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A criança e seus pais: alguns interrogantes sobre as funções parentais na atualidade

 

Andrea Gabriela Ferrari
Psicóloga, Psicanalista
Doutora em Psicologia do Desenvolvimento Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, Brasil)
Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Coordenadora do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão da Infância da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Membro do NEPEIA - Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Infância e Adolescência (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil)
E-mail: andrea.ferrari@ufrgs.br

Milena da Rosa Silva
Psicóloga
Doutora em Psicologia do Desenvolvimento UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia da UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Membro do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão da Infância da Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Membro do NEPEIA - Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Infância e Adolescência (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil)
E-mail: milenarsilva@hotmail.com

Tagma Schneider Donelli
Psicóloga
Doutora em Psicologia do Desenvolvimento UFRGS (Rio Grande do Sul, Brasil)
Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unisinos (São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil).
E-mail: tagmad@unisinos.br

Resumo

Os autores pretendem discutir neste artigo as possíveis mudanças ocorridas na operação das funções materna e paterna pelas modificações nas configurações familiares atuais e suas possíveis implicações nos processos de constituição subjetiva. Para alcançar este objetivo, iniciam por um breve apanhado a respeito dos caminhos dessa constituição, a partir de autores lacanianos. Posteriormente questionam, à luz da teoria da constituição do sujeito, os possíveis efeitos ocorridos pelas transformações dos papeis exercidos tradicionalmente pela mãe e pelo pai. A concepção da infância é considerada a partir dos efeitos constitutivos do exercício parental na atualidade.

Palavras-chave: psicanálise, infância, funções parentais, maternidade e paternidade.

 

Pretendemos discutir neste artigo as possíveis mudanças ocorridas na operação da função materna e paterna pelas modificações nas configurações familiares atuais, e suas possíveis implicações nos processos de constituição subjetiva. Para tanto, iniciaremos por um breve apanhado a respeito dos caminhos dessa constituição, a partir de autores lacanianos. Para um sujeito se constituir é necessário que seja tomado como objeto privilegiado do desejo de alguém no intuito de poder fazer a leitura daquilo que o bebê apresenta a partir das marcas deixadas por seu próprio processo constitutivo. Esta operação permite a transformação do corpo biológico do bebê em corpo erógeno. Por outro lado, no mapeamento erógeno do corpo do bebê, instala-se uma delimitação do gozo, tanto no corpo do bebê como no de sua mãe, pela inscrição da falta promovida na dialética presença-ausência materna e, consequentemente, pela não sustentação do corpo do bebê como lugar de objeto a.

Para Penot (1991) o mapeamento erógeno do corpo do bebê feito pela mãe ocorre através dos três tempos do circuito pulsional. No primeiro tempo, o bebê se direciona ao objeto externo; no segundo, toma o objeto externo como parte do próprio corpo. O terceiro é aquele no qual o bebê, fazendo-se objeto do outro, surge como um novo sujeito. Então, no primeiro momento a criança se direciona ao objeto; no segundo, incorpora esse objeto ao próprio corpo e, no terceiro, um novo sujeito surge pelo assujeitamento aos significantes do Outro (Outro primordial). É no terceiro tempo do enlaçamento pulsional que se instaura a alienação, ou seja, o eu se torna objeto para um novo sujeito. Chemama e Vandermersch (2007) lembram que a alienação, junto com a separação, é uma operação fundante, pois institui uma divisão a partir da qual o sujeito se depara com uma escolha e consequentemente, com o que o sujeito poderá aceitar perder.  Resta lembrar o momento da separação, momento crucial para a queda do corpo da criança como lugar de objeto a. Somente se pode ser pelo estabelecimento da falta no Outro, que porta um desejo.

O circuito pulsional instalado permite o bordeamento do corpo, a articulação de um significante ao corpo. A articulação significante/corpo possibilita que o corpo seja inscrito na linguagem e, consequentemente, tome seu lugar determinado na cadeia geracional. Para isso acontecer, o corpo terá que ser antecipado enquanto sujeito detentor de um lugar no desejo parental. É próprio da função materna ser o porta-voz das manifestações do bebê. Portando a voz pelo bebê, a mãe (ou aquele que encarne a função materna) metaboliza essas manifestações e as reenvia ao bebê com algum significado que está sustentado pelas marcas do seu próprio processo constitutivo. Sendo a mãe o representante da ordem exterior das coisas a cujas leis também o seu discurso está submetido, transmite nessas metabolizações as ordens culturais daquele momento, do lícito e do ilícito.

