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 O RECORTE DO OBJETO E A NECESSIDADE DA INTERPRETAÇÃO

 


Antônio Teixeira
Antônio Teixeira
Psicanalista
Doutor pelo Departamento de Psicanálise de Paris VIII
Professor Adjunto da Pós-Graduação em Psicologia - UFMG
Membro da EBP/AMP
amrteixeira@uol.com.br

 

Resumo

O texto trata da necessidade da interpretação psicanalítica, operação restrita a uma situação clínica singular não aberta a todos os sentidos. Dedica-se a pensar o estatuto da interpretação e o problema de sua transmissibilidade. Parte da seguinte interrogação: se, em seu termo, uma análise deve produzir um analista, pode-se falar de uma transmissão da virtude interpretativa? Em 1964, Lacan definiu a virtude pela idéia de um acesso a uma verdade pontual, não acessível à ciência por ser anterior à constituição do saber. A verdade que a interpretação analítica deve revelar é o objeto a, causa do desejo, junção do verdadeiro com o real, que Lacan identifica ao ser do sujeito. O dizer da interpretação se torna ensinável porque expõe a articulação do sujeito, efeito do dito, à estrutura da linguagem em que ele se significa.

Palavras-chave: psicanálise, interpretação, objeto a, sujeito, transmissão.

 

   
 

 

  The object’s outline and the need for interpretation

Abstract  

The text is about the need for psychoanalytical interpretation, an operation restricted to a singular clinical situation not open to all senses. It is dedicated to think the interpretation ordinance and the issue of its transmissibility. It starts from the following question: if in its terms an analysis should produce an analyst, can one speak of a transmission of the interpretative virtue? In 1964, Lacan defined ‘virtue’ as an access to a punctual truth different from the scientific truth since it is anterior to the constitution of knowledge. The truth that analytical interpretation must unveil is the object a, cause of desire, the merging between true and real which Lacan identifies to the being of the subject. The speech of the interpretation may be taught since it exposes the subject’s articulation, effect of the speech to the language structure in which it bears its meaning.

Key words: interpretation, truth, object a, science, subject, transmission.

 



Foi tardiamente que Freud se propôs a abordar, de modo mais sistemático, o problema da necessidade da interpretação. No seu artigo de 1937, “Construções em Análise”, verossimilmente endereçado a K. Popper, ele trata da questão do assentimento e da recusa do analisante em resposta à interpretação analítica, carente, aos olhos de Popper, de um dispositivo de verificação ou falseabilidade1. Ainda que, nesse momento, fosse necessário a Freud dizê-lo, hoje é mais do que evidente que não é o assentimento nem a recusa do paciente que verifica ou que contesta a interpretação. O psicanalista antes disporia, no dizer de Freud, de um plano de reconstrução da verdade histórica do paciente, análogo àquele do qual se serve o arqueólogo para compor a imagem original de uma construção em ruínas. Mas se a eficácia da interpretação somente se deixa avaliar em função dos efeitos produzidos ao longo da cura, no sentido em que ela mobiliza novos elementos narrativos na fala do paciente, seria então o caso de concluir que o analista procede pela via da tentativa e erro, cujo princípio não seria mais do que a verificação empírica dos resultados obtidos?

Tal não me parece ser a conclusão de Lacan, que sempre afirmou o caráter de necessidade da interpretação psicanalítica. Seja no Seminário II, seja no Seminário XI, seja no escrito “L’Étourdit”, Lacan jamais se furtou a combater a noção da interpretação como uma operação sem necessidade intrínseca, “aberta a todos os sentidos” (Lacan, 1964, p. 226). Essa necessidade, todavia, não deve se confundir com aquela que Popper pretendia atribuir aos enunciados do discurso da ciência, pois ao passo que uma asserção científica, que passou pela prova da falseabilidade, deve se mostrar universalmente necessária em seu campo de aplicação, a interpretação se coloca, por sua vez, como asserção cuja necessidade se restringe a uma situação clínica singular. Diversamente do saber científico que se aplica a uma coleção de casos, a interpretação psicanalítica não se vale de regras a priori e não comporta tampouco extensão. Enquanto atividade que se dirige à experiência singular, ela deve ser antes concebida não como um saber, mas como uma virtude interpretativa que faz surgir, sob o dizer modal da demanda do analisante, o necessário que nele se encerra como causa do desejo. A considerar o teorema lacaniano de que uma análise deve produzir, em seu termo um analista, poder-se-ia então, cabe interrogar, falar de uma transmissão da virtude interpretativa?

Temos aqui, como se pode bem ver, uma pergunta cuja fórmula orienta o encaminhamento da resposta que procuramos. O uso do léxico virtude, por oposição ao termo saber (reservado aos enunciados científicos), não é aqui meramente alusivo: ele indica diretamente uma referência da qual Lacan se serve ao menos por duas vezes para pensar o estatuto da interpretação e o problema de sua transmissibilidade. Trata-se do diálogo Ménon, de Platão, que se constrói a partir de uma questão lançada a Sócrates: o jovem Ménon quer saber se a virtude em geral, e em seguida a virtude política, seriam ensináveis e quais seriam, no caso afirmativo, as condições necessárias a sua transmissão.

