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Os transexuais e o sexo para chamar de seu1

 

Marina Caldas Teixeira
Psicanalista
Doutora em Psicologia Psicanálise / UFMG (Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil)
Doutorado sanduiche em UR2 (Rennes, França)
Mestre em Psicologia – Estudos Psicanalíticos / UFMG (Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil),
Especialista em Psicologia da Educação / CEPEMG (Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil),
Psicóloga / PUCMG (Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil)
Psicóloga do Hospital das Clínicas (HC-UFMG) (Minas Gerais, Brasil)
Membro da equipe de Transplante cardíaco do HC-UFMG (Minas Gerais, Brasil)
Membro da equipe Obesidade mórbida e Cirurgia bariátrica do HC-UFMG (Minas Gerais, Brasil)
Membro da equipe de Ambiguidades sexuais e cirurgias corretivas (Minas Gerais, Brasil)
Correspondente da Seção Minas da Escola Brasileira de Psicanálise (Minas Gerais, Brasil)
E-mail: marina.caldas.teixeira@gmail.com

Resumo

O artigo resume a problemática dos transexuais, pessoas que são compelidas a dizer que seu sexo não é seu e que reclamam o direito de mudar de sexo civil e fisicamente. Considerando a abordagem lacaniana do sinthoma e da sexuação como opção de identificação sexuada, o artigo discorre sobre o gozo transexualista que termina por conduzir à cirurgia de mudança de sexo e aos hormônios, assim como sobre o talento de alguns transexuais para alcançar um sexo para chamar de seu a despeito da função fálica, proeza que em alguns casos, mantém o sujeito ligado à realidade, conectado ao semelhante e, fixado na ideia de si como um corpo que tem peso.

Palavras-chave: psicanálise, transexual, identidade, sexo, corpo, eu, sinthoma.

 

“Um Eu demasiado poderoso é uma prisão da qual
um homem deve eludir-se, se deseja gozar plenamente os bens deste mundo.”

Honoré de Balzac


Estamos na alvorada do século XXI, ano de 2013 d.C. Vivemos num mundo onde a nanotecnologia, as células tronco, a clonagem, as neurociências, os avanços da genética através do genoma desenham os caminhos pelos quais a medicina, neste século, vem remodelando os costumes. A globalização consolidou a presença massiva dos gadgets na atmosfera da vida civilizada em nossa era. Os gadgets são esses objetos fabricados em série pela ciência que, por uma sorte do destino, se imiscuíram nas tramas do desejo e da subjetividade, até o ponto de revestir a pessoa com algo que chega a ser mais imprescindível do que o ar que se respira. O casamento entre os avanços do capitalismo e os progressos da ciência produziu uma sorte de explosão no campo do gozo para os seres falantes, que alcançou desopilar a via do mais gozar de seus limites clássicos, limites esses que obstruíam o livre acesso a essa via. O século XXI exonerou a ordem simbólica, que valia como mote civilizatório até o meio do século passado, e exorta agora em favor de uma civilização bricolada por múltiplas ordenações, inspiradas em estilos de vida e modos de gozo individuais, num empuxo sempre crescente ao que vem sendo designado como vitória das liberdades individuais. Entre todas as liberdades individuais, o direito de escolher o próprio sexo a despeito das determinações naturais, já não surpreende acostumados que estamos com as diversas expressões do gênero humano que desfilam no nosso tempo: pansexuais, andróginos, transexuais, transgêneros. Ecoa na sociedade a crença de que as conquistas no campo do desejo e da representação permitiram a liberação do sexual de toda e qualquer determinação natural.

No rastro de todas as transformações sexuais, sociais e culturais desta era, pode-se dizer que o transexualismo entrou nos costumes com uma facilidade desconcertante, uma vez que o fenômeno aparece como o expoente máximo do direito de escolher o próprio sexo. No estágio atual de nossa civilização, parece que o ser falante não está mais obrigado a se conformar à anatomia, a esse dado essencial da natureza humana que, desde o nascimento, distribuía a gente entre o lado homem e o lado mulher da diferença dos sexos. A proeza de alguns transexuais é assim, tomada pelo cientificismo neoliberal como prova documental de que uma das últimas fronteiras humanas, a fronteira dos sexos, foi ultrapassada.

O tema do transexualismo tem sido alvo de minhas pesquisas há mais de dez anos. O discurso analítico de orientação lacaniana tem sido o guia para adentrar na lógica desses casos, interrogando a redesignação sexual anunciada ao termo da mudança de sexo. Questão controversa, inusitada e mesmo impensável não fossem os muitos casos de transexuais que, no mundo contemporâneo, realizaram a metamorfose improvável de homem para mulher ou de mulher para homem.

Diante desses casos, minha abordagem se pauta por ser menos crítica e menos cética da redesignação sexual pleiteada e anunciada em cada caso de transexualismo, e mais preocupada em destacar a posição que esses, que agora são chamados trans homem e trans mulher, assumem na partilha sexual, ainda que ao modo de uma paródia, pois em cada epopeia de um sujeito que foi conduzido à cirurgia e aos hormônios, não encontramos senão uma forma singular da subjetividade humana, que nos ensina muito sobre o que permanece sendo, essa loucura comum, que é a natureza sexual dos seres humanos, com tudo de perturbador que dela se segue para a relação entre homens e mulheres.

No mundo contemporâneo, o ser falante tem sido compelido a suportar novas condições de gozo e de sociabilidade que não estão conectadas ao inconsciente e à possibilidade de decifração, já que falta o limite da castração, mas que se armam como soluções prêt-à-porter diretamente conectadas ao corpo, armados que, com Lacan, aprendemos a chamar de sinthoma.

Nos casos de transexualismo, destaca-se a maneira como esses trans homem e trans mulher são compelidos, seja como for, a inventar de maneira solitária uma forma de suportar o intratável da estrutura que retorna sempre sobre cada um deles apesar das cirurgias reparadoras e das terapias hormonais. Venho dizendo que alguns trans alcançaram um sinthoma que, de maneira singular, faz um limite onde faltou o limite. Considero que seja função social do analista que trabalha de forma aplicada (aquele que, com sua presença, sustenta o discurso analítico nas diversas instituições de tratamento do sofrimento humano) a de explicar ao mundo, àqueles que não são seus pares, o que é que faz um sinthoma, como faz e a que preço faz.

Essa demonstração tende a ser de extrema importância, pois é preciso dizer e demonstrar, que as soluções transexualistas, ou seja, a fórmula com a qual alguns sujeitos alcançaram sair da catástrofe subjetiva na qual estavam submersos justamente porque padeciam de um corpo impróprio, é uma solução absolutamente singular que não pode ser tomada como modelo para qualquer um e, menos ainda, se tornar a bandeira de minorias porque não existe uma solução universal para a relação do ser falante com o gozo e com a linguagem.

Um desejo muito enérgico: um sexo para chamar de seu

Os transexuais são pessoas habitadas por uma convicção insofismável de que seu sexo não é seu. Por conta desse tormento, são compelidos por um desejo muito enérgico que os leva inclusive a se submeter a uma operação de mudança de sexo para declinar do “corpo errado”, corpo perseguidor, condensador do mal estar de existir extraviado de si, e finalmente alcançar o corpo perseguido, corpo que finalmente vão poder chamar de seu.

Alguns transexuais, compelidos pela paixão de trocar de sexo, foram talentosos e atingiram seu objetivo: o de alcançar um sexo para chamar de seu, o que lhes permitiu experimentar a ideia de si como um corpo que tem certo peso e realidade. Proeza que confere ao transexual a oportunidade de se declarar a pessoa que é - a top model Lea T que já foi Leandro, declarou pós-mudança de sexo: “agora eu, sou eu”. Talento das père-versions: corrigir o lapso do nó, naquele ponto mesmo em que o nó fracassou.

O transexualismo, ou a transexualidade como quer a militância GLT, é um fenômeno que interroga nossas convicções sobre a diferença dos sexos na medida em que supõe a possibilidade de uma travessia de homem para mulher e de mulher para homem. A identidade sexual, nesses casos, formatada pelos recursos da medicina reparadora vem sendo legitimada como um direito cientificamente conquistado. Atualmente, é indubitável o quanto o processo pós-moralista foi muito além da libertação dos costumes dos domínios da moral sexual tradicional e transgrediu igualmente o que outrora se designaria o dever moral para consigo mesmo de não despojar de seu próprio corpo, uma vez que a moral dos deveres individuais proibia terminantemente a mutilação voluntária de um órgão da pessoa, na qualidade de um atentado contra a própria natureza humana. O individualismo contemporâneo desvencilhou o corpo do autoritarismo da moral individual e libertou o sexo das disposições morfológicas da natureza, pois é fato sensível que, no século XXI, o indivíduo tem o direito de escolher o próprio corpo e que o sexo perdeu toda a determinação na pletora da confusão dos gêneros. A sociedade democrática neoindividualista se dobra a perspectiva de ultrapassar significativamente o binarismo male, female na organização das forças eróticas e de afrouxar a intransigência com respeito à mudança de sexo e à transformação do corpo em objeto de consumo e produção. Ganha terreno a ideia de que a ambiguidade sexual seria o ideal dos sexos e que é lícito modificar a própria identidade sexual e civil. Nesses termos, a medicina reparadora é aliada da transexualidade, pois nesses casos, a linha dos gêneros é franqueada com o auxílio legal de procedimentos cirúrgicos e hormonais para que a metamorfose não seja improvável. De toda forma, os resultados da metamorfose que o desejo muito enérgico de alguns transexuais alcança são desconcertantes para as tradições muito arraigadas no binarismo homem/mulher que, desde Freud, organizou teoricamente o erotismo. Mesmo assim, e porque nem todos os transexuais alcançam a satisfação com a mudança de sexo, torna-se necessário estudar, na clínica e na sociabilidade, os efeitos dessa metamorfose sobre as condições de gozo dos sujeitos que as suportam.