Bergès (2005) refere que a mãe impõe ao bebê alguns constrangimentos necessários para a transformação do biológico em erógeno. O primeiro deles se refere a um constrangimento vital, pois, sem sua aceitação por parte da criança, esta está fadada à morte. Este constrangimento diz respeito à fala e à linguagem. Antes mesmo de o bebê nascer ele é falado e introduzido em uma cadeia geracional que lhe impõe, de antemão, algumas pistas, alguns significantes a partir dos quais ele irá se constituir. Para viver, é necessário que o bebê responda a esse constrangimento considerado primordial.

O segundo constrangimento é da mesma ordem, pois o bebê é levado, pelo fato que isso fala ao redor dele, a que seu corpo se adeque a esse código disponibilizado pela mãe para que ele (bebê) seja compreensível por ela. A autorização, por parte da mãe, para constranger seu filho, e a deste filho para se submeter a esse constrangimento, está relacionada à confusão entre o objeto de necessidade do bebê e o objeto de desejo da mãe. Mas, a compreensão materna às vezes falha, gerando um sentimento de estranhamento que impõe à mãe buscar em outro lugar aquilo que lhe escapa a essa compreensão. Neste movimento de não certeza a respeito do filho limita-se o gozo dos dois e se impõe, a ambos, o direcionamento do olhar para outro lugar.

Assim, a mãe pode ser considerada enquanto operadora de uma função, mas também de um funcionamento do corpo. Bergès e Balbo (1997) referem que esta operação da função e do funcionamento ocorre na dialética presença-ausência. A mãe, competente em encontrar no corpo do filho sua imagem especular, traduz, a partir das identificações nos atos do bebê as afirmações necessárias para produzir um sentido além daquilo que se apresenta como manifestação motora, transformando-o em gesto. O gesto, portanto, está do lado da linguagem que intervém antecipando um sujeito que de fato ainda não está ali, mas que se presentifica para a mãe em função da imagem especular a partir da qual ela identifica seu filho. Porém o que impede essa afirmação ser abusiva é a possibilidade de remeter a filiação desse bebê também a um outro, demandando certa ratificação em relação às hipóteses que teceu em relação ao comportamento do bebê. Há um envio, por parte da mãe, de uma pergunta que questiona o seu fazer e seu saber na relação com o filho. Nessa operação a mãe aparece, em um primeiro momento, como outro e Outro na relação com a criança. Este movimento é considerado pelos autores como um terceiro constrangimento que a mãe impõe ao bebê.

Há, ainda, um quarto constrangimento relacionado ao transitivismo materno em relação ao bebê. O transitivismo materno é uma forçagem de um sentimento que a mãe percebe no filho, mas que este ainda não decodificou. Refere-se à clássica cena de que, quando uma mãe percebe que seu filho vai cair, antecipa a dor suposta que seu filho sentirá. A mãe se sente afetada pela dor que supõe que seu filho sentiu, mesmo que seu filho, em um primeiro momento, não tenha esboçado nenhuma reação dolorosa. Assim, força o filho a sentir uma dor que na verdade foi por ela sentida. Esse golpe de força permitiria o acesso ao simbólico por parte da criança, visto que a experiência suposta de dor no filho é manifestada pela mãe também pelas palavras de consolo que ao filho dirige (Bergès e Balbo, 2003, p. 11). Esta antecipação da mãe não é sem angústia, visto o suposto perigo no qual a criança se colocou sem o saber. O que geralmente retira essa mãe da angústia é a resposta do filho que se apropria dessa hipótese, ou o outro adulto que refere que a mãe exagerou na sua suposição. A angústia despertada na mãe pela identificação à dor do filho precisa encontrar uma parada que a mantenha no lugar de supor sobre o filho e não ter tantas certezas sobre ele.

A constituição do sujeito e a operação paterna na atualidade

Supomos que para que as operações maternas constituintes do sujeito sejam eficazes é necessário que sejam ratificadas e às vezes retificadas por alguém, que, em muitos momentos, constrange a mãe nas investidas no corpo do bebê limitando o gozo que isto pode lhe trazer. O que opera desde esse lugar é a função paterna, função de interdito em relação ao desejo incestuoso. No Seminário 5, Lacan (1957-58) refere que a função do pai é a de substituir o significante materno introduzido na simbolização. O pai colocado no lugar da mãe, como aquele que priva a mãe do objeto de seu desejo - o falo. Na privação o pai (imaginário) se faz preferir em lugar da mãe, o que acarreta a formação do ideal do eu. Assim, o pai se encontra em uma posição metafórica, na medida em que a mãe faz dele aquele que sanciona, por sua presença, a existência como tal do lugar da lei. Aquele que operará a função paterna tem a função de interdito em relação ao desejo incestuoso e ao gozo. Assim, operar a função materna sem a referência à paterna que se interpõe entre o corpo da mãe e do bebê suscita, na mãe, a tentação de fazer do corpo do filho o objeto que caiu quando da intervenção de sua castração. Assim, a função paterna tem a seu encargo deter um possível engolfamento materno e, ao mesmo tempo, permite o confronto com o vazio por apontar para a castração materna.

