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Laboratório de Ensino

LÍNGUA, LINGUAGEM E FALA

Andréa Martello (FAPERJ/PPGTP/UFRJ)
Lívia Beatriz Mattos Santana (PIBIC/UFRJ)

Logo no começo de seu Curso de Linguística Geral, Saussure se vê diante da dificuldade de definir o objeto de estudo da lingüística, uma vez que o campo da linguagem se apresentava muito vasto e difícil de ser trabalhado por apresentar diversos aspectos a serem abordados. Saussure considera que “tomada em seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita”. (SAUSSURE, 2000, p. 17), seu conjunto global “é incognoscível, já que não é homogêneo...” (SAUSSURE, 2000, p. 28). É desta forma que a bifurcação língua/fala é a primeira a se impor quando se procura estabelecer a teoria da linguagem.

Para superar este impasse, ele nos sugere que “é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações de linguagem” (SAUSSURE, 2000, p. 16). Diante dos fatos lingüísticos que se apresentam de formas tão multifacetadas, a língua talvez pudesse apresentar uma definição mais autônoma. 

A questão, então, se coloca:

 
“Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. (...) A língua constitui algo adquirido e convencional”. (SAUSSURE, 2000, p. 17)







Para facilitar o entendimento do que é a língua, Saussure a diferencia da fala, sendo aquela o que é social e essencial, enquanto esta é o que há de individual, acessório e mais ou menos acidental (SAUSSURE, 2000,p. 22). A fala (parole), portanto, é entendida como secundária no estudo da linguagem e pode ser entendida como o uso individual que o falante faz do código da língua.

Tendo-se compreendido tal diferença, pensamos que a língua

 
“trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, num cérebro dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo”. (SAUSSURE, 2000, p. 21)

“A língua não constitui, pois, uma função do falante: é o produto que o indivíduo registra passivamente”. (SAUSSURE, 2000, p. 22)

É nesta medida que Saussure aponta para a interdependência da fala e da língua, pois “a língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça; historicamente, o fato da fala vem sempre antes.” (SAUSSURE, 2000, p. 27)

Concentrando-nos agora no campo da língua, vimos que ele compreende o principal sistema de signos que exprimem idéias no âmbito da linguagem. Mas o que seriam esses signos? Saussure diz que “o signo lingüístico une não uma coisa a uma palavra, mas um conceito a uma imagem acústica” (SAUSSURE, 2000, p. 80), o que mais tarde ele chama por significado e significante, respectivamente. Completa ainda dizendo que “esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro.” (SAUSSURE, 2000, p. 80) Cabe dizer que tanto o domínio do significado quanto do significante são amorfos e indistintos.

 
“O papel característico da língua frente ao pensamento não é criar um meio fônico material para a expressão das ideias, mas servir de intermediário entre o pensamento e o som, em condições tais que uma união conduza necessariamente a delimitações recíprocas de unidades.” (SAUSSURE, 2000, p. 131).

Ou seja, a união de um significado a um significante só se estabelece na medida em que se dá o aparecimento de uma língua.
Podemos aproximar essa noção de signo linguistico ao que Freud chamou no seu texto O Inconsciente de “apresentação consciente do objeto”, pois este também reclama dois domínios: a apresentação da palavra e a apresentação da coisa. (FREUD, 1915, p. 229).  Uma palavra, enquanto uma apresentação complexa, não tem um sentido próprio, ela só “adquire seu significado ligando-se a uma ‘apresentação objeto’.” (FREUD, 1915, p. 243). 

Freud já havia apresentado reflexões proximas a estas em sua monografia sobre as afasias de 1891 onde para tratar do assunto descreve o aparelho de fala.  Um trecho de tal escrito se encontra no O inconsciente (1915), como Apêndice C Palavras e coisas. Nele, defende que a apresentação da palavra e a apresentação do objeto são resultado de um complexo de associações de certos elementos. Ao passo que a apresentação da palavra seria fruto da combinação entre quatro elementos: ‘imagem sonora’, ‘imagem visual da letra’, ‘imagem motora da fala’ e ‘imagem motora da escrita’ (FREUD, 1915, p. 240), a apresentação objeto advém de uma grande variedade de apresentações visuais, acústicas, táteis, cenestésicas e outras. (FREUD, 1915, p. 244) Freud chega a acentuar que “a apresentação do objeto é vista como uma apresentação que não é fechada e quase como uma que não pode ser fechada, enquanto  que a apresentação da palavra é vista como algo fechado, muito embora capaz de extensão” (idem). 