A referência é, a bem dizer, um tanto paradoxal: percebe-se claramente que Ménon está apto a tudo, menos a ser ensinado. Há, como nota Koyré, uma aproximação cômica na expressão “Ménon, ou da virtude”, que dá o título a esse diálogo: Ménon quer saber de tudo, salvo da virtude, no sentido em que esse conceito deveria verdadeiramente se transmitir (Koyré, 1945, p. 33). Ele pretende conhecer a virtude, mas só sabe enumerar as situações em que ela se aplica. Ora, replica Sócrates, se o fato do círculo ser uma figura não me permite dizer que toda figura seja um círculo, o mesmo se dá no caso da virtude, cujo caso particular não me fornece o conceito genérico. O que é preciso captar é a idéia da virtude como condição anterior e necessária do agir virtuoso. Tal como o matema que, segundo Lacan, por nada significar de particular, transmite-se integralmente, a Idéia platônica, assim concebida, aproxima-se desse ideal matemático (Badiou, 1991, p. 151-52). O conceito genérico de virtude que Sócrates busca, por oposição ao múltiplo de sua manifestação repertoriada por Ménon, é a Idéia de virtude desprovida de toda significação particular.

O que se enuncia, na seqüência do diálogo, é justamente a colocação em prova da transmissão matemática que deve poder ser adquirida por quem quer que seja. Mais do que uma transmissão, Sócrates demonstra que ela é um deixar agir da função significante que ele suscita no escravo de Ménon. Se concedermos então, deixando de lado a discussão quanto à pertinência de sua Teoria das reminiscências, que as matemáticas sejam efetivamente ensináveis, a existência de uma ciência da virtude implicaria, por sua vez, que ela seja ensinável, que haja professores de virtude. É nesse momento do diálogo que chega Anytos, rico burguês de Atenas a quem Ménon pergunta o que fazer para adquirir a virtude. Anytos o encaminha, sem hesitar, às pessoas honoráveis de Atenas, mas Sócrates objeta dizendo que nenhuma dessas pessoas soube transmitir a virtude, nem mesmo a seus filhos.

Anytos se vai zangado e a discussão é retomada no seu início. Uma vez que nada permite dizer que a virtude seja ensinável, Sócrates propõe então que se a conceba como uma orthe-doxa, ou opinião verdadeira, no sentido de uma relação com a verdade não ligada pelo saber da ciência. Tal como as estátuas de Dédalus, a opinião verdadeira seria um dom divino que pode se evadir, por não estar fixada num saber passível de retenção e transmissão (Platon, 1950, p. 553-554). Não obstante, por mais sedutora que essa conclusão pareça, é difícil decidir se ela corresponde de fato ao que pensa Sócrates, ou se antes se trata, como sugere Koyré, de uma resposta irônica endereçada a Ménon. Pois, se uma opinião é verdadeira, contesta Koyré, é a ciência que decide quanto a sua veracidade.

Não era esse, todavia, o ponto de vista de Lacan em 1954, para quem a virtude se definia justamente pela idéia de um acesso à verdade que não pode ser captado por uma ciência ou saber ligado (Lacan, 1954-55, p. 24). É a orthè-doxa desprezada por Sócrates que se deve colocar no centro da palavra fundadora da interpretação, que se distingue de todo saber estabelecido. Se ele então se permitia qualificar Péricles ou Temístocles como analistas, era supondo que a virtude política também era uma aptidão de bem interpretar, ou seja, de operar a partir de uma verdade pontual, anterior à constituição do saber.

Para retornar então ao problema da necessidade da interpretação e da transmissão da virtude de interpretar, o que importa abordar não é o dito ou o enunciado da interpretação, simples veículo de sua potência, mas o dizer ou a enunciação interpretativa, desde onde sua relação com o real se inscreve. Mas do momento em que não nos é tampouco dado tratar o dizer por um meta-dizer, o que então se transmite é mais objeto de uma mostração do que de uma demonstração. O essencial a situar é pois o ponto no qual se produz a opinião verdadeira na estrutura do discurso sobre o qual esse dizer se sustenta. Assim sendo, ao passo que o Lacan de 1954 referia essa operação, de modo ainda indefinido, a um manejo da linguagem, o que ele irá precisar, 18 anos mais tarde, em “L’Étourdit”, é uma manipulação topológica que lhe permite mostrar esse ponto em que se fixa a interpretação, como opinião verdadeira, na estrutura do discurso analítico.