Até uns anos atrás, era difícil ver um pai que se encarregasse dos cuidados rotineiros com um bebê relacionados ao funcionamento do corpo. O pai se restringia, na maioria das famílias consideradas de classe média urbana, a operar uma função de interposição e ratificação daquela que operava preponderantemente, em um primeiro momento, na relação cotidiana com o bebê. Lebrun (2004) afirma que o pai apresentava uma assimetria entre as funções operando um contrapeso na relação com a mãe. Nesse sentido, o autor refere que o poder materno poderia ser entendido como essencialmente real e o paterno, como simbólico, impondo por isso uma assimetria que permite à criança se retirar do lugar de falo materno. A autoridade do pai é transmitida como herança, o que implica a morte do pai e a ascensão de seu nome. Na transmissão hereditária do nome, a figura do pai é evocada, mas não necessariamente corporificada. Há um além que se institui na censura da satisfação plena entre a criança e sua mãe.

Atualmente, ao contrário, vemos pais cada vez mais presentes no cotidiano da criança fazendo questão de dividir com a mãe as tarefas que até então eram preponderantemente maternas. Como pensar, a partir do momento no qual passa a existir um imperativo social de que o pai venha a ocupar também esse lugar de operador da funcionalidade do corpo da criança? Quem passa a funcionar como aquele que limita a angústia e o gozo daquela que se ocupa da função materna? Muitas vezes, assistimos cenas nas quais o ponto de parada da angústia somente se dá a partir da intervenção de algum agente institucional.

A concepção de infância, assim como a da maternidade e paternidade, é uma invenção que foi se construindo ao longo dos tempos (Áries, 1981; Badinter, 1985). De uma total indiferença, a criança, atualmente ocupa um lugar predominante, muitas vezes organizativo da família e das instituições que dela se encarregam. Costa-Moura (2004) lembra que o Estatuto da criança e do adolescente (ECA) formaliza uma posição que estava sendo delineada – a concepção da criança como sujeito de direitos e, segundo Lebrun (2004), houve, desde o final de 1700, uma limitação progressiva do poder paterno chegando, aos dias atuais, à quase absorção do poder paterno substituído, gradativamente pela autoridade parental. Autoridade parental que é vigiada pelas instâncias institucionais que sabem o que uma criança precisa e dita comportamentos dos pais em relação à criança. Efeitos disso são percebidos nas falas de mães e pais de crianças muito pequenas quando chegam à consulta com algum profissional referindo não saber mais o que fazer com ela.

Campo social e cena familiar se constituem pelos efeitos que operam uma na outra. A função paterna passa a ser sancionada pela ordem social marcada pelos êxitos evocados pela ciência. Se a função paterna seria, para Lacan (1957-58) livrar o filho do paraíso do engodo de ser o falo materno, o que nos impõe atualmente como paradigma societário seria a possibilidade de tudo poder (Lebrun, 2004). O paradigma do consumo passa a cumprir o papel de “apagar essa irredutível indisponibilidade e nos deixa crer numa possível plena satisfação” (Lebrun, 2004, p. 183).

A criança entraria na economia parental do consumo, como mais um objeto a ser adquirido? E o limite que a criança impõe aos pais quando estes se percebem destituídos de seu saber? Chemama (2004) sugere a tese de que a criança passou a ocupar um lugar de Outro não barrado (), visto o surgimento das ditas crianças terríveis ou a banalização das crianças ditas sem limites ou agressivas. Ele traz a questão da inversão do lugar de proteção (justificativa que sustenta o surgimento do ECA) pelos pedidos de adultos do não saber o que fazer com uma criança – “Será que a criança deve estar protegida ou será que devemos nos proteger dela? O que retoma totalmente a questão do sujeito em relação ao Outro – o que ele quer de mim?” (Chemama, 2004, p. 120). Lebrun (2004) refere que “o tirano é a figura abusiva do mestre” (p. 88).