Acentua que "a patologia das perturbações da fala leva-nos a asseverar que a apresentação da palavra está ligada em sua extremidade sensorial (por suas imagens sonoras) à apresentação do objeto." (p.245). Freud se utiliza dessas prerrogativas para afirmar que há duas espécies de perturbação da fala: 1) afasia verbal, de primeira ordem onde são perturbadas as associações entre os elementos da palavra e, 2) uma afasia assimbólica no qual é perturbada a associação entre a apresentação de palavra e a apresentação do objeto.

É interessante notar que Freud em 1891 insiste, tal como Saussure, que uma relação simbólica diz respeito muito mais às ligações entre apresentação objeto e apresentação de palavra do que entre a apresentação de objeto e o próprio objeto. Neste ponto, os dois autores apresentam um pensamento convergente: o de rechaçar o referente e sustentar a relação simbólica no campo estrito do psíquico, dividido entretanto em dois planos, o da expressão (apresentação de palavra em Freud e significante em Saussurre) e do conteúdo (apresentação de objeto em Freud e significado em Saussure). 

Cabe observar que em 1915, em O inconsciente, a união entre a apresentação da palavra com a apresentação da coisa é afirmada como uma característica do sistema Consciente-Pré-consciente, feita as expensas de uma hipercatexia, que se define por ser uma ação onde os dois sistemas, consciente e inconsciente, colaboram e cooperam:

 
"O sistema Ics. contém as catexias da coisa dos objetos, as primeiras e verdadeiras catexias objetais; o sistema Pcs. ocorre quando essa apresentação da coisa é hipercatexizada através da ligação com as apresentações da palavra que lhe correspondem.  São essas hipercatexias, podemos supor, que provocam uma organização psíquica mais elevada, possibilitando que o processo primário seja sucedido pelo processo secundário, dominante no Pcs" (FREUD, 1915, p. 230).

No caso da neurose, o recalque separa apresentação palavra e apresentação de objeto, ficando a primeira ausente da consciencia e a segunda sujeita em ampla medida a deslocamentos e condensações resultando em formações do inconsciente como sonhos, sintomas e atos falhos:

"Ora, também estamos em condições de declarar precisamente o que é que a repressão nega à apresentação rejeitada nas neuroses de transferencia: o que ela nega à apresentação é a tradução em palavras que permanecerá ligada ao objeto. Uma apresentação que não seja posta em palavras, ou um ato psíquico que não seja hipercatexizado, permanece a partir de então no Ics. em estado de repressão" (FREUD, 1915, p. 230).

Pensar a apresentação consciente do objeto como a associação entre a apresentação palavra e a apresentação de objeto também ajuda Freud a pensar as diferentes formações substitutivas nas esquizofrenias (neuroses narcísicas). Ele analisa como nas esquizofrenias os sintomas se expressam na forma peculiar como as palavras se colocam:

 
“Se perguntarmos o que é que empresta o caráter de estranheza à formação substitutiva e ao sintoma na esquizofrenia, compreenderemos finalmente que é a predominância do que tem a ver com as palavras sobre o que tem que ver com as coisas [...] Onde as duas - palavras e coisas - não coincidem, a formação de substitutos na esquizofrenia diverge do que ocorre nas neuroses de transferência.” (FREUD, 1915, p. 119).

Isso se dá porque nas esquizofrenias, a palavra esta sujeita ao processo primário, passível de condensação e deslocamento, tal qual nos processos oníricos dos neuróticos. Isso vem nos dar notícias de que a apresentação inconsciente compreender somente a apresentação coisa somente é verdade no caso das neuroses de transferência. No caso das esquizofrenias, a apresentação inconsciente abarca somente a apresentação palavra.  O importante a acentuar é que nas patologias o que temos são os dois sistemas, consciente e inconsciente, funcionando de modo independente.

 

 Referência Bibliográfica:
GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana, volume 1. 7ºED. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
FREUD, S. O Inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1915.
SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. 24º ED. São Paulo: Editora Cultrix, 2000.