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Da eficácia simbólica à extração do objeto a: o mito

 

Luis Adriano Salles Souto
Psicólogo, Especialista em atendimento clínico, ênfase em psicanálise pela Clínica de Atendimento Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Mestre em Psicologia Social e Institucional / UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
E-mail: salles_rs@yahoo.com.br

 

Marta Regina de Leão D’Agord
Psicóloga, Psicanalista
Doutora em Psicologia / UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia / UFRGS (Porto Alegre, Rio grande do Sul, Brasil)
E-mail: mdagord@terra.com.br

 


Resumo

Este trabalho parte da “análise estrutural do mito” e do conceito de “eficácia simbólica” - ambos estabelecidos por Lévi-Strauss – para interrogar, em um segundo momento, se o mito não poderia ser considerado também a forma privilegiada da enunciação de um “mais-além” da eficácia simbólica. Para isso, os autores recorrem à discussão do que implica a formulação, por Lacan, do matema S(Ⱥ), fundamental a uma noção de estrutura que comporte o sujeito e a noção de que o mito, para-além de sua eficácia simbólica, carrega consigo a marca de um impossível.

Palavras-chave: psicanálise, eficácia simbólica, estrutura, discurso, objeto a, mito.

 

Introdução

Em 1970, num programa de rádio belga, perguntava-se a Lacan sobre a possibilidade de existência de um campo que fosse comum à psicanálise, à etnologia e à linguística, considerando-se a noção de estrutura. A resposta de Lacan:

“A linguística fornece o material da análise ou o aparelho com que nela se opera. Mas um campo só é dominado por sua operação. O inconsciente pode ser, como disse, a condição da linguística. Esta, no entanto, não tem sobre ele a menor influência. É que ela deixa em branco o que surte efeito nele: o objeto a [...]” (Lacan, 1970, p. 407, grifo nosso).

Que o inconsciente seja a condição da linguística e que Freud, desse modo, possa tê-lo antecipado como aparelho que mais tarde Lacan iria formalizar a partir de alguns pressupostos estabelecidos pelos linguistas não significa, entretanto, que linguística e psicanálise estejam interessadas num mesmo objeto. Do mesmo modo, tampouco se concebe que possa haver equivalência - apesar de algumas possíveis proximidades - entre o campo fundado por Lévi-Strauss e aquele que Lacan reestabelece a partir da leitura de Freud. Se é assim, então, como entender as aproximações e distanciamentos que essas disciplinas mantêm entre si sem desconsiderar que a noção de estrutura, presente em todas elas, não é a mesma nos campos que cada uma acaba por fundar?

Longe de esgotarmos a questão que se coloca, este artigo pretende analisar algumas de suas implicações. Para tanto, nossa proposta não visa a definições conceituais exaustivas, mas à elaboração de um percurso no qual a noção de mito nos permite situar o objeto a como a invenção lacaniana que impossibilita a existência de um campo comum entre essas disciplinas.


Inconsciente e mito em Lévi-Strauss

Lévi-Strauss funda a antropologia estrutural inspirado em duas vertentes: de um lado, tal como vemos em “Introdução à obra de Marcel Mauss”(1950), encontra-se o reconhecimento prestado às descobertas de Troubetzkoy e Jakobson, os fundadores da linguística estrutural; de outro, encontra-se o elogio a Marcel Mauss, antropólogo que se esforçou por estabelecer o estatuto da magia e do sistema das trocas a partir de noções da linguagem, um fato determinante para o afastamento da investigação etnológica tanto das concepções “emocionais e místicas” quando das “utilitaristas”1 que sustentavam a maior parte dos estudos no campo da antropologia até então. É, portanto, sob essas duas influências que Lévi-Strauss irá reconhecer no domínio do parentesco ciclos de reciprocidade cujas leis determinantes podem ser evidenciadas através de um raciocínio dedutivo – leis essas que permitem definir o parentesco como um domínio que de outra forma pareceria submetido ao puro arbítrio.