A mudança do sexo e o direito à pessoa que se é

A proeza de trocar de sexo levada a termo por vários transexuais nos confronta com fato inusitado de que o ser humano não está mais obrigado a se conformar com sua anatomia de nascença. A medicina reparadora do século XXI, com seus recursos cirúrgicos e bioquímicos, permite ao transexual de se desabonar do sexo designado no nascimento e mudar de sexo, dado que ele padece desse mal de sentir, no mais intimo de seu ser, que seu sexo não é seu.

No Brasil, esse direito está assegurado pelo Estado do Bem-estar Social e sob a chancela do SUS (Portaria 1707 de 18 de agosto de 2008 instituiu, no âmbito do Sistema Único de Saúde, o Processo Transexualizador). Atualmente esse direito, abonado pelos direitos de personalidade, se estende às prerrogativas da mudança de nome e de registro civil fomentando a possibilidade do transexual ser inserido socialmente como a pessoa que ele diz ser.

É certo que muitos países ainda não reconhecem a transexualidade, mas a operação cirúrgica mais conhecida como Sex Reassignment Surgery (SRS) é frequentemente tolerada. Em muitos países, a cirurgia é lícita e às vezes é feita sob a responsabilidade da Previdência Social (França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Brasil). Embora a intransigência quanto ao reconhecimento da alteração do estado civil ainda seja forte no mundo, muitos países (Estados Unidos, Suécia, Alemanha, Espanha e Canadá) rumam nessa direção. Na França, até recentemente, as tendências se dividiam entre acolher o justo direito à mudança de identidade civil e sexual e a recusa que coloca em destaque o princípio da indisponibilidade do estado pessoal ou a comprovação da impossibilidade biológica de mudar o sexo. Até 1990, o Supremo Tribunal de Justiça da França vinha decidindo pela ilicitude da modificação do estado civil, sob a alegação de que o transexualismo, mesmo quando medicamente comprovado, não pode ser entendido como uma verdadeira mudança de sexo, uma vez que as modificações anatômicas e hormonais só mudam o sexo na aparência e não na realidade da determinação cromossômica. Atualmente, a marcante inflexibilidade dessa posição vem sendo confrontada pela Comissão Europeia dos Direitos Humanos, que alega violação do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que garante a qualquer pessoa o respeito a sua vida particular e familiar, que envolve o direito de cada indivíduo de criar e manter relações com outros, tendo em vista o desenvolvimento e aperfeiçoamento da própria personalidade. Subjaz a essa conjectura a ideia de que a superação das barreiras do corpo que condicionavam o distúrbio de gênero permitiria a reconciliação da pessoa consigo mesmo, circunstância que colocaria necessariamente em reavaliação o princípio de indisponibilidade do estado pessoal.

O Direito brasileiro não prevê de uma forma expressa a possibilidade de alteração do prenome e do status sexual do transexual. Por essa razão, no Brasil, diversas decisões judiciais foram proferidas no sentido da impossibilidade de retificação do registro civil, considerando que a cirurgia de redesignação sexual não alteraria de todo o sexo do indivíduo. Posteriormente, o entendimento jurisprudencial evoluiu, passando a admitir as alterações nos casos de transexuais redesignados cirurgicamente. Nesses casos, argumentava-se em favor de garantia da dignidade da pessoa humana, assegurada constitucionalmente, bem como a necessidade de se adequar o documento de identificação à aparência do indivíduo na realidade, para evitar situações suscetíveis de constrangimento moral e pessoal, bem como prejuízo individual. Contudo, para garantir a proteção a terceiros, fazia-se constar, na certidão civil, o fato de tratar-se de um transexual redesignado. Recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça admitiu a alteração do registro de um transexual redesignado e garantiu que a nova certidão civil fosse feita sem que nela constassem anotações sobre a decisão judicial (REsp nº 1008398/SP). A anotação sobre a redesignação sexual só poderia figurar, nos livros cartorários, sob pena de expor o sujeito transexual a situações discriminatórias (Soares, M. A., Tavares, S. R. & Sousa Junior, M.: 2010 p.144).

No Brasil, especialmente no estado do Rio de Janeiro, já tem sido possível a alteração do estado civil mesmo antes da mudança de sexo, graças a uma perspectiva mais arejada dos juízes cariocas em considerar a questão da transexualidade.

Ecoa, nas democracias mundiais, uma forte propensão rumo à autorização da mudança transexual e à alteração legal e voluntária do estado civil. Os novos tempos prometem uma ampliação do direito individualista de dispor livremente de seu próprio corpo, o que caracteriza bem o triunfo da ética dos direitos e do desenvolvimento pessoal em detrimento da rígida moral dos deveres para consigo mesmo, tal como sublinhou o filósofo Frances Gilles Lipovetsky.

 

“A época pós-moralista pode ufanar-se de estar levando em consideração o direito à personalidade singularizada, à recomposição do próprio eu para além das delimitações naturais do corpo. [...] A era pós-moralista pressupõe a progressiva supremacia do direito de cada um dispor de si mesmo sobre os ditames incondicionais; do psicologismo sobre o moralismo; do sexo psicológico sobre o sexo morfológico informando que o estado pessoal e o respeito ao corpo humano já não são concebidos num sentido absoluto” (Lipovetsky, 2005, p.73).

Ainda assim, sublinho que, de nenhuma forma o transexualismo é, como pretende o fronte GLT que milita a favor das diversidades, uma variação do gênero humano que ocorre “naturalmente”, sendo observada e documentada desde a antiguidade, por exemplo, na figura dos eunucos (os eunucos não eram transexuais, ainda que algum eunuco da atualidade possa ser um transexual). Que alguém, que padece do mal de sentir que seu sexo não é seu, possa mudar de sexo cirurgicamente, isso é um fenômeno essencialmente contemporâneo. O transexualismo é correlativo à técnica cirúrgica de mudança de sexo e à efetividade de hormonoterapias. A prerrogativa de mudar de sexo só se sustenta na medida em que a cirurgia de mudança de sexo é afirmada como uma técnica bem adaptada com resultados avaliáveis para o suposto problema da disjunção entre sexo e gênero. A propagada eficácia técnica da transformação dos genitais aliada à poderosa força dos hormônios para modificar a aparência é, sem dúvida, um forte argumento a favor do procedimento que, por isso mesmo, promove o redirecionamento do gozo transexualista para as cirurgias de mudança de sexo. Se, cada vez mais, o transexual se entrega incondicionalmente às cirurgias de mudança de sexo, a alardeada eficácia técnica dessas cirurgias tem mérito nisso. A partir da oferta das cirurgias de mudança de sexo, o desejo muito enérgico de alcançar um sexo para chamar de seu fica reduzido a uma demanda de mudança de sexo dirigida aos cirurgiões.

O transexualismo é um efeito do discurso da ciência sobre a abordagem estritamente biológica da diferença dos sexos (arranjo entre os fatores genéticos, gonadais, hormonais e anatômicos). Isolados o algoritmo da determinação genética da diferença dos sexos e o princípio ativo dos hormônios masculino e feminino nos anos de 1950, tornou-se viável uma terapia baseada em hormônios sintéticos capazes de modificar os caracteres sexuais secundários de modo a alterar a aparência do sujeito, para conformá-la à aparência do sexo oposto, com o fim último de atender ao desejo individual de alguém. Assim, pelo uso contínuo de altas doses de estrógenos conjugados, associados aos bloqueadores de testosterona, um homem chega a alcançar uma aparência feminina bem configurada, tanto quanto o uso contínuo de testosterona em altas doses, pode fazer uma mulher alcançar uma aparência masculina indubitável. Para completar a metamorfose são associadas, no caso da SRSFemale→Male, mastectomia+histerectomia+faloplastia, e no caso da SRSMale→Female são associadas necessariamente orquiectomia+penectomia+reconstrução-de-pseudovagina e, facultativamente, implantes de mamas e cirurgias de feminização da face (remodelamento do contorno de sobrancelhas, lifting de testa, adiantamento de couro cabeludo, aumento das maças do rosto, rinoplastia, elevação labial, remodelamento do contorno mandibular, cirurgia plástica de queixo, raspagem do pomo-de-adão).

A captura midiática do transexualismo também contribui para fazer o fenômeno passar como um ícone da vitória cientificista sobre a sexualidade. São vários os casos de transexualismo masculino que vêm ganhando visibilidade como prova testemunhal de que mudar de sexo não seria um acontecimento improvável, pelo contrário, mudar de sexo seria antes um fato possível e crível. Mas, antes de fazer de tais casos modelo, é prudente interrogar as circunstâncias particulares em que a terapêutica hormonal e cirúrgica poderia se inscrever como solução para alguns transexuais, pois não deixarei jamais de assinalar que para vários transexuais, as cirurgias de mudança de sexo não produziram resultados satisfatórios; independentemente da técnica que foi usada, o resultado não concorreu para permitir ao transexual alcançar um sexo para chamar de seu.


Entre o direito e o desejo

A ordem simbólica no século XXI não é mais como era nos últimos séculos, especialmente a clínica do sofrimento mental no século XXI tem diante de si o desafio de reconhecer que as manifestações clínicas em torno da neurose e das psicoses mudaram sua modalidade de apresentação. As psicoses não têm mais a mesma apresentação que tinham no século XX ou no século XIX. O envoltório formal dos sintomas muda em função dos significantes da época. Não fosse isso, os trans não teriam conseguido remover da patologia seu problema e inscrever, na cultura, essa relação com o corpo, que dá ao transexual o direito democrático de escolher o próprio sexo.

