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Ícaro pós-moderno?

Postmodern Icaro?

Icaro postmoderne?

Lúcia Helena Carvalho dos Santos Cunha
Psicanalista
Doutoranda em teoria psicanalítica / UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Mestre em ciências, área de saúde mental/ENSP/FIOCRUZ (Rio de Janeiro, Brasil)
Professora Adjunta da UNIFESO, no Hospital das Clínicas de Teresópolis (Rio de Janeiro, Brasil)
Membro do ISEPOL - Instituto Sephora de ensino e pesquisa de orientação lacaniana (Rio de Janeiro, Brasil)
e-mail: luciahelenacunha@gmail.com


  Resenha do livro:
 

FILHO, Júlio de Mello (Org.) A identidade médica: implicações históricas e antropológicas. SP: Casa do Psicólogo, 2006 (393 páginas).

 

Lançado na coleção Temas de Psicologia e Educação Médica, organizada pelos psicanalistas Luiz Roberto Millan, Orlando Lúcio Neves de Marco e Plínio Montagna, o livro traz em sua contracapa a observação de que embora a medicina seja uma das mais antigas profissões da história da humanidade, tendo se desenvolvido nos últimos tempos e de forma extraordinária quanto ao aspecto técnico, a prática médica não alcançou o mesmo avanço no que se refere ao que há de mais precioso na profissão: a relação humana e a formação de novos profissionais. Organizado pelo psiquiatra Julio de Mello Filho, com formação psicanalítica na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, o livro é composto por dez artigos, além do prefácio e introdução, escritos por médicos e psicólogos, em grande maioria professores no campo médico.

Na sua introdução, Julio de Mello Filho afirma que “o tema de quem é e o que é a pessoa do médico, no mundo atual onipotente, desperta muitas paixões, discussões e controvérsias” (Filho, 2006, p. 17). Comentando a queda do médico da antiga posição de poder para a atual situação de “um ser humano comum, dotado de falhas e incompletudes” (Filho, 2006, p.17), o organizador observa que hoje em dia, em várias instituições, o médico já não é mais o profissional liberal socialmente vitorioso de outrora.

Em sua proposta de “refletir sobre a pessoa do médico, seus percalços, suas grandezas e falibilidades” (Filho, 2006, p.17), ele expõe o objetivo desse livro: examinar o que é ser médico, e qual sua inserção no mundo atual.

Adolpho Hoirisch, que introduziu no Brasil, em 1976, o tema através de sua tese sobre o problema da identidade médica, apresenta o primeiro artigo examinando as implicações históricas e antropológicas do ser médico, onde o peso de antigas representações culturais e etnológicas se mistura a enormes exigências, ainda atuais, que recaem sobre a figura deste profissional, submetido a pressões de natureza ética, moral e também tecnológica.

Erudição e atualização continuada, competência técnica e clínica, são obrigações que o autor destaca para esse campo de saber; e a essas se somam exigências de que a motivação profissional esteja pautada no “amor ao próximo, desejo de praticar o bem aos semelhantes e de contribuir para o bem-estar da humanidade” (Hoirisch, 2006, p.33), dimensões questionáveis da escolha da profissão médica. Reforçando a censura à manifestação do erotismo e da agressividade na relação com o paciente, o autor valoriza a “neutralidade afetiva, que não deve ser confundida com frieza” (Hoirisch, 2006, p.35).

Enquanto psicanalista, eu me pergunto: diante das idealizações que cercam essa escolha profissional, qual estruturação subjetiva pode ser esperada do sujeito submetido a essas exigências? Como conciliá-las com o campo pulsional? Como a experiência profissional desse sujeito se sintomatiza? Qual o preço subjetivo a ser pago pelos que aceitam esse contrato social?
Na Antiguidade, o preço a pagar na profissão era estipulado, como o autor nos informa, por códigos severos, capazes de punir severamente os erros médicos com amputação das mãos (Código de Hamurabi); na Idade Média, o texto indica que o médico estava submetido à justiça ordálica: caminhar sobre brasas, mergulhar em água fervente, ou ainda, nos piores casos, realizar ingestão de veneno.Era preciso ter muita coragem para ser médico, nos diz o autor.
Antes do surgimento da ciência, o modelo mágico religioso, o curandeirismo e o charlatanismo formavam os praticantes da cura médica; o poder de intermediar entre deuses e mortais levava o xamã a aterrorizar os demônios e a atrair todo o mal indesejável para o próprio corpo, no exorcismo do abraço, que depois precisava ser descarregado no terreiro. A crença religiosa autorizava o curandeiro a tomar para si o perigo, sempre presente na experiência médica. Entre os gregos, o autor nos traz o mito de Asclépios (Eusculápio para os romanos) capaz de ressuscitar os mortos e impedir que enfermos morressem, atraindo sobre si a ira de Hades (Plutão) que, ao se queixar pelo esvaziamento de seu reino a Zeus, conseguiu com que Asclépios fosse fulminado por um raio.

O preço a pagar aparece, no mito, de maneira explícita.