A linguística estrutural interessa a Lévi-Strauss, então, por ser o campo em que originalmente se inaugura um método através do qual a pesquisa etnológica poderá, então, ultrapassar os fenômenos conscientes e atingir uma infraestrutura inconsciente que precisa ser estabelecida pelo antropólogo a partir dos dados da observação. Já em 1945, em seu artigo “Análise estrutural em linguística e antropologia”, Lévi-Strauss (1945) dizia ter retido da linguística um aspecto fundamental: ela trata os termos de uma análise não como entidades independentes, autônomas, mas fundamentalmente a partir das relações que eles estabelecem entre si. Sem esse modelo, ressalte-se, nem um empreendimento como o da análise das estruturas do parentesco e nem a definição do social como um sistema entre cujas partes há leis que não se revelam nos dados que a realidade fornece teriam sido possíveis.

Essa infraestrutura não aparente, ressalte-se, ganha na teoria de Lévi-Strauss a denominação de “pensamento inconsciente”. Trata-se, aqui, de uma instância estruturante que não se reduz a conteúdos, mas que deve ser tomada como a forma a que todo conteúdo particular, seja ele individual ou coletivo, precisa estar submetido para alcançar uma significação, ou seja, para transformar-se em discurso. Dito de outro modo, é somente através da operação de um conjunto específico de leis sobre algo que vem de outra parte – o léxico individual ou coletivo, como assinala Lévi Strauss - que o discurso se realiza e que a função simbólica se cumpre (Lévi-Strauss, 1949). Antes de nos determos no que implica essa função, vejamos como Lévi-Strauss propõe que o mito seja analisado tomando-se como referência o método estrutural estabelecido pela linguística.

Da mesma forma como o linguista, a partir de Saussure, encontra na língua a estrutura de que depende a fala, a análise estrutural aos mitos possibilita que se opere uma separação entre o que seria o enredo mítico - ou seja, a história mais ou menos fantástica que se desdobra no fluxo da narrativa - e aquilo que, por outro lado, constitui a estrutura permanente dessa narrativa. Com isso, o método empregado por Lévi-Strauss privilegia um certo arranjo de elementos que, juntos, formam um sistema sincrônico que só se revela pelo trabalho lógico que se impõe à narrativa. Esse sistema, afirma Lévi-Strauss, prevalece sobre os enredos particulares: “a forma mítica tem precedência sobre o conteúdo da narrativa” (Lévi-Strauss, 1949, p. 235).

Tal como ocorre em relação à língua e à fala, a análise do mito também implica dois níveis distintos. O primeiro, o eixo sincrônico, corresponde ao aspecto estrutural do mito – corresponde à língua, para Saussure; o segundo, denominado diacrônico, está marcado por um tempo que é irreversível e diz respeito à linearidade em que a fala e também o enredo mítico vão encontrando seus desdobramentos. É assim que a narrativa mítica, com Lévi-Strauss, pode ser decomposta e analisada a partir dessas duas noções de tempo, já que é pelo desenvolvimento diacrônico da história que o arranjo sincrônico do sistema pode ser revelado:

“Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: ‘antes da criação do mundo’ ou, em todo caso, ‘faz muito tempo’. Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que esses acontecimentos, que se supõe terem acontecido em um momento do tempo, formam também uma estrutura permanente. Esta se refere simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro” (Lévi-Strauss, 1955, p. 241).

O modo como essa estrutura permanente pode ser revelada tem no arranjo dos mitemas - frases curtas que agregam as sequências essenciais da narrativa e nas quais um predicado é sempre atribuído a um sujeito - o seu ponto de sustentação. Para Lévi-Strauss, os mitemas independem do enredo, da história que o mito conta; são, nas palavras de Vernant, “relações de oposição e homologia” – relações essas que caracterizam o que é próprio à função simbólica - independentes da ordem e do conteúdo da narrativa (Vernant, 1999, p. 211). O que nos ensina, então, o antropólogo francês é distribuir as frases-relações que são os mitemas em dois eixos, o horizontal e o vertical. No primeiro, tem-se a ordem da narrativa; no segundo, agrupam-se os mitemas por uma espécie de afinidade temática, de modo que esse eixo possa ser entendido como aquele que contém um feixe de relações que se correspondem ou se opõem. Para Lévi-Strauss, as verdadeiras unidades constitutivas do mito não são as relações isoladas, mas sim esses feixes de relações que, uma vez combinados, passam a adquirir uma função significante. É a partir desse agrupamento de feixes de relações num sistema de duas dimensões - sincrônica e diacrônica - que a estrutura, então, se revela.

