyré, A. (1991). Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

Lacan, J. (1962-63). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

_________. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988.

_________. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

_________..(1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

Laurent, D. (s/d) Que me voulait-il? Le désir de l’analyste en question. In: Ornicar? Digital. Disponível em:< http://www.wapol.org/ornicar/articles/206lau.htm>.Acesso em: 14/03/2004.

MILLER, J.-A. (1999) Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana, São Paulo: Edições Eólia, n. 26-27, 1999, p. 87-105.

_________. (2002). O último ensino de Lacan. Opção Lacaniana. São Paulo: Edições Eólia, n. 35, p. 6-24, jan. 2004.

Milner, J.-C. (1996). A obra clara – Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

 

Texto recebido em: 09/09/2007.

Aprovado em: 10/10/2007.