Jacques-Alain Miller tem sustentado duas hipóteses para explicar essa mudança na clínica do século XXI: o declive do prestígio da autoridade (declínio da função paterna) e a elevação dos objetos mais-de-gozar (objeto a) ao zênite social. Em seu curso “O outro que não existe e seus comitês de ética”, Miller (1996-97) demonstrou que atualmente os ideais não predominam mais na regulação das organizações sociais e que, em seu lugar, um empuxo ao gozo de cada um predomina no laço social. Na mutação atual dos costumes determinada pelo casamento do discurso da ciência com a expansão global do capitalismo, não significa que os ideais desapareceram, e sim que em seu lugar aparece uma multiplicidade de ideais cambiantes e com a consequência que daí deriva de que nenhum deles é capaz de estabelecer uma rota principal ou suficientemente forte, como já foi a rota ditada pelo complexo de Édipo. No século passado, os ideais operavam temperando o gozo, e a perspectiva dos sintomas como mensagem do mal estar inconsciente tinha mais credibilidade. Com a mutação atual, produziu-se uma degradação do valor do sintoma como mensagem e, no lugar de o sintoma abrir a perspectiva de sua decifração e, por conseguinte, do tratamento que ligava o sujeito ao desejo inconsciente, prevalece a vertente do sintoma como vontade de gozo, vontade de mais gozar, que impõe a lógica da satisfação dessa vontade como tratamento. Existe, a cada vez, um novo objeto para consumar essa vontade que está pronto para ser usado e disponível ora no mercado de consumo, ora na racionalidade da ciência a serviço do mercado de consumo. Se alguém tem vontade de mudar de sexo, se essa é sua vontade, por que não realizar essa vontade, ainda mais que existem os recursos técnicos para isso e, mais ainda, quando toda a gente parece estar convencida de que se trata de um transtorno de identidade e, de nenhuma maneira, uma psicose?

Contudo, o ensino de Lacan jamais deixará de fazer ressoar que, ainda que os sintomas mudem de acordo com os significantes da época, o real próprio a cada estrutura permanece. Ainda que, na atualidade, as polaridades clínicas entre neurose e psicose tenham se tornado evanescentes, o real próprio a cada estrutura, seja neurose, seja psicose, permanece. Isso exige do clínico maior fineza, pois, hoje em dia, muitos sujeitos neuróticos se apresentam “como se” fossem psicóticos, muitos sujeitos psicóticos se apresentam “como se” fossem neuróticos, muitos sujeitos se apresentam com certa indeterminação diagnóstica. O surgimento de certa labilidade identificatória ou de identificações débeis termina sendo outro efeito do declínio dos ideais na cultura contemporânea. A identidade de gênero afirmada no transexualismo não deixa de ser uma identificação débil, pois, como disse Geneviève Morel, “o gênero é um sistema de identificações imaginário e significante, que não esgota a relação do sujeito a seu sexo, e àquele dos outros, pois a relação de cada um ao seu sexo é também real, coisa que o gênero não alcança” (Morel, 2000, p. 141).

Na ordem das coisas no século XXI, mudar de sexo é uma conquista irreversível do gênero, ao mesmo tempo em que a transexualidade se tornou uma expressão inegável do direito democrático de escolher o próprio sexo, ainda que isso não seja sem consequências difíceis para sujeitos que suportam essa metamorfose improvável. Nos dias de hoje, o transexualista chegará indubitavelmente a se fazer operar para mudar de sexo. A mudança de sexo condena o sujeito – no sentido de que é uma sentença irreversível – ao uso permanente de hormônios para configurar a aparência de homem ou mulher aspirada com a mudança de sexo. O transexual é alguém que ficará condenado, pelo resto de seus dias, a suportar essa condição de gozo reformatada, se assim posso dizer. Ainda que o mundo esteja convicto de que em tudo não passam de discursos de semblantes e jogos de aparências, ainda que o binarismo homem/mulher não se sustente mais como coordenadas do erotismo, ainda que o órgão masculino tenha perdido o valor simbólico na determinação da diferença dos sexos, ainda que o gênero seja suposto um terceiro sexo, o gênero continua sendo um sistema de identificações imaginário e significante, que não esgota a relação do transexual a seu sexo, àquele que ele diz que não é seu, e àquele que ele deseja de maneira muito enérgica alcançar. Na relação de cada transexual ao seu sexo ressoa algo de bem real - coisa que o gênero não alcança - que jamais deixará de vociferar sob o fundo da redesignação sexual chamando o transexual para os confins do que foi o seu exílio de ser.

Por isso vale a pena deixar ecoar a pergunta que não quer calar: ter um desejo é o mesmo que ter um direito?

Inteligência do transexualismo

A prerrogativa dos transexuais divide os psicanalistas que, não sem razão, muito rapidamente captam o efeito da forclusão no mote dessa paixão. Para o analista de orientação lacanina nada colocaria em questão o verdadeiro elemento causal dessa síndrome, a saber, o efeito da forclusão de fato como recusa da sexuação. Contudo, a sexuação, o gozo e sua articulação à função fálica, balizas clínicas que funcionam como âncoras da abordagem lacaniana do transexualismo, já não seriam suficientes para dar conta do fenômeno. Mas a orientação lacaniana forneceria outros meios para se pensar a diferença dos sexos e a identidade sexual, meios que não se apoiariam na função fálica. A teoria lacaniana do sinthoma, no último ensino de Lacan, ofereceria uma alternativa na articulação dos registros da existência (real, simbólico e imaginário) com o sintoma que permitiria abordar, com muito mais precisão, o modo da identidade sexual no transexualismo. Assim, abordar o transexualismo exclusivamente pelo viés da face psicótica desses casos pode deixar escapar o mais original, a saber, que na clínica desses casos, não se trata de apostar naquilo que faltou, mas na força inventiva que alcançou uma opção de identificação sexual de valor sinthomático.

Como uma questão preliminar ao tratamento desses casos, é importante destacar que não se trata de estabelecer um discurso que exorta sobre o imponderável do desejo de mudar de sexo para, então, fazer concluir que esses sujeitos não devam ser operados. É fato que hoje em dia, esses sujeitos se farão operar de qualquer forma. Ainda assim, do ponto de vista da psicanálise, isso não deveria autorizar operá-los de toda forma. As cirurgias de redesignação sexual (SRS) são afirmadas pela psiquiatria biológica como único recurso de tratamento do transtorno da identidade de gênero (TIG), mas é preciso estar advertido de que esse dispositivo não terá o mesmo efeito em todos os casos. A casuística revela que há limites para a desejada mudança de sexo. Há casos que se inscreveram no universo do transexualismo como arautos de que a impensável metamorfose de um homem em uma mulher seria possível. Contudo, há casos nos quais o transexualista foi compelido ao pior – desencadeamento de quadros francamente delirantes, suicídio -, pois a cirurgia guarda a possibilidade não negligenciável de ser tomada pelo sujeito como uma mutilação, já que o distúrbio de identidade atua eletivamente no sexo. Mesmo assim, é preciso considerar que não se poderia afirmar de antemão, que a cirurgia propiciaria o desencadeamento de um quadro francamente delirante, mas não se poderia negar, de toda forma, que a SRS seria uma mutilação apesar de ser uma técnica bem adaptada à demanda de correção terapêutica da convicção insofismável do transexual de que seu sexo não é seu, e cujos resultados estéticos e funcionais nem sempre poderiam ser garantidos previamente. O transexual Maitê Schneider (antes Alexandre) já realizou mais de nove cirurgias reparadoras no novo sexo e a terapia hormonal lhe causou oclusão arterial aguda de membros inferiores.

Portanto, na abordagem psicanalítica desses casos, trata-se de investigar subversivamente a possibilidade de fazer uso da redesignação sexual em sua função de sintoma, um sintoma no qual não se crê (não é possível crer na redesignação sexual), mas que, por isso mesmo, abre a chance de dela se servir. Por isso se trata, de saber considerar o real em jogo na experiência desses sujeitos que estão irrevogavelmente compelidos a mudar de sexo. Um analista deve estar atento às obscuridades do gozo transexualista que, em cada caso, se inscreveu nesse corpo que não pode ser chamado de próprio. Ao se debruçar sobre um caso desse tipo é preciso destacar, nessa forma inédita de fazer com o sexo, as coordenadas que, como sintoma, permitiram ao transexualista armar um corpo, construir um nome e conduzir-se na vida orientado pelo seu desejo, ainda que aquilo que foi sua paixão e sua aflição, não cesse de lhe assombrar como um pesadelo. Mas se o transexual armou uma defesa que lhe permitiu certo domínio sobre o corpo redesignado, isso sugere a captura da satisfação, sugere que ele alcançou fixar o flagelo de seu gozo, e é importante se perguntar se vale a pena trabalhar no sentido de levantar esse sintoma.
É preciso dizer que alguns trans - por caminhos singulares, às vezes dramáticos, às vezes trágicos - apostaram em sua força inventiva e alcançaram localizar num discurso a redesignação sexual pleiteada desde antes. Historias de vida como as de Bibi Andersen, Caroline Cossey, Roberta Close, Dana International, Amanda Lear, Marie-Pier Ysser, April Ashley, Jan Morris, Renée Richards subvertem as expectativas pessimistas que tendem muito rapidamente a ligar a redesignação sexual ao pior na vida de um sujeito que foi atormentado pelo gozo transexualista. Sobre cada um desses sujeitos, seria impróprio de não notar que a invenção de identificação teria sido capaz de localizar a mudança de sexo como um sinthoma que permitiu armar um corpo e alcançar o efeito surpreendente de uma nomeação nova.

Diante do fenômeno contemporâneo do transexualismo, o mais interessante - minha posição -, não seria exatamente precisar se estaríamos diante de neurose, psicose, perversão, estado limite ou anorexia mental. A posição clínica mais interessante me parece ser aquela que não se defende da originalidade que o fenômeno aporta no âmbito da sexuação mantendo o foco, menos no diagnóstico diferencial, e mais atento às soluções inventivas que cada sujeito foi capaz de tecer compelido pelo gozo transexualista e que, de alguma forma o conduziu aos hormônios e à cirurgia. A inteligência do transexualismo desabona o campo da lógica da castração e ousa alcançar uma posição subjetiva que se exprime numa ética, que consiste em vencer a falta pelo gozo, e numa estética que faz brotar o jogo das máscaras. A demonstração da identidade sexual no transexualismo, tal como ela se desfila na singularidade de cada caso desse tipo, costuma ser uma boa guia na aproximação do problema da pessoa que diz que seu sexo não é seu.