Esse método evita o que até então constituía uma grande dificuldade para o estudo dos mitos, a saber, uma espécie de busca, dentre as diversas versões de um mito, daquela que seria a autêntica: “Nós propomos, pelo contrário, definir cada mito pelo conjunto de todas as suas versões” (Lévi-Strauss, 1955, p. 250). Para isso, assumindo o pressuposto de que todas as versões de um mesmo mito têm igual valor – não há uma que seja mais verdadeira -, Lévi-Strauss demonstra que todas as diferenças identificadas no eixo diacrônico são apenas variações de algo que não se modifica: a estrutura do mito.

Diferentemente da maneira usual como se lê um texto - da esquerda para a direita, de cima para baixo -, proceder à análise estrutural do mito implica uma leitura, da esquerda para a direita, das colunas que constituem os referidos feixes de relação – os mitemas -, de modo que cada coluna seja lida como um todo. A hipótese é de que as relações agrupadas nessas colunas contêm um traço comum: no mito de Édipo, o escolhido por Lévi-Strauss para ilustrar o seu método, a mesma relação de oposição que a quarta coluna mantém com a terceira pode ser observada na relação que a segunda mantém com a primeira, o que permite inferir que esse par de opostos é homólogo. É essa homologia implicada na estrutura do mito, então, que acaba por torná-lo uma ferramenta lógica. Para entendermos o que isso significa, retomemos o mito de Édipo a partir da decomposição operada por Lévi-Strauss:

Cadmo busca sua irmã, Europa, raptada por Zeus      
    Cadmo mata o Dragão  
  Os espartanos se exterminam mutuamente    
      Lábdaco (pai de
Laio) = coxo (?)
  Édipo mata seu pai, Laio    
      Laio (pai de
Édipo) = torto
    Édipo imola a Esfinge  
      Édipo = pé inchado
(?)
Édipo casa-se com Jocasta, sua mãe      
  Etéocles mata seu irmão, Polinices    
Antígona enterra seu irmão, Polinices, violando a proibição      

Tabela da análise estrutural dos mitos (Lévi-Strauss, 1955, p.246)

Ao ser decomposto em quatro colunas, esse mito revela relações de parentesco sobre-estimadas e depois subestimadas e uma autoctonia recusada e depois confirmada. Há, assim, uma homologia entre esses dois pares de opostos e é isso o que confere à narrativa mítica o estatuto de ferramenta lógica: o mito é uma linguagem.

É por situar que a supervalorização do parentesco de sangue está para a subvalorização desse parentesco bem como o esforço para escapar à autoctonia está para a impossibilidade de chegar a ela que Lévi-Strauss, a partir da estrutura do mito de Édipo, revela que os termos utilizados na narrativa indicam relações de exclusão e implicação, sem que isso possa ser superado. Para Vernant, essa impossibilidade de superação está associada a um impossível que caracteriza o que é próprio da função significante: não se pode alcançar um equilíbrio entre afirmações que são incompatíveis - mas dependentes - entre si. O que se tem, então, é uma oscilação infinita entre os dois polos opostos de “uma afirmação excessiva” ou de uma negação radical” (Vernant, 1999, p.212).

A leitura do mito, assim, dá-se do mesmo modo como se lê uma partitura: no eixo horizontal ou diacrônico – o da melodia, vai-se da esquerda para a direita e página após página; no sincrônico, vai-se de cima abaixo em linha vertical, eixo em que as notas formam a harmonia em suas repetições intervalares e diferenciais. A obra só adquire sentido quando se lê as relações das notas nessas duas dimensões.

Essa breve descrição das análises empreendidas por Lévi-Strauss são suficientes para entendermos de que forma o mito individual de cura construído no percurso de uma análise por um neurótico é tributário da subversão lacaniana da noção de estrutura. Para tanto, antes, será preciso avançarmos em direção à conceituação de objeto a, algo que faremos a partir da definição do conceito de eficácia simbólica.