Assistimos à queda do patriarcado. A família passa a se organizar por diferentes formas de conjugo (Laurent, 2007) em uma desvinculação completa do papel e das funções exercidas na família. A não existência de um modelo de relação entre os sexos coloca uma irredutibilidade revelada, segundo Laurent (2008) na desordem amorosa e familiar. Uma tentativa de solução para essas novas formas de se relacionar diz respeito à criação de direitos igualitários que fundamentem e tentem harmonizar essas relações o que, segundo o autor, desvela, cada vez mais, o irredutível do real frente ao outro sexo e, consequentemente, o pai da família conjugal não responde mais como uma função invariante nos sistemas familiares. Os efeitos cotidianos trazidos pela flexibilização dos lugares nos sistemas familiares se referem ao declínio da “dimensão trágica do pai... à multiplicação das formas da família conjugal” (Laurent, 2008, 13). O esvaziamento da função paterna faz com que os laços sociais sejam vivenciados em uma relação imaginária que, segundo Lebrun (2004) funcionaria como uma mãe que, apesar de remeter-se a um outro, não aceita verdadeiramente sua intervenção, promove a manutenção da onipotência infantil e impede o encontro com a imperfeição e os limites da realidade. As centenas de livros que prometem ensinar pais e mães a criarem e educarem filhos felizes e com sucesso, de alguma forma, tentam dar conta de que a hierarquização da família patriarcal se enfraqueceu. A promessa contida nesses textos, de alguma maneira, estende a promessa ilusória de manutenção do bebê ideal oriundo do narcisismo parental.


A criança de hoje...

Lajounquière (2010) sustenta a tese do surgimento de uma “nova criatura, A-Criança” (p.19) como um fantasma atual, herdeiro do tecnicismo oriundo dos saberes médicos, pedagógicos e psicológicos que sustenta a relação atual com a criança. Para o autor “A-Criança” é considerado um ser natural dotado de direitos especiais que devem, imperiosamente, ser satisfeitos. São estes direitos necessariamente satisfeitos que viraram parâmetros de deveres para com a criança? Deveres estes que são vigiados atentamente pelas entidades institucionais que impõem, a partir dos achados de suas pesquisas, padrões de comportamentos indispensáveis no trato com a criança. A partir dessa concepção da “A-Criança”, paira no ar uma suspeita de que algo não esteja sendo devido às crianças por parte daqueles que teoricamente, dela se encarregam. Paradoxalmente, esse excesso de zelo gera uma impossibilidade de intervenção e de transmissão de marcas simbólicas que provoca certo infanticídio simbólico. De alguma forma na noção de “A-Criança” é transmitido o paradigma atual de que as coisas humanas são naturais, geneticamente produzidas, sem as intervenções subjetivas necessárias para a produção de um sujeito com seus sofrimentos inerentes à condição humana.

Uma queixa dos pais que tem se mostrado frequente na clínica com crianças se refere ao entendimento, por parte deles, de que o sintoma da criança fere a imagem narcísica parental projetada nele. O pedido dos pais, quando da procura de atendimento, se circunscreve a uma restituição da adequação aos ideais sociais que a criança deveria cumprir, segundo as normativas tecnocientíficas. Os pais, em lugar de se perguntarem sobre o motivo do sintoma, pretendem que o analista restitua o narcisismo parental através da nova adequação da criança às demandas que deixou de responder (Flesler, 2008). Outra categoria de queixa que tem se intensificado refere-se a um pedido de que se ensine o que fazer com o filho, já que os pais não compreendem afinal o que a criança quer, visto que, a seus olhos, lhe dão tudo. É um misto de sensação de incompetência com perplexidade que parece ter relação com o filho do narcisismo, sua majestade o bebê, aquele que gozaria de todos e de tudo. O sintoma seria, por parte da criança, uma resistência a um imperativo de gozo que o levaria à morte?

É inegável que a configuração familiar mudou, mas também é inegável que a família, com seus participantes, continua como representante do Outro social, como aquela que transmite a cultura, que “preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico” (Lacan, 1938, p. 13). Assim, somos convocados a escutar esses pais com suas queixas contemporâneas, atravessadas por amplas pesquisas na Internet ou mesmo questionamentos sobre nosso fazer em função do que ouviram em determinado programa televisivo. Somos convocados, parafraseando Lacan, a colocar uma barra que impeça que o jacaré feche a boca e engula os seus filhotes, mas nem tanto. Lajonquière (1999) refere que a multiplicidade de discursos que prometem uma criança perfeita – desde que os pais consigam se apropriar das técnicas oferecidas pela ciência - gera um movimento inibitório, pois seus erros no processo educativo implicam o fracasso do filho e, consequentemente, deles próprios. Assim, há uma demanda por parte dos pais de uma educação terceirizada, desde que não se constranja em demasia sua majestade.