Se for possível uma invenção de identificação sexual de valor sinthomático é porque desde sempre na diferenciação dos sexos, o órgão só está em tudo isso de forma eletiva.

Um erro comum

Em 1971, Lacan se pronunciará sobre o transexualismo, criticando o aparato dialético com o qual o psicanalista inglês Robert Stoller abordou casos de transexualismo descritos no seu livro Sex and Gender (1968). Lacan destacou que a face psicótica desses casos se explicava prontamente quando se tinha em conta, a forclusão lacaniana (Lacan, 1970-71). Na lógica da estrutura, a forclusão de um elemento simbólico denominado significante do Nome-do-Pai implica a não travessia da epopeia edipiana, uma vez que o sujeito, por não ter sido submetido à castração simbólica, padece do acesso à significação fálica do gozo. Justamente por efeito dessa elisão da significação sexual do gozo, o sujeito se encontraria então, desalojado da partilha sexual ou fora do sexo. No âmbito da experiência do ser falante, quando algo está forcluído do simbólico, isso retorna no real. A elisão do falo retorna na experiência com vivências de impropriedade em relação ao corpo próprio. O ser falante que padece da elisão do falo pode experimentar um sentimento muito real de que esse corpo, que ele habita, não é seu. Sentimento muito real, não dialetizável, que se localiza eletivamente no sexo e que termina por compelir a dizer – como os transexuais dizem – “esse sexo não é meu”.

Nos anos 70, Lacan destacou que no desejo muito enérgico de passar para o outro sexo, está imiscuída uma paixão que termina por conduzir o transexualista à loucura de querer livrar-se de seu sexo (o sexo que ele diz que não é seu). Siderado por essa louca paixão, o transexualista padece de um erro comum, a saber, o de não ver que na relação de cada um com seu sexo, a anatomia interfere com muito pouco e que o falo não é o significante mestre do sexo, o falo é apenas o significado sexual do gozo, o significado daquilo que do sexo se localiza no discurso.

Na prática analítica é possível de verificar a cada vez, que, para cada um, seja o sujeito um neurótico, seja um psicótico, ou um perverso, as dificuldades de assumir seu sexo vão muito além do que a anatomia poderia assegurar e do que o falo poderia significar. O transexual compelido por seu desejo incontornável, não dialetizável, dilata ao extremo, por um lado, o caráter heterogêneo do discurso sexual em relação ao corpo e, por outro, o obstáculo que se coloca para uns e outros em se apropriar do próprio corpo para finalmente enunciar seu sexo. Contudo, o transexual leva às ultimas consequências seu desejo de fazer equivalente “o seu sexo” e “sua anatomia” e, sem que nada possa demovê-lo, não teme se entregar ao cutelo do cirurgião para forçar o discurso sexual, mesmo advertido de que esse dispositivo não terá o mesmo efeito em todos os casos.

De toda forma, a diferenciação clara e precisa que Lacan fez entre o pênis e o falo no tocante ao que ele chamou de “erro comum” do transexualista (o órgão do macho só está na diferenciação dos sexos como instrumento e o falo não é o significante mestre dos sexos) mudou completamente o manejo da significação fálica de forma geral. A significação fálica está, hoje em dia, realmente desconectada do órgão masculino. Justamente porque esse órgão perdeu seu valor como instrumento de diferenciação dos sexos é que se poderia aventar que, eliminar esse órgão já não passaria por uma loucura total para alcançar ser redesignado sexualmente. Ao mesmo tempo, o transexual que conserva o órgão genital também não estaria necessariamente impedido de alcançar a redesignação sexual que seu desejo reclama. Assim parece que o transexualismo não é apenas um efeito do discurso da ciência sobre a diferença dos sexos, mas é também um efeito sintomático da perda do valor do pênis como órgão da diferença entre os sexos. A transexualidade, seduzindo e obnubilando as mentalidades, alimenta nossa crença muito contemporânea de que um EU demasiado poderoso irá nos libertar do mal estar com a sexualidade.

Seja como for, esse desejo muito enérgico que desafia a relação sexual que não existe2, nos dias de hoje condena o transexual a se fazer operar atestando a céu aberto, o gozo fora do discurso que os capturou e os confinou a existir fora de si. “Se o sujeito recusou a sexuação, ele está fora do discurso, ele não aceitou o discurso sexual e seu significante mestre fálico. O sujeito então é compelido a inventar para si uma sexuação inédita, sem a ajuda da função fálica” (Morel, 2000, p. 146). As possibilidades de invenções nesse ponto estão abertas ao gênio de cada um ou à sorte de armar um sintoma a partir de um encontro com o real, para a qual o sujeito pode contar com a ajuda de um tratamento psicanalítico ou não. Esse gozo fora do discurso, sensivelmente louco, necessita da invenção de um novo significante para ser localizado, significante que é próprio ao sujeito que o inventou, incomunicável e alojado em um discurso particular, à priori sem endereço, salvo se um parceiro-sintoma se interessa suficientemente para apreender esse lugar. A sorte do sujeito pode estar decidida no tipo de parceria estabelecida, pois o trans pode se conectar a um parceiro tão perdido na pletora do imaginário quanto ele mesmo, ou pode encontrar um parceiro advertido das sutilezas da paixão transexualista que termina sendo a loucura de querer livrar-se do erro comum e assim não ser mais significado como falo pelo discurso.

Se o transexual foi compelido a inventar para si uma sexuação inédita, sem a ajuda da função fálica, isso vai exigir do clínico um pensamento que avance nos confins da sexuação no entendimento da configuração da identidade sexual nesses casos como um sinthoma sexual. Na maioria das vezes, o trans é alguém que esteve imerso no mar do significado fálico sem assumir subjetivamente suas consequências. Nesse caso, a criança que foi o transexual fica desconectada de toda relação precisa com a sexualidade e com o complexo de castração e amparada em identificações frágeis demais, identificações que correm o risco significativo de se colapsarem, no momento do desencadeamento, ou mesmo entrar em colapso e provocar o desencadeamento. Esse tipo de possibilidade está articulado ao modo de apreensão da língua materna. Ao mesmo tempo em que as palavras, os significantes da mãe ressoam sobre o corpo da criança, ela pode ser pega pelo significado fálico sem, no entanto, saber que ele é causa do desejo da mãe. Nos casos de transexualismo, posso dizer que a criança que foram, ficou abandonada do desejo da mãe e, abandonada desse desejo, ficou impossibilitada de se alojar como o falo da mãe. O abandono pela mãe, que provavelmente encobriu o abandono da mãe, pela defecção do pai, confinou o menino, ou a menina, à impossibilidade de ser o falo que falta à mãe. Nessas circunstâncias piores para uma criança, o sujeito decifrou o chamado do gozo como transexualista, ali mesmo onde experimentou o exílio de ser a coisa do Outro. Exatamente no ponto em que o menino, ou a menina, conheceu o abandono de ser a coisa do outro, o drama da existência de um transexual foi armado como um destino infeliz, no qual o menino, ou a menina, extraviado de si, acabou se tornando uma pessoa compelida a dizer que o seu sexo não é seu, e desde aí, inaugurou-se uma epopeia que o conduziu, na maioria das vezes, aos hormônios e às cirurgias.

O momento do desencadeamento dessa síndrome, que carrega o nome de transexualismo, reside nos confins da infância muito precoce quando, por uma contingencia inusitada da vida, a criança ficou capitulada como a coisa do Outro. Essa contingência inusitada inscreve o drama maldito de uma escolha impossível que recai sobre a criança, como aquela escolha que ficou conhecida como “escolha de Sofia” (mãe judia no campo de concentração nazista de Auschwitz, que é forçada por um soldado alemão a escolher, entre o filho e a filha, qual será executado, e qual será poupado). Por força das circunstâncias, exigências às vezes inenarráveis, a criança (menino ou menina) partilhou com o Outro a amarga certeza de ter sido largada para trás. De um lado, resta que ela não foi escolhida, não foi eleita o falo da mãe, de outro lado, resta que ela foi largada, deixada para trás como uma coisa despossuída de valor, como algo que a mãe pode perder, como algo do qual a mãe pode privar-se. Mais tarde, aquele que foi abandonado é recuperado, uma vez que a contingência infeliz que tinha determinado o abandono foi debelada. Normalmente, nesse interstício, a criança fez sozinha sua escolha do sexo, ali mesmo onde ficou impossibilitada de ser o falo que falta à mãe.

Assim sendo, se o transexual foi compelido a inventar para si uma sexuação inédita, sem a ajuda da função fálica, isso vai exigir do clínico um pensamento que avance nos confins da sexuação no entendimento da configuração da identidade sexual como um sinthoma sexual. Nesse caso, o sinthoma funciona como uma operação de corte mais generalizada, um sintoma separador no qual a criança que o trans foi abandonado como a coisa do Outro, encontra a chance de se tornar outra coisa, indo além da apostasia do pai. Faculdade de transmudar a falta em plenitude, sofrimento em gozo, necessidade em virtude, ainda que se pague um preço alto por isso.