A eficácia simbólica


No texto “A eficácia simbólica”, Lévi-Strauss (1949) analisa um ritual xamanístico praticado por índios panamenhos que tem por objetivo viabilizar um parto difícil. Nesse ritual, o xamã coloca em embate os espíritos protetores que penetram no corpo da parturiente para resgatar o bebê dos poderes maléficos de Muu, o espírito que prende a criança ao corpo da mãe. Entoado como um canto, esse mito restitui à mulher aquilo de que ela estava privada. Vejamos do que se trata.

Baseando-se nos conceitos da linguística saussuriana, o antropólogo propõe que o mito entoado pelo xamã tem a função de fornecer um enredo coerente para uma experiência que se encontra impossível de ser significada: a cura – o parto levado a termo, no caso - consiste em “tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos e aceitável, para o espírito, as dores que o corpo se recusa a tolerar” (Lévi-Strauss, 1949, p. 228). Ao contrário da explicação científica, que liga um padecimento a uma causa “exterior”, no pensamento mágico o que importa é integrar elementos se apresentam como caóticos num sistema coerente e compartilhado por todos. Se é assim, o que se destaca na cura que o xamã conduz é a capacidade que a narrativa mítica tem de ofertar à parturiente uma significação para as suas dificuldades. O mito que leva à cura, portanto, articula o que de outro modo encontrava-se desarticulado: ele é a expressão verbal do problema vivido fisiologicamente.

O que Lévi-Strauss trata de explicar é como procedimentos como esse podem atuar sobre funções fisiológicas. Para isso, estabelece que no pensamento mágico é a homologia entre o corpo e o psiquismo o que garante a eficácia simbólica. Se é assim, não se deve concluir que o mito ofertado à parturiente seja outra coisa que não uma detalhada narrativa pela qual, termo após termo, o xamã oferece uma significação ao insuportável do que a mulher vive através da descrição de personagens, cenas e lugares que são interiores ao espírito da enferma e homólogos, portanto, ao que ela experimenta em termos fisiológicos. Dito de outro modo, o caminho de Muu, por exemplo, não “representa” aquilo que “na verdade” é a vagina: o caminho de Muu é, no sistema indígena, o que nós, ocidentais, denominamos vagina, e o que o xamã faz é “oferecer à sua doente uma linguagem na qual se podem exprimir imediatamente estados não-formulados e de outro modo informuláveis”2 (Lévi-Strauss, 1949, p.228).

A técnica da narrativa visa, pois, à reconstituição de uma experiência real na qual o mito nada mais faz do que substituir os protagonistas e nomear aquilo que não tem sentido e é vivido como pura incoerência. Nas palavras de Lévi-Strauss, o mito que o xamã encena tem por finalidade “descrevê-las [as dores] à doente e nomeá-las, de lhas apresentar sob uma forma que pudesse ser apreendida pelo pensamento” (Lévi-Strauss, 1949, p. 225). A cura, pois, consiste em tornar aceitáveis o que o espírito se recusa a tolerar, e o mito é o que permite à mulher reintegrar o que é vivido no corpo num conjunto de termos implicados mutuamente e que formam um todo coerente. Em outros termos, é porque o mito articula em forma de linguagem o que a parturiente vive de forma desarticulada e incoerente que ele se realiza como discurso e é simbolicamente eficaz: ele cura. O mito é, assim, fundamentalmente uma forma a que se submete o que antes era vivido afetiva e desordenadamente.

Quando Lévi-Strauss concebe a psicanálise como uma forma moderna de xamanismo, considera que tanto o psicanalista quanto o xamã operam de forma semelhante: na técnica psicanalítica, o neurótico liquida o seu padecimento ao elaborar um mito individual que reintegra os afetos recalcados em sua experiência psíquica. A cura, assim, opera-se na presença de alguém que o escute e que acaba por inserir-se, transferencialmente, na vida psíquica do paciente; no caso do xamanismo, por outro lado, é o xamã que atua como protagonista do relato mítico capaz integrar na experiência psíquica do enfermo o que outrora estava desintegrado. O mecanismo que sustenta a cura é, então, semelhante nos dois casos: a solução do conflito na esfera simbólica possibilita o seu desenlace no plano orgânico, no primeiro, e psíquico, no segundo. Seja, então, conforme o caráter social e coletivo do mito do xamã ou através do caráter individual do mito neurótico, a narrativa mítica conduz à cura porque para além de qualquer conteúdo particular, ela se define fundamentalmente pelas leis que transformam em discurso o que antes estava entregue ao puro arbítrio.