Os profissionais que trabalham da educação infantil se queixam da imposição dos pais de que a escola se encarregue de todas as atividades que impliquem o cuidado do corpo (controle esfincteriano, alimentação e até dar banho na criança), mas, quando há uma intervenção naquilo que os pais entendem como impeditivo da satisfação da criança, os pais se enfurecem e não permitem que o filho seja barrado em seu gozo. Lacan (1967), no discurso de encerramento das psicoses, comenta que toda formação humana se dirige a refrear o gozo. Como pensar a encarnação desta função nas configurações atuais da parentalidade, já que os adultos que cuidam da criança tentam se furtar dessa função? Será que é a ciência e seus saberes comprovados que passam a ocupar o lugar de interditor? Já não podemos afirmar que é o pai quem encarna a função paterna e a mãe, a função materna. Estas funções se multiplicam e se diluem nos diferentes personagens que fazem parte do cotidiano da criança. Talvez possamos pensar que os sintomas preponderantemente motores apresentados por elas digam respeito a uma dificuldade de situar em algum personagem definido aquele que barre seu gozo e permita a transformação em demanda vinculada a um prazer compartilhado por seu grupo societário (Forget, 2010). Assim como os adultos não podem parar ao risco do completo fracasso, a criança não pode parar ao risco de passar a funcionar como objeto que encarna os ideais infantis dos pais?


Referências bibliográficas

ÁRIES, Philippe (1981). História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara.
BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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BERGÈS, Jean; BALBO, Gabriel (1997). A criança e a Psicanálise, novas perspectivas. Porto Alegre: Artes Médicas.
BERGÈS, Jean e BALBO, Gabriel (2002). Jogo de posições da mãe e da criança, ensaio sobre o transitivismo. Porto Alegre: CMC.
CHEMAMA, Roland (2004). Uma herança constratada, in ROCHA, Antonio (Diretor). A clínica psicanalítica e as novas formas do gozo. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, p. 71-88.
COSTA-MOURA, Fernanda (2004). A demanda em extensão na psicanálise com crianças, in A clínica psicanalítica e as novas formas do gozo. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, p. 111-122.
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FLESLER, Alba (2008). El niño, el analista y las entrevistas preliminares. Porque recibir a los padres? Actualidad Psicológica. Buenos Aires: Letra Viva, n. 361, p. 19-22.
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LACAN, Jacques (1938). Os complexos familiares na formação do indivíduo, ensaio de análise de uma função psicológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
LACAN, Jacques (1957-58). O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
LAJONQUIÈRE, Leandro (1999). Infância e ilusão (psico)pedagógica, escritos de psicanálise e educação. Petrópolis (RJ): Vozes.
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LEBRUN, Jean-Pierre (2004). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
PENOT, Marie Cristine. (1991). Do fracasso da instauração da imagem do corpo ao fracasso da instauração do circuito pulsional: quando a alienação faz falta, in M. PENOT (Org.) O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Coleção Psicanálise da Criança, Salvador: Ágalma, p. 31-48.


Resumos

Some questions about the parental functions in current days
The authors intend to discuss in this article the possible changes in the operation of the maternal and paternal functions by the current changes in family structures and their possible implications in the processes of subjective constitution. To accomplish this goal, they begin by a brief overview about the paths of this constitution, from Lacanian authors. Subsequently they question, in light of the theory of the constitution of the subject, the possible effects brought up by the transformations occurring in the roles traditionally exercised by the mother and father. The conception of childhood is considered from the constitutive effects of exercise parental nowadays.

Keywords: psychoanalysis, childhood, parental duties, motherhood and fatherhood.

L’enfant, ses parents et quelques interrogations sur les fonctions parentales dans l’actualité
Les auteurs ont l'intention de discuter dans cet article les changements éventuels dans le fonctionnement des fonctions maternelle et paternelle par les changements actuels dans les structures familiales et leurs implications possibles dans les processus de constitution subjective. Pour ce faire, ils commencent par un bref aperçu sur les moyens de cette constitution, par des auteurs lacaniens. Par la suite remis en question, à la lumière de la théorie de la constitution du sujet, les effets possibles des transformations qui se sont produites dans les rôles traditionnellement exercés par la mère et le père. La conception de l'enfance est considérée depuis les effets constitutifs de l'exercice parental d'aujourd'hui.

Mots-clés: psychanalyse, l'enfance, les responsabilités parentales, de maternité et de paternité.


Citacão/Citation:
FERRARI, A.G; SILVA, M. da R.; DONELLI, T.S. A criança e seus pais: alguns interrogantes sobre as funções parentais na atualidade. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 14, mai. a out. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 13/05/2012 / 05/13/201 2.

Aceito/Accepted: 24/06/2013 / 06/24/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.