Christine Jorgensen (antes George William Jorgensen)3, ex-soldado do exército americano foi redesignado em 1952. Desde então, Christine se colocou a serviço dos médicos, que participaram de sua transformação, como “garota-propaganda” das possibilidades da endocrinologia e da cirurgia de mudança de sexo para a humanidade, e terminou fixada nesse lugar: “Eu me sentia uma marionete a espera que o mestre viesse puxar os fios”. Confinada a esse lugar de “garota-propaganda”, Christine seguiu propagando a marca original de seu exílio: “Só se referem a mim como a cobaia n0 0000”. Christine Jorgensen é reconhecida como o caso princeps do transexualismo contemporâneo. Até sua morte, Christine jamais se declinou de ser “garota-propaganda”. A declaração de sua transformação se tornou um clichê do transexualismo: “Nature made a mistake, which I have corrected, now I am your daugther”. O armado do sinthoma sexual ”garota-propaganda” permitiu ir além da apostasia do pai: o pai de George Jorgensen munia uma louca paixão pela fotografia de guerra; para reunir a mais importante coleção privada de clichês da Primeira Guerra, ele não se furtou de declinar de seu lugar na família e no leito da mãe de Jorgensen para correr mundo atrás da causa de seu desejo: os clichês da Primeira Guerra. Na ausência do pai, o menino ficou entregue aos cuidados da avó para minimizar os encargos de sua mãe com a família.

Desde a adolescência, Jorgensen (2000) padeceu de uma magreza excessiva, fadiga crônica, desinteresse profundo pelos estudos e um sentimento intenso de inferioridade em função da indigência de seus caracteres sexuais secundários (ausência de pelos nas pernas e no rosto, bem como musculatura pouco desenvolvida para um homem), ao lado da impressão inquietante de que seus órgãos viris tinham se desenvolvido de modo insuficiente. Durante a adolescência, experimentava uma intensa inibição no mundo das distrações, das relações e das emoções, que lhe renderam uma tristeza crônica e um sentimento permanente de não se sentir bem em lugar algum (Jorgensen, 2000). Jorgensen, apesar das angústias e inibições quanto a seu lugar no universo masculino, nunca teria experimentado o gosto pelas roupas femininas. Ele só passou a se vestir de mulher depois de ter adquirido um passaporte feminino, após a mudança de sexo. Quando criança, apenas trazia consigo um pedaço de renda confeccionado por sua avó – o menino Jorgensen era excessivamente apegado à avó, como um objeto protetor contra a angústia.

Na adolescência, o esboço de uma amizade homossexual mergulhou Jorgensen no estranhamento de si. A fadiga crônica e a angústia causada pelo gosto por essa amizade homossexual que o invadia fez com que Jorgensen abandonasse os estudos para se dedicar à fotografia, paixão de seu pai. Jorgensen se mudou para Hollywood no afã de tentar se estabelecer no ramo da fotografia e talvez do cinema. Sem muito sucesso e sem experimentar qualquer sensação de apaziguamento de seus tormentos, ele teria pensado seriamente em suicídio, pensamentos interditados por sua convocação pelo Exército Americano, para servir durante a Segunda Guerra Mundial. A experiência no serviço militar por dois anos, acentuou seu sentimento de insuficiência viril e a angústia nauseante diante da tendência homossexual inconfessa. Depois do serviço militar, Jorgensen se estabeleceu num serviço burocrático em um laboratório de análises clínicas. Nessa ocasião, identificado sobremaneira a duas mulheres que eram, então, suas confidentes decifrou o chamado do gozo como transexualista e, aproveitando as facilidades de seu trabalho e os conhecimentos ali adquiridos, Jorgensen se autoprescreveu uma terapia hormonal feminizante. Um amigo médico lhe teria confidenciado que a transformação que ele procurava seria possível e que, na Dinamarca, a equipe do Dr. Christian Hamburger já realizava cirurgias de mudança de sexo (Jorgensen, 2000).

Em 1952, Jorgensen partiu para a Dinamarca, terra de seu pai, e se tornou, de boa vontade, cobaia do Dr. Christian Hamburger e de suas teorias sobre uma sexualização neuronal. Sob os cuidados desse endocrinologista dinamarquês, o ex-soldado americano George William Jorgensen foi submetido a um tratamento experimental com hormônios em doses muito altas que feminizaram definitivamente a sua aparência, enquanto que, pelas mãos dos cirurgiões Poul Fogh-Andersen e Erling Dahl-Iversen, a sua anatomia genital foi radicalmente modificada. Naquele ano, teria sido feita a orquiectomia e a penectomia. A vaginoplastia só foi realizada no ano seguinte, nos Estados Unidos.

Em devoção ao Dr. Christian Hamburger, o sujeito adotou como prenome o primeiro nome de seu médico, transposto para o feminino. Pronta para voltar para a América, Jorgensen, comunicou a seus parentes sua transformação: “Nature made a mistake, which I have corrected, and I am now your daughter.” (A natureza cometeu um erro, o qual eu corrigi, e agora eu sou filha de vocês). A notícia seria capturada pela imprensa americana e, em 1953, Jorgensen retornou para New York como Christine Jorgensen, uma loura vistosa, que roubava para si, naquele momento, o olhar estupefato da América. Em 1954, Christine Jorgensen foi eleita Woman of the year.4

Desde o início dos anos 60, a pedido do Dr. Hamburger, Christine se colocou a serviço do endocrinologista americano Harry Benjamin como garota-propaganda das teses a favor do tratamento cirúrgico e hormonal do transexualismo nos meios médicos americanos, assim como nos meios de comunicação mundiais. Estima-se que quinhentos milhões de palavras teriam sido usadas pela imprensa mundial, para registrar os resultados da primeira cirurgia de mudança de sexo comprovadamente bem-sucedida. Cobaia n0 0000, produto n0 1, escândalo de imprensa, encarnação do inusitado, seja qual fosse a designação, o fato era que Christine Jorgensen nunca mais seria um anônimo. Contudo, como todo sucesso mais cedo ou mais tarde cobra seu preço, esse também teria seu preço, e Christine se tornou prisioneira desse lugar de garota-propaganda do sucesso do Dr. Benjamin: “I felt like a puppet waiting for the master to manipulate the strings” [Eu me sentia uma marionete a esperar que o mestre viesse puxar os fios].

Apesar disso, o sujeito foi capaz de abrir para si uma fulgurante carreira no show business, sempre ancorada em sua transformação. Em 1967, publicou sua autobiografia intitulada Christine Jorgensen: a personal autobiography, na qual sublinhava que o sentido novo de sua vida era, ao mesmo tempo, um caminho sem volta do lugar de garota-propaganda: “There was no place to go and nothing else to consider but the entertainment world” (Não havia nenhum lugar para ir, e nada mais que considerar a não ser o mundo do espetáculo). Christine Jorgensen passou o resto de sua vida sob as luzes de palcos. Trabalhou em casas noturnas e cassinos, tornou-se cantora (suas músicas preferidas: “I Enjoy Being a Girl”, “Superwoman”) e apresentadora de talk shows. Por mais diversos que fossem esses palcos, todos estavam referendados no palco primeiro, aquele que inaugurou a captura do sujeito no mundo dos semblantes: por mais de vinte anos, Christine Jorgensen foi a personagem central – o caso princeps – no fenômeno do transexualismo. Transformada numa digna embaixatriz das questões de gênero emergentes na América e na Europa, durante a década de 70, ela visitou várias universidades para testemunhar sua experiência e ficou conhecida por sua franqueza e inteligência polida. Em 1989, ano de sua morte, ela declarou ter dado "a good swift kick in the pants of sexual revolution” (um pontapé certeiro no traseiro da revolução sexual). A metamorfose de Christine foi considerada avant-première da revolução sexual americana. Oferecida ao reino do olhar como um objeto fascinante, o sujeito teria adquirido nome e respeitabilidade, tendo sido designada uma personalidade feminina à frente de seu tempo.

A outra face desses casos

Considerando a forclusão de fato, a face psicótica desses casos salta aos olhos do clínico que assim tende a manter em suspeição, as terapias hormonais e a cirurgia de mudança de sexo. A psicanálise facilmente verifica nesses casos, a importância da prevalência do objeto olhar indissolúvel, intrusivo (não enquadrado pelo falo - não vale a/-φ), olhar desrealizador que determinou enunciar “esse corpo não é meu” ou “esse sexo não é meu”, e que pode terminar compelindo a passagem ao real. Mas pode ser que o objeto intrusivo, indissolúvel sejam as fezes, o seio, e mesmo a voz. Contudo, se a abordagem clínica é menos convencional, menos assentada no não atravessamento da epopeia edipiana e mais calcada na função do sintoma como aquilo que pode manter ligado as dimensões da existência humana entre si, somos conduzidos a alcançar a outra face dos casos de transexualismo. Pelo lado dessa outra face, é possível verificar, na maioria dos casos, que, em um momento aleatório da vida, por uma sorte do destino, por um acaso feliz, o sujeito que padecia da forclusão de fato, que seguia extraviado de si, é surpreendido, capturado por uma efração imaginária, isto é, a intrusão de um signo no domínio do imaginário sem que houvesse, por parte da experiência uma eficácia psíquica capaz de dotar essa ruptura de significação. Verifiquei, nos casos sobre os quais me debrucei que essa intrusão aleatória, sem referências, liberou um significado qualquer no qual o sujeito se exila. Trata-se de um sentido que se recorta como um sexo para chamar de seu.

Sem se declinar jamais desse sexo – porque ele não tem outro – desse sexo que agora o transexual pode chamar de seu, o sujeito pode até ser conduzido aos hormônios e as cirurgias. Não necessariamente todo transexual vai estar determinado a usar hormônios e se submeter às cirurgias reparadoras, isso vai depender do sentido se sexo que foi cunhado como sinthoma sexual. Então talvez não seja excessivo enunciar que, em alguns casos nos quais se verificava a presença de um gozo transexualista, o gênio do sujeito conduziu a cunhar para si um sexo que lhe permitiu, desde então, se situar em um dos lados da partilha sexual. Nesses casos, a questão do laço entre o eu e o corpo, mais do que os hormônios e a cirurgia, é pivô do que pode precipitar o pior, um corpo que se dissolve, ou do que pode inaugurar uma experiência de corpo, na qual o sujeito transexualista alcança um corpo para chamar de seu. É evidente que, de toda forma paga-se um preço alto por isso. Após trinta anos de mudança de sexo, o uso continuado de hormônios masculinizantes em altas doses rendeu ao transexual João W. Nery (antes Joana) artrose sistêmica com o comprometimento dos movimentos da coluna e das articulações da bacia e elevação grave dos índices de colesterol5.