Mas se em Lévi-Strauss, então, o mito deve ser abordado a partir de sua pregnância lógica e isso é o que está na base de seu entendimento do inconsciente como estrutura avessa a qualquer conteúdo mas restrito à pura forma, como pensar um sujeito que se estabelece a partir da noções como repetição e enunciação? Em outras palavras, se o objetivo da psicanálise é pensar o próprio sujeito e não a estrutura – o que, no entanto, não implica desconsiderar que a noção de estrutura seja fundamental à definição do sujeito como o que um significante representa para outro significante -, qual seria a estrutura capaz de comportar esse sujeito?


O “mais-além” da eficácia simbólica


Mesmo influenciado pelo método de investigação que caracterizou o projeto estruturalista, Lacan não deixa de notar que para aceder ao estatuto de ciência a linguística teve de renunciar aos atos singulares de fala e delimitar a língua como o seu objeto. A antropologia estrutural, da mesma forma, opera uma redução formalista que exclui o sujeito de seu campo: ao reduzir o inconsciente a leis formais, Lévi-Strauss procede conforme a exigência do método científico e, para isso, tem de rechaçar o que é relativo ao sujeito (Lacan, 1965, p. 871).

Em Lacan, por outro lado, os termos “sujeito” e “estrutura” convivem lado a lado. Para entendermos como, sigamos o exercício de substituição lógica” proposto por Iannini: se a) a estrutura nada mais é do que o efeito da combinatória significante e b) o significante é o que representa, veicula, o sujeito para outro significante, conclui-se que a estrutura se define como “os efeitos que a combinatória do que representa o sujeito determina na realidade em que ela se produz” (Iannini, 2012, p. 226). Nessa definição, abandona-se a concepção que reduz a estrutura a uma simples e pura combinação significante - tal como observado na análise de Lévi-Strauss. Enfatiza-se, ao contrário, “os efeitos” que essa combinação produz. Como diz Lacan, se se mantém o termo “sujeito” para fazer referência ao que surge como efeito da estrutura “é para que não persista nenhuma ambiguidade quanto ao que se trata de abolir" (Lacan, 1966, p.231). Assim, se é na antropologia que Lacan encontra um modelo para pensar o inconsciente a partir de uma álgebra do significante - deixando de lado, com isso, tanto a interpretação dinâmica quanto a econômica do inconsciente – será necessária uma manobra muito especial para que sujeito e estrutura não sejam termos que se excluam mutuamente. Mas qual seria ela?

Como bem observa Silveira Sales (2010) o que determina a inclusão do sujeito na estrutura é, em Lacan, a invenção de um matema que terá como consequência a reformulação da hipótese estruturalista: trata-se do matema da falta no outro, S(Ⱥ). É, então, porque Lacan concebe o Outro como incompleto que podemos tomar o sujeito como o que se define por ser representado pelo significante sem que isso, contudo, implique uma condição de determinação absoluta.

De acordo com a hipótese lacaniana, considerar a incompletude do Outro implica afirmar que o mito indutor da cura não deve ser considerado unicamente a partir de sua eficácia simbólica. Se é assim, quando torna equivalentes os procedimentos do psicanalista aos do xamã, Lévi-Strauss desconsidera que o sujeito, em psicanálise, define-se tanto a partir de sua possibilidade de fazer-se representar por um significante diante de outro quanto por uma insistência repetitiva aponta que a sua inscrição na ordem simbólica implica um resto. Desse modo, o mito que induz à cura no xamanismo não é o mesmo encontrado na base da eficácia terapêutica testemunhada desde Freud, e isso para além das diferenças existentes entre a fonte de um e de outro: para além da distinção entre um mito que é individual e um mito social, o que está em jogo é um impossível. Trata-se, aqui, do impossível de inscrever, pela palavra que tece a narrativa mítica, o resto de que depende a constituição do sujeito como definido a partir do que um significante representa para outro. A formulação desse impossível não é observada em Lévi-Strauss e deve ser notada como a razão pela qual doravante o sujeito só poderá ser definido como dividido entre dois significantes e representado simbolicamente na medida em que se constitui em relação à divisão do Outro.

