Laboratório de Ensino
FORACLUSÃO
Cristina Antunes
Definimos foraclusão (Verwerfung) a partir de Lacan, como a rejeição de um significante primordial no simbólico (1988:174). Esta operação tem o efeito de prescrever o direito de servir-se de um álibi o Nome-do-Pai (Coelho dos Santos, 1999:51).
Deus é o significante que, na Antigüidade e na Idade Média, ordena e dá sentido ao mundo. A Idade Média, na tradição católica, é paradigmática quanto a este aspecto. Cabe aqui apontar uma diferença: o Deus católico, diferentemente do Deus judaico, não fala diretamente aos fiéis, mas por intermédio de mediadores a Igreja e os santos. Já há um certo distanciamento de Deus em relação ao mundo. Entretanto, a sua palavra, a sua mensagem, habita o mundo pela voz da Igreja.
Regnault (1993) analisa a organização medieval da suma, que na sua perspectiva, contrapõe-se à meditação cartesiana. A autoridade da suma advém da autoridade dos textos (sagrados) e não das coisas do mundo. Trata-se da leitura dos signos do mundo e esta leitura narra, como nos céus, a glória de Deus (1993:21). A suma ordena toda a realidade, ordena o saber a partir da palavra de Deus, interpretada nas escrituras. A suma, portanto, regula o saber, ou seja, o que se deve saber.
Nesse sentido, os fenômenos do mundo são signos a se decifrar neles a mensagem de Deus. Lacan assinala que a noção que o significante significa algo, de que há alguém que se serve desse significante para significar algo, chama-se Signatura Rerum. É o título de uma obra de Jacó Boêmio. Isso queria dizer que, nos fenômenos naturais, o nomeado Deus está ali para nos falar a sua língua (1988:211).
A operação de foraclusão de Deus do mundo, que retira a significação do campo da ciência, desvela funcionamento autônomo do significante: ele não significa nada e sua inserção no real produz invenções.
Para que essa afirmativa possa ser bem compreendida é necessário explorar o laço estrutural entre a operação científica e a psicose. Tal procedimento, no entanto, não visa afirmar que a ciência seja psicótica. Nosso caminho apóia-se no método usado por Freud, no artigo Três ensaios sobre a sexualidade (1905), no qual ele analisa as aberrações e perversões sexuais para delas extrair o traço estrutural característico do funcionamento pulsional no ser falante: a ausência de um objeto adequado a priori (este se inventa) e o movimento da pulsão em direção à satisfação.
É nessa perspectiva que aproximamos psicose e operação científica. O traço estrutural que as articula é a foraclusão do Nome-do-Pai, cujo efeito evidencia a autonomia do significante. Os balizadores dessa análise são o artigo As estruturas freudianas da psicose e sua reinvenção lacaniana, de Coelho dos Santos (1999), bem como as referências de Lacan, no Seminário 3 (1988).
Para Coelho dos Santos, o primeiro ponto estrutural que distingue neurose e psicose consiste em que, na primeira, o pai se apresenta como agente da Lei, encobrindo, com seu desejo, o campo enigmático, não situável, da origem do desejo (1999:56). Na psicose, verifica-se a impossibilidade de se recorrer ao mito do pai como representante da verdade da Coisa (Lacan, 1988:232). Disso resulta o aprofundamento da dimensão da fala, o comparecimento do significante vazio de significação, revelando o verdadeiro referente da linguagem: o objeto a. O que a operação de foraclusão desvela é que o significante não se refere às coisas, mas inventa objetos. A psicose demonstra, exatamente, a proliferação autônoma do significante (Coelho dos Santos, 1999:47, 57).
Entenderemos esta autonomia a partir da definição do inconsciente oriunda da experiência clínica com a psicose, hipótese de Coelho dos Santos referente à leitura de Lacan acerca do inconsciente. Em Freud, o inconsciente define-se, na neurose, através da clivagem realizada pelo recalque entre as palavras e as coisas. Na psicose, o inconsciente se pronuncia ao tomar as palavras como coisas; a palavra não remete a um significado, mas exibe o vazio do significante, elevando-o à condição de significante puro. Isto é [...] o mesmo que apontar suas propriedades como puro objeto e revelar suas propriedades como inventadas. A psicose realiza o que a neurose obscurece: a revelação de que o significante não significa nada (Coelho dos Santos, 1999:62).
Este é o passo da ciência moderna: não há quem se sirva do significante para significar. Ele é ejetado do campo da significação e se apresenta no real. Para Guenancia (1991) o ponto fundamental a se conservar, com respeito à análise sobre a ciência cartesiana, é a concepção de que esta se coloca num plano anterior à divisão entre a forma (palavra) e o conteúdo (coisas, significados), ou seja, ela opera no nível da estrutura significante, onde as palavras são as coisas posição muito mais de uma ciência que cria, inventa objetos, do que daquela que os descobre ou conhece.
Coelho dos Santos (1999). Isso é uma estrutura significante: goza-se de um corpo. In: Jimenez, S. e Barros da Motta (1999). O desejo é o diabo. Contracapa Ed.:RJ.
Coelho dos Santos (1999). As estruturas freudianas da psicose e sua reinvenção lacaniana. In: Birman, J. (1999). Sobre a psicose. Contracapa Ed.:RJ.
Freud, S. (1980). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Obras Completas, Vol. VII. Imago:RJ.
Guenancia, Pierre (1991) Descartes. JZE:RJ.
Lacan, J. (1988). O Seminário, Livro 3: a psicose. JZE:RJ.
Regnault, F. 1993. Dios es inconsciente. Manantial:Buenos Aires.
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