A compleição a escolher uma posição sexuada, em outros termos, inventar um modo de assumir uma perda de gozo pelo viés de uma identificação que nada deve ao pai, conduz a destacar que o sinthoma separador pode ser dito um sinthoma sexual. “Se admitimos que não há nenhuma nomeação unívoca do real pelo simbólico, isso conduz a refutar radicalmente a afirmação, segundo a qual a sexuação de um sujeito seria fixada, de uma vez por todas, pelo Nome-do-Pai. O sinthoma sexual diz de uma identificação real, sem o aporte do Édipo e da castração. Quando o sujeito padece da forclusão, é evidente que o falo e a castração não desempenham nenhum papel simbólico; contudo, isso não impede que o sujeito venha a escolher uma posição sexual por outros meios sinthomáticos frequentemente inovadores (Morel, 2008, p. 330). Nesses termos, o sinthoma torna-se o único termo que faz link, ligação entre R, S e I, permitindo ao sujeito se sustentar numa realidade, como também liga ao semelhante, ao laço social e, enfim, ao parceiro sexual.

Um talento inusitado

O transexual é uma pessoa que vive entre certezas e fantasias. Quando alguém foi compelido a dizer que seu sexo não é seu, isso nos coloca diante de alguém cujo drama de sua existência tem duas faces e máscaras variadas.

Pelo lado de uma dessas faces, pode-se rapidamente reconhecer a psicose nas auguras do “empuxo-à-mulher” e no ato delituoso de se castrar, quando se está do lado masculino. De toda forma, não deixa de ser uma loucura o número infindável de transformações cirúrgicas, às quais alguns trans costumam se entregar. Bibiana Andersen, por exemplo, contou que já investiu quase cem mil reais em sua “ferramenta de trabalho” – o corpo feminino que ela pode chamar de seu e que sustenta a sua pessoa, livre do castigo imposto pelo menino que ela já foi. Bibiana é uma atriz de sucesso na Espanha, explosiva, vibrante, animadíssima, como são as mulheres de Andaluzia e, que segue sendo o que sempre foi desde a efração do imaginário: “una de las damas más pintonas” – sinthoma sexual que cumpre para Bibi(ana) a função de cunhar um nome, de alcançar um corpo que tem peso e que abriu a chance do sujeito proclamar a pessoa que ele é. O que é Bibiana? Homem ou mulher? Resposta mais próxima do alvo: una de las damas más pintonas.

Pelo lado da outra face, fica-se tentado a enxergar a perversão; afinal, não falta aos trans o talento de transmudar o sofrimento em gozo e a falta em plenitude. Que não se interprete mal essa palavra – perversão –, pois, no transexualismo, não importam os gostos sexuais, ainda que isso possa acontecer. Para o transexual, o sexo não é uma paixão fundada na atração física, e sim, na exigência incontornável de ser amado, incluído no campo do Outro como a pessoa que ele é.

Os trans são perversos no sentido da inclinação para os extremos, da vocação artística que não lhes falta, da faculdade de transpor suas ambiguidades, inversões e estranhamentos com a imagem de si mesmos e de fazer da necessidade uma virtude. É uma questão de ter estilo. Os trans costumam ter o seu estilo. No início, entregam-se a um brilho insolente dado pelas bugigangas e pelo travestismo mal configurado que só mascaram os equívocos profundos do ser mal formado, extraviado de si. Com o tempo, às vezes por uma sorte na vida, às vezes por ter encontrado um analista, desperta neles o inusitado – invariavelmente após um encontro feliz com uma imagem indelével, do tipo de que Freud falava a propósito das lembranças encobridoras (souvenirs-écrans).Efração do imaginário que fixa a trama de uma paixão.

Após esse encontro feliz de duas personalidades (o menino e a menina, que são clandestinamente), desperta no sujeito, a faculdade de se espelhar na busca da bela forma, do semelhante de classe, encontro feliz com uma personalidade que já é outra. Então a metamorfose não para mais: o sujeito se entrega ao que chamei de refinamento iconográfico da sua pessoa, um trabalho de composição continua de seu personagem. Pura alquimia. É o que venho acompanhando ao longo de minha prática com essas pessoas: quando eles se entregam a esse trabalho de composição de seu personagem, compelido pela paixão de alcançar um sexo para chamar de seu, aparece, no caso de ser uma mulher trans, uma personalidade feminina, um Eu demasiado poderoso que, enredado como paródia, destaca uma mulher extraordinária.

Os trans são perversos no sentido da père-version, no sentido da faculdade de transpor a forclusão, de lançar um desafio ao princípio supremo da normalidade (no que isso evoca da norma do macho) e inventar para si mesmos um sexo, que nada deve ao falo. Infâmia.

Os trans são “pèrevertidamente” orientados no sentido dessa ousadia da infâmia, que conduziu à fama a pessoa que são essas mulheres extraordinárias: Bibiana Andersen, Roberta Gambine, Caroline Cossey, Dana International, Amanda Lear, Ashley Brevard, Jan Morris, Lea T., April Ashley, Christine Jorgensen, Lili Elbe Wegener, Marie-Pier Ysser, Jacqueline-Charlotte Dufresnoy, Joana Nery que conheci por suas autobiografias e outras tantas, que encontrei em minha prática.

Essa estranha comunidade de duas faces antagônicas (de um lado, a perversão e, de outro, a forclusão), é consoante com uma opção de identificação sexuada, advento de uma sexuação inédita, um Eu demasiado poderoso que se isola como um corpo que resiste, à revelia do falo e que salva de naufragar no pior. Esse Eu demasiado poderoso é uma criação do sujeito, uma invenção de si que faz composição com a redesignação sexual, uma construção convergente entre o EU e o corpo intrincados como uma máscara com postigos. Esse tipo de máscara são aquelas que têm uma portinhola, que pode se apresentar aberta ou fechada. O antropólogo francês Claude Levi-Strauss estudou o desdobramento da representação nas artes da Ásia e das Américas, onde essas máscaras com postigos eram utilizadas em cerimônias religiosas e em espetáculos festivos. Lacan se serviu dessas referências de Levi-Strauss, para construir a topologia da máscara no esquema ótico, que ele elaborou para demonstrar como o eu ideal se enraíza no ideal do eu.

No transexualismo, a unidade desse Eu demasiado poderoso configurado sob as vestes de uma máscara com postigos conjuga dois perfis, um masculino e outro feminino: a máscara fechada isola um corpo que resiste; a máscara aberta poderia precipitar o extravio de si, instante de dissolução do corpo, não fosse essa surpresa de que já não existe ninguém mais por detrás da máscara. Só existe essa pessoa que se apresenta para ser apresentada como uma mulher, quando era o caso de um homem que dizia ser mulher, e ser apresentada como um homem, quando era o caso de uma mulher que se dizia ser um homem.

Nos casos em que se nota a presença de um gozo transexualista, não é incomum depararmos com uma estrutura sinthomatizada. O gozo transexualista que ressoa no corpo como uma invenção de identificação se suporta numa imagem cunhada no trabalho de sulcagem do real por uma insígnia de gozo. Essa insígnia permite ao trans localizar, de forma eletiva, o gozo que assombra, extraindo daí uma paixão da qual ele jamais alcança eludir-se. Dotado desse Eu demasiado poderoso, o sujeito transexualista segue condenado a narrar com o corpo o que foi o seu exílio de ser. Pantomima.

A redesignação sexual confirma a identidade em uníssono com o sexo que o trans pode chamar de seu: sexo que levanta a pessoa e lança aos confins os vestígios de antigas infelicidades petrificadas. Surpreendente savoir-faire. Destaco que esse saber fazer com a própria pessoa não é um privilegio dos trans que transitam no teatro das celebridades, como se poderia pensar. Em qualquer cena, pode-se encontrar o objeto que muda tudo. Em qualquer cena da vida cotidiana, pode-se encontrar o olhar que revira a estranheza em beleza, que desfaz a abjeção dilacerante e fixa a glória de uma vocação. Daí por diante, o desejo se impõe de forma muito enérgica, porque esse não é um desejo temperado pelo falo. Esse não é um desejo normal, no que isso evoca a norma do macho. Esse desejo muito enérgico tende para as sutilezas da ironia, para uso do efeito cômico do deadpan, aquela impassibilidade do humorista, como se não percebesse o ridículo das situações que apresenta. Pândega.

Qualquer transexualista pode encontrar, numa cena eletiva, fortuita, numa cena banal da vida cotidiana, a sua solução, a sua saída, que é também a sua entrada no discurso, aquela em que o menino, ou a menina, que conhecia o abandono de ser a coisa do outro, é exilado de si, e em seu lugar nasce outro, para a glória de sua pessoa – eu ideal enraizado no objeto da pulsão.

João ou Joana: um caso bem moldado

O transexual João W. Nery (antes Joana), ex-psicólogo, ex-taxista, autor de dois livros autobiográficos, é o primeiro transexual feminino a realizar a transformação de mulher para homem no Brasil. Após a publicação de seu segundo livro – Viagem solitária. Memórias de um transexual 30 anos depois – alcançou notoriedade nacional contando sua epopeia em busca da mudança de sexo e do corpo de homem com o qual ele pretende se incluir no discurso, tomando assento em um dos lados da partilha sexual.

Nascido Joana, João W. Nery assumiu a identidade de homem na vida adulta. Casou-se quatro vezes, segundo ele, viveu intensamente seus amores; tornou-se pai, e desafia visceralmente quem quer que possa contradizer o homem que ele é: “sou um homem sem pênis” (Nery, 2012). João W. Nery é um homem trans, ele alcançou um homem para chamar de seu: “Sou um homem sem peru. E quem disse que para ser homem tem que ter um peru”6.