Temos, assim, que se em Lévi-Strauss a definição de discurso implicava um conjunto de leis estruturais, a noção de discurso, em Lacan, deve ser considerada a partir da incompletude do sujeito e do Outro, e isso implica uma concepção de cura que só pode ser definida a partir de um mais-além da eficácia simbólica. Esse “mais-além”, notemos, leva em consideração a necessidade de num campo como o da psicanálise – campo no qual se opera com o sujeito – o inconsciente ser definido não exclusivamente por meio de leis formais, mas essencialmente a partir do furo que o objeto a impõe ao simbólico.

A extração do objeto a como condição da legalidade discursiva

Eidelsztein, em Las estructuras clínicas a partir de Freud (2008), desenvolverá extensamente o argumento de que na passagem da clínica freudiana à lacaniana - a clínica do objeto a ou clínica do “mais-além do pai” - o que está implicado é um deslocamento teórico acerca do lugar pai. Considerar o pai como o que determina a castração do Outro é, observa Eidelsztein, uma manobra que acaba por revelar, de forma privilegiada, a posição na qual o sujeito neurótico – e também Freud - encontra-se situado: a de tomar o pai como um amo.

Lacan, ao aperceber-se disso, proporá uma retificação do que se coloca como determinante fundamental da posição do sujeito sem desconsiderar o pai naquilo que lhe cabe como função. Para que ocorra essa passagem de uma clínica do pai ou clínica do Édipo à clínica do mais-além do pai ou clínica do objeto, é preciso que um significante revele a incompletude da estrutura simbólica como uma anterioridade lógica à inscrição do Nome-do-Pai: trata-se do significante da falta no Outro - S(Ⱥ). Que o Outro esteja em falta, eis algo que não depende do pai:

1. O Outro não é completo; não é que o Outro seja incompleto por causa do Nome-do-Pai, é incompleto em função da estrutura significante;

2. É porque o Outro é incompleto que o significante do Nome-do-Pai pode se inscrever. A propriedade intrínseca do significante é o que possibilita a operação da lei do Nome-do-Pai, e não o contrário:

“No puede haber un conjunto significante universal. La incompletud es causada por una de las propiedades esenciales del significante y de la estructuración que le corresponde, y esto es verdad más allá de todo caso, más allá de todo sujeto” (Eidelsztein, 2008, p. 66).

Lacan chega ao significante da falta no Outro considerando que do mesmo modo como em matemática o número complexo i surge para responder à impossibilidade da operação  (não há um número que elevado ao quadrado resulte em -1), não pode haver, no Outro, qualquer significante que represente a sua incompletude. O significante da falta no Outro remete-nos, assim, não a um inefável, mas a uma operação que não se desdobra segundo as coordenadas de uma narrativa. Trata-se de um “impronunciável”: tal como a  tem como resposta um número que não pertence ao conjunto dos números reais, S(Ⱥ) aponta para uma operação lógica que, no âmbito do sistema significante, exclui qualquer possibilidade de solução interior ao próprio sistema. Em outras palavras, trata-se de um significante distinto de todos os demais e que, paradoxalmente, positiva uma falta estruturalmente irredutível (Eidelsztein, 2008).

Que o significante da falta do Outro constitua um indizível em torno do qual se arranja tudo o que pode ser expresso pela linguagem não implica, entretanto, que o sujeito esteja impossibilitado de construir uma versão local, particular, que dê conta dessa operação traumática. Para isso, no entanto, será requerido que o Nome-do-Pai inscreva, no Outro, a autoridade da lei simbólica. Dito de outro modo, é o significante do Nome-do-Pai que inscreve a lei no Outro outorgando ao sujeito a possibilidade de operar com o S(Ⱥ). Se a falta estrutural que S(Ⱥ) representa se inscreve mediante a legalização da metáfora paterna, ou seja, se a falta no Outro se inscreve para o sujeito, diremos, então, que o sujeito acedeu à legalidade da ordem simbólica e que ocorreu a extração do objeto a:

“Extracción del objeto a quiere decir algo distinto de la existencia de la pura incompletud. Su connotación, mediante la operatoria legal, es marcada en el ámbito de la estructura y, por consecuencia, no puede ser colmada. Si a la incompletud propia a toda estructura significante se le aplica el funcionamento de la ley, o sea, se inscribe con la lógica de S(Ⱥ), se ha producido la extracción del objeto a, que hace de ese objeto perdido desde la origen, la causa del deseo inconsciente” (Eidelsztein, 2008, p.74).

