DELÍRIO
Andréa Martello (FAPERJ/PPGTP/UFRJ)
Renata Rosa da Costa (PIBIC/UFRJ)
Um dos principais aspectos da teoria freudiana acerca do delírio reside no fato desta considerá-lo como uma tentativa de cura, uma reconstrução da relação do indivíduo com o mundo externo. No Rascunho H, onde trata da paranoia, Freud a respeito das concepções de delírio refere que para a psiquiatria, as ideias delirantes seriam distúrbios intelectuais, já em sua concepção, tratava-se de uma perturbação afetiva cuja força se deve a um conflito, a um processo psicológico. (FREUD, 1950[1892-1899], p.124)
Ao falar do delírio na histeria, o relaciona a um material que foi rechaçado da consciência. O retorno (ou somente do afeto aflitivo ou também da lembrança) desse material é que caracterizaria o delírio. Dessa forma, nos delírios histéricos, estaria em jogo a emergência de um material sob a forma de ideias e impulsos à ação que a pessoa rechaçou e inibiu em seu estado consciente. A teoria revela que algo parecido se aplicaria aos sonhos, que trazem associações antes rejeitadas ou interrompidas durante o dia. Freud vai concluir, nesse sentido, que a ideia delirante é sustentada com a mesma energia com que a ideia penosa é rechaçada do ego; e, por conseguinte, que aqueles que deliram “amam seus delírios como amam a si mesmos”. (1950[1892-1899], p.127)
Em “Interpretação dos sonhos” (1900), os delírios são retratados como obra da censura cujo esforço suprime tudo aquilo a que desaprova, de maneira que o que resta se torna muito desconexo.
Na análise do caso Schreber, Freud aponta o delírio como tentativa de cura. É por meio do delírio que o doente volta a se relacionar com o mundo externo, mesmo que tal relação tenha suas peculiaridades. Além dessa consideração, no mesmo artigo o delírio é tratado como realização do conteúdo de um sonho, a saber, do desejo de ser uma mulher, representado na construção delirante pela transformação de sexo que ocorreria com o paciente. (FREUD 1911/2010)
Para falar sobre como se dá o delírio, em “Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos” (1917), são expostas as vicissitudes da exigência pulsional inconsciente. Quando esta toma o caminho normal na vida de vigília, onde o impulso exerce pressão do pré-consciente para a consciência, caracterizar-se-ia o delírio. Esse caminho é contraposto ao estado de sono e se torna possível pela abolição do teste de realidade na psicose. (FREUD, 1917/1974)
Em “Neurose e Psicose” (FREUD, 1924), o delírio é descrito como uma espécie de “remendo” posto no lugar onde estaria estabelecida uma fenda na relação entre o ego e o mundo externo. No delírio uma experiência interna é tratada a nível de percepção, não há um jogo flexível entre verdade e realidade. Não há espaço para indagação, pois o deliro é visto nesse contexto não somente como uma realidade possível, mas como a única que de fato se tornou possível. (MIJOLLA, 2005)
Ao longo de sua obra Freud aponta diversas modalidades de delírio, como o de ser observado, de inferioridade, de ciúme e religiosos. No tocante as psicoses, já em 1937, em “Construções em análise” traz a hipótese de que os próprios delírios e as alucinações que lhes são incorporadas, não sejam tão independentes dos impulsos inconscientes como a principio se supõem.
Neste trabalho de 1937, tem-se a noção de que no delírio, o afastamento da realidade é explorado pelo impulso recalcado ascendente a fim de forçar um conteúdo na consciência, as resistências despertadas no processo e a inclinação à realização de desejo são responsáveis pela deformação e pelo deslocamento do que é recordado. Mais uma vez, o mecanismo dos sonhos se mostra similar ao da loucura. Enquanto que neste último caso, o sono é o fator que possibilita a regressão, no outro é o afastamento da realidade que o torna possível.
Freud conclui o mesmo texto afirmando que essa visão dos delírios não é inteiramente nova, porém enfatiza que a essência dela não é ver que a loucura tem método, mas que porta um fragmento de verdade histórica sendo plausível supor que a crença compulsiva que liga os sujeito aos seus delírios derive sua força exatamente de fontes infantis desse tipo.
Com bases nessas linhas de pensamento, o caminho do tratamento é sugerido:
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Abandonar-se-ia o vão esforço de convencer o paciente do erro de seu delírio e de sua contradição da realidade, e, pelo contrário, o reconhecimento de seu núcleo de verdade permitiria um campo comum sobre o qual o trabalho terapêutico poderia desenvolver-se. Esse trabalho consistiria em libertar o fragmento de verdade histórica de suas deformações e ligações com o dia presente real, e em conduzi-lo de volta para o ponto do passado a que pertence. (FREUD, 1937/1996 p.303) |
A conclusão é de que a transposição de material do passado esquecido para o presente ou para o futuro, ocorrência habitual nos neuróticos, também se mostra no caso das psicoses. Deste modo a mesma proposição que Freud estabeleceu para as histéricas, também se aplica aos delírios, ou seja, aqueles que lhes são sujeitos estão sofrendo de suas próprias reminiscências. (1937/1996 p. 304)
Por fim Freud não resiste à tentação da analogia e afirma que as construções em análise são equivalentes aos delírios. A diferença é que nas psicoses isso é usado para substituir a realidade. Do mesmo modo que o delírio garante sua força porque insere uma verdade histórica no lugar da realidade, a construção em análise garante sua eficácia ao conseguir recuperar um fragmento da experiência vivida.
Estende mais ainda suas conclusões e abrange os delírios construídos pela humanidade em sua história, delírios religiosos, por exemplo e que exerceram um poder tão extraordinário sobre os homens devido também ao elemento de verdade histórica que trouxeram á tona.
Referências Bibliográficas:
Freud, Sigmund. (1892-93). Um caso de cura pelo hipnotismo com alguns comentários sobre a origem dos sintomas histéricos através da contravontade. Rio de Janeiro: Imago, ANO página. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1).
______ (1950[1892-1899]) Rascunho H. Rio de Janeiro: Imago, 1895-1969 p. 243-380/. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1).
______ (1924) Neurose e Psicose. Rio de Janeiro: Imago, ANO p. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).
______. (1917). Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1974. p. 253-267. (ESB, 14).
______. (1911). Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p .13-107 (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, volume 10).
_____. (1937). Construções em análise. Rio de Janeiro: Imago,
MIJOLLA,A (2005) Dicionário internacional de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago (Volume I) |