A prosódia de João W. Nery sofreu muita influência do estilo do escritor, antropólogo e político brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997), desde que João, aos 15 anos, encontrou-se com o escritor no exílio. O pai de João foi exilado político no Chile. Nesse tempo, as duas famílias, Nery e Ribeiro, se frequentavam. João W. Nery já confessou incontáveis vezes que Darcy Ribeiro abriu para ele os caminhos da poesia, ensinou-lhe perder o medo das palavras, ensinou-lhe falar palavrões e acreditar nas delícias de se amar muitas vezes. Quando João ainda era Joana, conheceu Darcy que o fez sentir-se, pela primeira vez, sendo tratado “de igual para igual”. Segundo João, a austeridade moral de seu pai, um exilado político, interditava falar até a palavra “frescura” - “ele era capaz de matar por isso” (Nery, 2011).  Nesse encontro inesperado da adolescência extraviada de Joana, Darcy lhe teria dito: “fala merda, mas enche a boca, sinta a merda na boca para falar” 7. João W. Nery declarou que ali decidiu deixar de ser Joana para se tornar João (um eu ideal enraizado no objeto a, nomeação pela angustia que recorta uma identificação bem real se traduzindo numa escolha eletiva do sexo, que nada deve ao falo).

Naquele instante da adolescência extraviada de Joana, inadvertidamente acontece, por surpresa e efração, o que antes era impensável: a afânise do sujeito8 capturado inteiriço fatal, deixando uma marca destinada a se repetir como signo de um novo amor: “A coisa visceral do Darcy, isso ele passou para mim” 9.

Quando o amor brota, o sujeito padece do recorte eletivo de um objeto das pulsões parciais10, como na cena descrita por João W. Nery, quando ele ainda era Joana. O objeto “merda” foi eletivamente recortado envolvendo a criança Joana que padecia de ser a coisa do Outro, já que era fora do sexo, privada de corpo próprio, numa experiência de êxtase, na qual Joana reconhece o semelhante de classe – “me vi como um igual”- , e o sujeito renasce das cinzas, como no mito da Phoenix, com uma escolha do sexo selada por esse amor visceral. Joana, que conhecia o abandono de ser a coisa do Outro, se extraviou e nasceu João, uma identidade sexual, tramada como sinthoma sexual, como algo que liga um corpo sexuado a um Eu demasiado poderoso, à pessoa que desde então o sujeito estará condenado a compor para ser. O recorte eletivo do objeto “merda” nesse momento foi decisivo para a escolha do sexo: identidade sexuada tramada como sinthoma, ou seja, como um sintoma que liga a pessoa a um corpo que tem consistência: um corpo para chamar de seu.

No caso de João (antes Joana), o corpo impróprio da jovem se dissolve, e o corpo de um jovem toma consistência, por amor à personalidade visceral do home que gostava de falar palavrões. Se o ego é dito narcísico, é porque, em certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem. Isso que suporta o corpo como imagem adveio, no caso de João, do encontro fulgurante e contingencial com uma versão do pai naquele instante eletivo em que o sujeito é convidado e instigado a encher a boca de merda para tomar a palavra. Eis uma face do que Lacan chamou, no seminário RSI (1974-75), de “pai-versão” (père-version).

A père-version não seria senão a possibilidade contingencial de que alguma coisa, na vida do sujeito, teria funcionado em algum momento eletivo, como modelo de uma função, que, prescindindo de uma significação prévia, permitiu cernir o real, cernir o impossível e realizar uma passagem do simbólico ao real. Essa alguma coisa que funcionou como um modelo de função entregou mais efeito de gozo que de sentido; entregou aquilo que do gozo que não é fálico, e se traduziu em uma letra. Basta que essa alguma coisa seja um modelo de função de gozo para dar passagem a outras formas de nomeação do gozo que contigencialmente inscreve como operar com o objeto a, como se arranjar com o gozo que não tem nome, como saber-fazer com a causa do desejo. É isso que faz o sintoma nesses casos. O sinthoma transexual funcionou justo onde o falo passou elidido (elisão que subordinou a pessoa ao estranhamento de si e de seu sexo), escavando, no real, para além do que teria sido a apostasia do pai, uma letra de gozo que cunhou o sexo para chamar de seu.

A história da transformação de João W. Nery ensina sobre o que procurar pelo lado dessa outra face do fenômeno, a face da père-version. Aos 15 anos Joana se encontra com Darcy no exílio; o sujeito é arrebatado por um ser a três: encontro entre três personalidades em continuidade – Joana (João) Darcy –, que se confundem numa folie-à-deux, (Joana-Darcy), dado o êxtase que eleva ao zênite do microcosmo criado nesse ser-à-três, um objeto a (na fantasia, o corpo está recortado como objeto a: corpo próprio de Joana = merda). Desde ai, pôde surgir, enodado a título de sinthoma, uma nova personalidade, que seria distinta em relação às três personalidades precedentes, e o sintoma delas: João W. Nery – o homem que ele é, homem sem pênis, um homem cujo corpo deve mais ao objeto das entranhas do que ele mesmo pode supor.

Amanda Lear, uma mulher surrealista.

Dizem que Amanda Lear é um transexual. Isso nunca foi confirmado pelo sujeito. Mas sempre restam os boatos rondando a sua pessoa. Amanda é cantora de sucesso, atriz cômica, pintora, quadrilíngue (ela fala japonês, inglês, francês e italiano). Uma mulher que surpreendentemente sabe guardar segredo. Surpreendente, para uma mulher, talvez também por isso, ela possa ser dita uma mulher de brilho surrealista.

Em torno da Amanda Lear paira, ainda hoje, um mistério que intriga toda a gente: teria sido ela um menino? Fato de fato, ou fato enredado, o fato é que Amanda sempre soube tirar proveito de tanta falação sobre sua pessoa. Como quando escolhe os nomes de suas músicas, por exemplo: “If I was a boy”, incluída no disco Incognita, cuja apresentação é uma montagem icônica de dois dos sinais mais fortes de quem deve guardar segredo sobre sua pessoa ou sobre algo – óculos escuros e o dedo em riste sobre os lábios cerrados.

Amanda lançou recentemente seu último livro Je ne suis pas du tout celle que vous croyez... (Lear, 2009), título sui generis, deliciosamente completado por reticências. Talento de quem sabe compor com montagens icônicas e brincar com a(s) língua(s) materna(s).

O mistério de sua origem é uma incógnita insolúvel. E tudo indica que permanecerá sendo, por mais que se levantem hipóteses. Amanda é uma pessoa de personalidade firme.

É o preço que se paga quando se alcança ser celebridade. Nunca deixarão de pairar sobre a pessoa dela os ecos de sua possível história passada. Dizem as “más línguas” que ela teria sido um jovem rapaz de traços suaves que impressionava pela voz cavernosa e que, ao lado de Coccinelle e April Ashley, teria frequentado as noites do Le Carrousel, sob o nome artístico de Peki d’Oslo. Não faltam matérias jornalísticas sobre o reconhecimento de Peki d’Oslo, que trabalhou ao lado de April Ashley no Fifties, um teatro de revista do Le Carrousel, quando ele ainda era Alain Tapp. Dizem também que teria sido, nessa época, que Amanda Lear conheceu Salvador Dali.

Se ela foi ou não foi, isso nunca seria decisivo para macular a personalidade da pessoa que é Amanda. Essa máscara jamais será aberta e, ainda que isso viesse a acontecer, não haveria ninguém sob a máscara, porque já não se pode dizer que existe alguma máscara em Amanda, a não ser as máscaras da feminilidade.

Amanda Lear costuma dizer que, entre verdades e mentiras, sua carreira profissional tem se beneficiado disso, já que ela sabe compor com essa outra suposta personalidade que ela teria tido: Métamorphose, Phinx, Enigma, Forget it e Alter Ego são nomes de alguns de seus discos.É o preço que qualquer um paga, quando compõe com um enredo picaresco. Teatro das máscaras. Uns vivem disso, outros vivem para isso, outros se divertem com isso, outros são traídos pelo desejo. Todos ganham um quantum a mais de vida, seja para o melhor, seja para o pior, vai depender do talento e dos propósitos de cada um. Paródia do mundo contemporâneo.

Ela foi amiga de Salvador Dali por 15 anos. A pessoa de Amanda tem laços profundos com Salvador Dali (a man + dali ou L’amant Dali). Laços de um amor sincero e profundo que perduram além da morte de Dali. Dali foi o grande amor de Amanda, o homem que ela alcançou chamar de seu. (A pessoa dele, no entanto, foi sempre de uma só mulher, Gala). Eles nunca se deitaram, mas o amor de Amanda por Dali foi escrito nas estrelas.

Amanda (Alain) Tapp iniciou na carreira musical como cantora da roxy music. Ela teria sido redesignada sob o olhar de admiração de Salvador Dali, que a designou como uma montagem surrealista de mulher. Desde esse olhar, processa-se um refinamento iconográfico de sua imagem conhecida como concubina do rock, e sua pessoa é redesignada sob o signo mulher surrealista, que sempre desmentiria sua transexualidade. A propósito da admiração do pintor por sua pessoa, Amanda Lear pôde dizer que ele sempre a fizera sentir-se como se tivesse um brilho especial, surrealista.

Existem várias datas de nascimento da cantora: 28 de novembro de 1941, 1945, 1948, assim como sobre sua filiação (pai inglês/japonês, mãe japonesa/inglesa) e sua cidade natal: Hong Kong ou Saigon. No início de sua carreira, sua controversa identidade sexual teria se constituído num constrangimento que a obrigou a se converter numa cantora secreta, cuja história original passaria a estar envolta em meias-verdades e disfarces. Os temas de suas canções eram relativos ao gosto da mulher poderosamente sexual que explorava essa insígnia, aproveitando-se da voz cavernosa de que era dotada. Ainda hoje Amanda se destaca, entre outras coisas, pelo timbre diferenciado de sua voz. Essas canções lhe conferiram o apelido de Queen Lear. O codinome provavelmente fazia alusão à amizade com Dali e Gala. Amanda seria a rainha menor na vida do pintor.