É notável a ousadia do projeto: Lacan visa nada menos do que fixar, mediante uma operação topológica, a virtude enquanto opinião verdadeira que, para Sócrates, permanecia como uma relação com a verdade não fixada numa episteme. Se, por um lado, a topologia lhe serve para significar, mediante o modelo esférico representado pela fita de Möbius, a retroação significante na qual consiste a estrutura da linguagem, o sujeito que dela se pode captar, por outro lado, como puro efeito do dito, é a figura esférica (uma curva fechada de Jordan) que resulta de um corte fechado aplicado sobre a mesma superfície. O recorte fechado é assim o dito do qual o sujeito é o efeito calculável, com o qual nos havemos na interpretação. Mas ainda que o sujeito ali seja circunscrito como um ser por um conceito, esse ser, por si só, não tem nenhum sentido (Lacan, 1973, p. 29, 40). Ele seria no máximo o suporte de uma predicação universal, sem que sequer a existência do sujeito seja requerida.

Assim sendo, do momento em que o desejo se constitui para o sujeito a partir de sua falta-a-ser, a interpretação, ao incidir sobre a causa do desejo, deve revelar o lugar no qual emerge, no discurso do sujeito, o objeto a, que Lacan identifica ao ser do sujeito, subtraído ao sentido que permite o discurso. A interpretação é um dizer que lhe faz ver como se articula a causa de seu desejo ao ponto no qual se fixa para ele, a partir da exclusão do real que não se pode dizer, o universo do discurso. Em razão disso, se a impossibilidade de dizer o verdadeiro do real se motiva, como propõe Lacan, de um matema que situa a relação do dizer ao dito, o dizer da interpretação somente se apreende como um dito, ou opinião verdadeira, na medida em que ele indica a junção do verdadeiro com o real, junção para além da qual a verdade não pode mais ser dita.

O dizer da interpretação se torna assim ensinável pelo fato de que se pode identificá-lo, mediante uma manipulação topológica, como um corte que, realizado sobre a superfície do cross-cap, expõe a articulação do sujeito, como efeito do dito, à estrutura da linguagem em que ele se significa. Trata-se de um corte que, orientado por um ponto escolhido na linha de imersão do cross-cap, destaca de sua superfície uma outra superfície, orientável e esférica, que nada mais é do que o objeto a que dela se separa como ser do sujeito ou causa do desejo. Se a causa do desejo é o que dá consistência (ou roupagem esférica) ao que se apresenta como universo do discurso para o sujeito, o corte da interpretação coloca em evidência a esfericidade da estrutura, desnudando essa roupagem que a suplementa.

Se, pois, o ponto do qual o dizer da interpretação se orienta como corte é “a opinião que pode ser dita verdadeira”, posto que “o dizer (ou o corte) que a contorna a verifica”, ele o é somente, precisa Lacan, por ser o que modifica o que se apresenta como universo do discurso, para o sujeito, ao ali introduzir a doxa como real (Lacan, 1973, p. 38-40). A orthe-doxa se transmite assim em matema por se ancorar na fixion desse ponto em que se suspende o sentido produzido no discurso do sujeito, mas sem que esse ponto seja ensinável previamente por um saber transcendente, ou, como em Platão, pela inspiração de um sopro divino. Não é tampouco através da bela forma, que faz das estátuas de Dédalus objeto de cobiça humana que iremos reconhecê-lo, mas pelos efeitos de subversão somente verificáveis, em suma, na própria estrutura do discurso analítico.

Notas

1. Vale lembrar, em favor desse argumento, que a família de Freud, nesse período, freqüentava a família de Popper, em Viena, e que a publicação do clássico Logik der Forschung, em que a questão da falseabilidade das proposições científicas já se colocavam, data de 1934 (três anos antes, portanto, de Konstruktionen in der Analyse). Para um estudo posterior, mais sistemático do tema ver Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge, no qual Popper (1963, p. 35-38) endereça diretamente sua crítica à psicanálise (sobretudo em sua vertente adleriana, denunciando o caráter circular das justificativas das interpretações psicanalíticas), assim como à teoria marxista da história e à psicologia individual. A se ler igualmente a crítica de Politzer e de Wittgenstein, assim como o inigualável estudo de Milner (1996, p. 60-69).
 

Referências Bibliográficas

Badiou, A. Le mathème est-il une idée. In: Lacan avec les philosophes, Paris: Albin Michel, 1991, p. 151-52

Freud, S. (1937) Análise terminável e interminável. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1977, vol. XXIII.

Lacan, J. (1954-55) Le Séminaire: livre II - Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Paris: Seuil, 1978.

_______. (1964) Le Séminaire: livre XI – Les quatres concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris: Seuil, 1973.

_______. (1973) L'Etourdit. In: Silicet, n. 4. Paris: Seuil.

KOYRE, A. (1945) Introduction à la lecture de Platon. Paris: Gallimard, 1962.

Milner, J.-C. (1996) L’Oeuvre Claire. Paris: Seuil.

Platon. Ménon où de la vertu. In: Platon: Oeuvres complètes. Paris: Gallimard , 1950.

Popper, K. (1963) Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge. New York: Routledge.

 

Texto recebido em: 13/04/2007.

Aprovado em: 10/07/2007.