Quando, para determinado sujeito, opera a função legalizante do Nome-do-Pai, a incompletude do Outro se inscreve mediante a função do significante S(Ⱥ) e então o sujeito pode fazer-se representar por qualquer outro significante. Nesse sentido, se um significante representa o sujeito para outro significante é porque a relação com S(Ⱥ) opera e todo significante remete à falta no Outro. É à luz desse mecanismo que podemos, então, identificar a necessidade de inserir um furo na estrutura. Na falta desse significante, todos os demais nada podem representar.

Se a função paterna opera, A será o lugar simbólico desde o qual o sujeito poderá interrogar-se sobre a sua condição de ser sexuado e sobre a contingência do seu ser (Eidelsztein, 2008). Como não há representação para o sexo e para o ser, a pergunta não avança em direção a qualquer resposta, mas sim à produção de um mito que o sujeito constrói utilizando-se dos significantes legalizados pela operação do Nome-do-Pai. É assim que, para Lacan, a neurose implica sempre um mito através do qual o sujeito dá conta de sua origem pela construção de um pai onipotente ao qual atribui a razão de sua falta. No mito do neurótico, então, a falta estrutural resulta num fato histórico e contingente. Se não há qualquer contingência histórica que possa explicar um fato de estrutura, não é possível, para o ser de linguagem, “acessar” os efeitos da estrutura sem que seja pela elaboração de uma versão que se constrói com significantes sempre locais, contingentes.

Em outros termos, se a falta se inscreve simbolicamente ou, o que dá no mesmo, se ela está legalizada pela operação do Nome-do-Pai, os significantes com os quais o sujeito se representa compõem um mito que enuncia uma posição sempre local, histórica, ante o que não se inscreve simbolicamente. O mito, aqui, então, está numa íntima relação com a incompletude e, diferentemente do mito de Lévi-Strauss, não se reduz à função simbólica.

É então, porque a lei opera descompletando o Outro primordial de um sujeito particular que o mito do neurótico se desdobra impulsionado fundamentalmente por perguntas que implicam a diferença sexual e a morte – os dois limites à representação propostos por Freud. Se na economia subjetiva governada pelo inconsciente a significação é fálica - dado que a operação paterna afirma e sustenta o não-todo -, então toda significação neurótica remete sempre ao conjunto de significações que não constitui um universo completo. Observa-se, assim, uma vez mais o ponto de irredutível descontinuidade entre as operações do xamã e do psicanalista: no sistema estudado por Lévi-Strauss, o mito é uma significação do que no estado anterior era pura desordem, de modo que ele pode ser entendido como tendo o efeito de uma restituição. A cura conduzida pelo psicanalista, por outro lado, nada tem a ver com uma restituição, pois o mito através do qual ela é alcançada não revela o sentido de uma enfermidade ou padecimento, mas aponta para a falta como a condição mesma da narrativa que o sujeito constrói tentando enlaçar o que estaria na “causa” de seu mal-estar. O mito, aqui, não implica a passagem do não-sentido ao sentido, mas indica que “na origem” o sujeito não encontra senão a castração do Outro.

No campo do gozo, o campo propriamente lacaniano, o analista não é alguém que restitui o sentido ou intervém em busca de uma “causa”. Posiciona-se, isso sim, no lugar da causa que introduz uma falha nas pretensões totalizadoras do sujeito em análise. A interpretação, assim, é uma das formas pelas quais não se interrompe a produção de um saber que no lugar da verdade, é tomado como não-todo. O enigma, a citação e o equívoco também são formas que acabam por impugnar o saber em suas pretensões de domínio: interrogam o sujeito e fazem com que ele produza novos e quem sabe inesperados significantes nos quais não se reconhece, não se descobre, não se significa, não se entende – mas pelos quais se encontra determinado. Obtém-se, assim, não um significante último que revele o sentido oculto de um sintoma, por exemplo, mas a revelação do significante da incompletude do Outro. Isso é o que possibilita a produção de algo novo, singular.