Em razão de seu estilo de música, ela foi incluída na lista das “concubinas do rock”, pois sua música era enquadrada na roxy music – um tipo de música nos anos 70 que pretendia compor um novo estilo pela mistura do rock genuíno e do canto lírico fetichisticamente entoado. David Bowie é um dos grandes nomes desse estilo surrealista que mistura rock e canto lírico.

A lista das concubinas do rock incluía as cantoras que também eram amantes secretas dos cantores de rock famosos. Amanda Lear fora amante de David Bowie. A inclusão dela nessa lista assinalava que o estilo de música com o qual ela inaugurou sua carreira de cantora não era genuinamente o rock e que ela não seria senão uma amásia do rock. Mas, ao lado dessa crítica, sua imagem também estaria sendo iconicamente refinada com respeito a sua condição de mulher surrealista.

No início dos anos 70, Amanda lançou um disco que traduziu bem seu savoir-faire com toda essa montagem surrealista de mulher: metade mulher, metade cobra, com asas e o rosto que fazia alusão a uma Phoenix. Essa montagem de si como Phoenix, que ela intitulou Phnix, selava para sempre a máscara da Phoenix. Phnix, equívoco sonoro entre Phoenix e fim. Esse era o verdadeiro talento que Dali admirava em Amanda: sua faculdade de se misturar com as línguas, seus dotes linguísticos para compor com as sílabas. Esse encanto provocou Salvador Dali, que, ao conhecê-la, se apresentou e, sem preâmbulos, convidou-a para um chá. Eles se encontraram por mais de 15 anos. Dali foi o grande amor de Amanda Lear, o homem cujas palavras lhe vestiam o gênio e o coração: “ses mots habillaient le génie et le coeur” (Lear, 2009, p. 145). Ele lhe conferiu nome e reconhecimento, Amanda de Dali (a+man+dali), o que lhe permitiu destacar uma personalidade feminina surrealista.

Amanda Lear: uma mulher surrealista. Cantora de sucesso, pintora reconhecida na Europa e nos Estados Unidos, subiu ao palco de diversos teatros nos quais encanta plateias com seu bom humor, sua sagacidade, sua alegria de viver e sua bela pessoa. Amanda é como os vinhos, quanto mais velha, mais bonita, mais fascinante. Escreveu vários livros nos quais supostamente desvenda esse gosto inútil de procurar abrir suas máscaras, no afã de desdobrar sua personalidade e descortinar a pessoa que ela foi. Ela tem mais talento do que se possa imaginar. Não é qualquer um que desliza assim nos desfiladeiros dos significantes sem cair. Extraordinária faculdade de compor com as letras e com os semblantes. Extraordinária capacidade de, à revelia do falo, alcançar um homem para chamar de seu. Um homem talhado no gozo feminino.

Salvador Dali foi o amor que Amanda encontrou em sua vida, que, como disse Guimarães Rosa, é um descanso na loucura. Amanda jamais se deitou com ele, a não ser para cochilar juntos, quando o sol da Catalunha estava esmagando ao final dos dias de veraneio. Paixão que não esteve fundada sobre a atração física, mas que lhe legou o homem que destacou da sua pessoa, uma mulher surreal, e que ela segue amando e armando sempre.

“Avec Dali, j'ai fait l'expérience d'une passion qui n'était pas fondée sur l'attirance physique. Je n’ai jamais couché avec lui, sinon pour fair la sieste ensemble, quand le soleil écrasait notre chère Cadaques. Ce qui n'a pas empêche notre histoire de durer quinze ans. Quelle aventure extraordinaire!” (Lear, 2009, p. 145).

A aventura extraordinária desse sujeito dá testemunho de que como é cunhar um nome e compor um corpo que tem peso; nome que alcançou reconhecimento e permitiu ao sujeito se fixar num corpo que dá a ver sua consistência de sinthoma sexual: Amanda de Dali (a+man+dali), sexo que permitiu destacar uma mulher de brilho surrealista.

 

Notas

 
  1. Artigo baseado na tese “a pessoa que se é” – sobre as relações entre personalidade e corpo numa sexuação transexualista. Tese defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais em agosto de 2012 pela psicanalista Marina Caldas Teixeira, autora do presente artigo. Apresentado no III Simpósio do ISEPOL - Instituto Sephora de ensino e pesquisa de orientação lacaniana: “O lugar certo onde colocar o desejo”, no dia 08/06/2013, no Auditório do Hospital Copa D’Or, no Rio de Janeiro.

  2. O real psicanalítico do sexo consiste numa equação: não existe a relação sexual, logo existe a função fálica. A relação de cada um com seu sexo dirá respeito ao modo como cada um inscreveu seu gozo na função fálica. A tábua da sexuaçao diz de 4 opções de identificação sexuada. A escolha do sexo segundo a norma da neurose implica em duas opções de identificação sexuada, a saber, uma toda fálica e outra não toda fálica.

  3. Christine Jorgensen é considerada o caso princeps de mudança de sexo, pois inaugura o fenômeno no campo social, abrindo o viés pelo qual, na contemporaneidade, os transexuais alcançaram retirar o seu problema do campo da patologia. Nem travestismo, nem homossexualismo, nem perversão, nem psicose; um transtorno de identidade, segundo eles, no qual o sexo e o gênero ficaram em disjunção. Mas já em 1931, o pintor dinamarquês Einar Wegener se transformou cirurgicamente em Lili Elbe Wegener; e, em 1912, Felix Abraham relatou a transformação de Rudolf para Dora R e de Gert B. para Gertrud. Contudo, a realidade clínica dessa síndrome que se exprimia como um distúrbio de identidade atuando eletivamente no sexo não era novidade para a psiquiatria do século XIX. Esquirol, em 1838, já havia documentado essa síndrome como sendo um gênero de loucura que exprimia um distúrbio do caráter e do comportamento sem prejuízo das funções da inteligência: monomania. Krafft-Ebing tornou conhecido o notável testemunho autobiográfico de um médico húngaro sobre sua posição transexual (observação 129, contida no livro Psychopathia sexualis) esituou essa síndrome no nível da inversão sexual, um fenômeno de transição entre a homossexualidade e a metamorfose sexual paranoica.

  4. http://www.youtube.com/watch?v=T6PwpfdAXMM&feature=related postado em 05/7/2010.

  5. http://www.youtube.com/watch?v=mHh-Q025zjc postado em 18/10/2011.

  6. http://programadojo.globo.com/platb/programa/2012/04/30/joao-w-nery-e-o-primeiro-transhomem-operado-no-brasil/ Programa do Jô, recuperado em 10/6/2012.

  7. http://www.youtube.com/watch?v=hQIghiJdxNw&feature=relmfu Joao W. Nery De Frente com Gabi parte 3. Recuperado em 24/6/2012.

  8. Acontece um ponto triplo, uma superfície de boy, que é um plano projetivo real imerso em um espaço tridimensional, ou uma banda de moebius tripla. Essa superfície singular, sem bordas, unilateral, fechada sobre si mesmo onde pontos, anteriormente distantes foram fundidos. Nesse tipo de superfície, também chamada de figura impossível, há apagamento da fronteira entre os elos RSI, que passam a estar em continuidade. No Seminário “Topologia e Tempo”. Lição de. 21/11/1978, Lacan propôs traçar uma banda de Mœbius sobre um toro, o que chamou de “banda envolvente”: “prensando-o, de forma que ele fique aplastado e a face interior desapareça”. Essa segunda superfície, resultante da fusão da banda envolvente com o toro guarda semelhança com a de Boy e lhe é homotópica, mas não isotópica. Talvez Lacan nunca tivesse ouvido falar da Superfície de Boy.

  9. http://www.youtube.com/watch?v=hQIghiJdxNw&feature=relmfu João W. Nery De Frente com Gabi parte 3. Acesso em 20/04/2013.

  10. A fantasia é, na psicanálise, o cenário em que o corpo está reduzido ao objeto a, objeto em torno do qual se pode mais gozar, lembrando que só se tem acesso ao objeto a como objeto das pulsões parciais (Miller, 1997-98, p. 147).



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Resumos

The transsexuals and the sex to call their own

The article summarizes the problematic of transsexuals, people who are compelled to say that their sex is not theirs and claim the right to legal and physical change of sex. Considering the Lacanian approach to sinthome and sexuation as an option for sexual identification, the article discusses the transsexual enjoyment that ends up leading to sex change surgery and hormones, as well as on the talent of some transsexuals to achieve a gender to call their own despite the phallic function, achievement that in some cases maintains the subject attached to reality, connected to its peers and fixated on the idea of himself as a body with weight.

Keywords: psychoanalysis, transsexual, identity, gender, body, self, sinthome.

Les transsexuels et leur sexe à eux

L'article résume les problèmes des transsexuels, des personnes qui se sentent obligées a dire que leur sexe n'est pas le leur et qui revendiquent le droit de changer de sexe légalement et physiquement. Compte tenu de l'approche lacanienne du sinthome et de la sexuation comme option d'identification sexuelle, l'article traite de la jouissance transsexuelle qui finit par conduire à la chirurgie de changement de sexe et les hormones, ainsi que sur le talent de certains transsexuels à effectivement trouver leur propre genre malgré la fonction phallique exploit qui, dans certains cas, maintient le sujet attaché a la réalité, connecté a sés semblables et fixé sur l'idée de lui même comme un corps ayant un poids.

Mots-clés: psychanalyse, transsexuelle, l'identité, le sexe, le corps, l'auto, sinthome.

 

Citacão/Citation: TEIXEIRA, M.C. Os transexuais e o sexo pra chamar de seu. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 14, mai. a out. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 25/02/2012 02/25/2012.

Aceito/Accepted: 10/04/2012 / 04/10/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.