O analista, assim, não é um significante que se agrega, em análise, para completar um sentido, mas uma presença real que porta a falta de sentido. Não se busca, com isso, a revelação de um sentido oculto, mas os significantes que determinam um sujeito numa forma singular de gozo. Não articula um saber sobre a verdade, mas atualiza a verdade de todo saber.

Tal concepção do lugar do analista é tributária do inconsciente definido não como a chave através da qual se alcança o sentido de um determinado fenômeno, mas a razão mesma do sem-sentido. Se é assim, o sujeito em análise faz um percurso no qual se evidencia que está e não está representado: há algo que permanece impossível ao significante, pois toda inscrição carrega consigo a marca de uma ausência. Essa inadequação no seio daquilo através do qual se representa faz com que a cadeia significante deslize incessantemente na busca – sempre fracassada – do significante que finalmente seria capaz de enlaçar esse resto inassimilável.

Se é assim, o significante encarna a impossibilidade mesma da representação, já que o sujeito é representado e irrepresentável: em sua constituição se enlaçam os significantes que podem representá-lo com vazio que se abre para além deles. O analista, então, não deve silenciar o que introduz uma falha na pretensão totalizadora que interroga o sujeito. Eis a possibilidade de se alcançar os fragmentos de uma verdade que só pode ser dita em sua parcialidade através de sua lei interna de enunciação: o mito.


Notas

 
  1. Lévy-Bruhl e Malinowski são os maiores representantes dessas concepções. Contrapondo-se a eles, Lévi-Strauss afirmará que o pensamento dito “primitivo” não se encontra determinado por emoções ou razões místicas – como propunha o primeiro, e nem pelas necessidades de sobrevivência, como alegava o segundo.
  2. Lévi-Strauss compara o método terapêutico inventado por Freud com o do xamã. Diferentemente do xamã, no entanto, Freud solicitava aos seus pacientes a elaboração de um mito que permitiria expressar, em termos simbólicos, o que o sintoma impõe em termos afetivos, arbitrários. É por isso que o antropólogo chama os psicanalistas de xamãs modernos.


Referências bibliográficas

EIDELSZTEIN, A. (2008). Las estructuras clínicas a partir de Lacan. Buenos Aires: Letra Viva.
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Resumos:

From the simbolyc effectiness towards the extraction of the objecta: the myth.

This work starts with the "structural analysis of myth" and the concept of "symbolic efficiency" - both established by Lévi-Strauss - to interrogate, secondly, if the myth could not be regarded also as a privileged form of the statement "beyond the symbolic efficacy”. In order to do this, we must use the discussion of the implications of the formulation of the matheme S (Ⱥ), by Lacan, as a fundamental concept of structure that can contemplate the subject and the understanding that the myth, beyond its symbolic efficacy carries the mark of an impossibiity.

Keywords:
psychoanalysis, symbolic efficacy; structure; speech; object a; myth.


De l’efficacité symbolique à l’extraction de l’objet a: le mythe


Ce travail part de l’ «analyse structurale des mythes» et du concept d’ «l'efficacité symbolique» - tous les deux établis par Lévi-Strauss – pour interroger, d'autre part, si le mythe ne pourrait pas être également considéré comme la forme privilégiée de l'énonciation d'un au-delà de l'efficacité symbolique. Pour cela, nous avons recours à la discussion sur ce qu’ implique la formulation par Lacan, du mathème S (Ⱥ), fondement d’une notion de structure qui puisse comporter le sujet et l'idée que le mythe au-delà de son efficacité symbolique, porte la marque d'un impossible.

Mots-clés: psychanalyse, efficacité symbolique, structure, discours, objet a, mythe.

 

Citacão/Citation: SOUTO, L.A.S.; D’AGORD, M.R. de L. Da eficácia simbólica à extração do objeto a: o mito. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VIII, n. 15, nov. 2012 a out. 2013. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
16/08/2012 / 08/16/2012.

Aceito/Accepted:
14/11/2012 / 11/14/2012.

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