A partir do advento da medicina científica, o ato médico assumiu outras dimensões; mas o perigo parece persistir... O livro examina, através de diferentes textos, as questões do ensino médico e da construção da identidade profissional refletindo sobre a iatrogenia inerente ao exercício profissional, os riscos do corporativismo da medicina contemporânea e o papel do ensino da psicologia médica entre os estudantes, percorrendo o que é tido, neste campo, como normal ou patológico na personalidade do médico, o que inclui o exame do Burnout1 no exercício profissional da medicina.

Entre os atributos considerados saudáveis, Julio de Mello Filho relaciona, a partir de texto de Davi Zimmerman, um perfil de personalidade que reúne múltiplas qualidades, como o esquema referencial com que o médico pensa, age e se comunica; sua ação implicitamente psicoterápica diante do paciente, sua capacidade de integração entre o que é do corpo, da mente e da sociedade; sua intuição e empatia, capacidade de ser continente para as angústias, fantasias e necessidades do paciente; sua capacidade para se deprimir, reconhecendo suas falhas e limitações; sua capacidade de se comunicar, inclusive de forma não verbal; sua capacidade de reparação diante de seus aspectos problemáticos; de elaboração de seus conflitos. Resumidamente, o autor nos diz que a identidade médica saudável é constituída pela sensibilidade, empatia, firmeza, retidão, generosidade, tolerância, bom senso, inteligência, dedicação e perseverança. Enfim, tudo o que “faz da medicina a mais nobre das profissões” (Filho, 2006, p.227).

No campo do patológico o autor se refere a exageros e deformações da prática médica, como o ser sempre médico, considerado uma atitude obsessiva típica da classe médica; e a certas iatrogenias que se tornam vícios profissionais, “como, por exemplo, fazer pequenas incisões cutâneas sem anestesia” (Filho, 2006, p. 224). O sadismo, a agressividade dos cirurgiões e a atitude demasiadamente fria dos urgentistas são por ele referidos, assim como condutas que afetem os pacientes (com a observação de que um médico toxicômano, em princípio, não lesa seu paciente, mas sua depressão, sim); ou os “modelos de identificação” (Filho, 2006, p. 225) problemáticos, de médicos obesos, ou fumantes, etc., diante de seus pacientes que precisem emagrecer ou parar de fumar. Onipotência e defesas maníacas são tomadas como sendo os recursos adaptativos mais comuns entre os médicos: “O uso da onipotência encerra o risco de que o paciente fique lá embaixo, pequenino, isolado do médico em sua grandeza divina e em sua arrogância” (Filho, 2006, p. 225). Enquanto que as defesas maníacas, a seu ver, aparecem diante de realidade dolorosa eivada pela dor, morte e depressão; e o uso de conduta superficial, surge onde contatos fugazes evitam que o médico se deixe contaminar pelo estado de espírito deste paciente. O autor chega a dizer que esta defesa já se tornou “um dos cacoetes típicos da classe médica” (p. 225), imortalizado em filmes como Mash (1960, com Donald Sutherland) e em outros protagonizados por William Hurt, ou por Robin Williams, que denotam defesas maníacas nos médicos retratados. Mas ainda assim afirma que “este cabedal de atributos tão negativos, onipotência, arrogância, narcisismo, obsessividade, traços maníacos” (Filho, 2006, p. 227) não são atributos presentes entre todos os médicos; e que os exageros e traços patológicos não levam necessariamente a erros ou falhas éticas junto aos pacientes, “o lado heroico do médico que junto com seus atributos saudáveis consegue que este, na maioria das vezes, acerte” (p. 227). O autor conclui falando de sua suposição sobre a existência de “muito rancor contra o médico em nossos inconscientes coletivos, o que nos leva mesmo a pesquisar em busca de [...] desvendarmos suas falhas, expormos seus calcanhares de Aquiles” (p.228), ainda que reconheça a importância de se ajudar os médicos a descerem dos pedestais e se humanizarem.

A orientação lacaniana me leva a pensar nas posições subjetivas acima referidas, a partir da questão que a castração coloca para os seres humanos: como cada médico lida com o real enquanto impossível de significar? Diante da morte, limite radical que desafia a medicina científica, como esse sujeito se posiciona? Quando o fantasma determina a aspiração de ocupar o lugar de exceção à castração, do ao-menos-um fora da castração, talvez o profissional se lance num voo ascendente como no sonho de Ícaro... cego pelo ideal, inalcançável, ou seduzido pela aspiração de alcançar o impossível, na onipotência, a evitação do encontro com a castração cobra sempre um alto preço.

E então o “lado heroico” do médico, referido no texto, exigiria o auto-induzido corte nas asas, o reconhecimento de que o saber médico orienta seu ato apenas na medida de possibilidades rigorosamente testadas, em condições cientificamente examinadas, dentro de limites estabelecidos. Caso contrário, o preço a pagar surge num sintoma, no caso, um sintoma profissional que o livro não deixa de abordar.

Esse conjunto de artigos, em cuja introdução é dito que ”de uma imagem de demiurgo, onipotente, sacerdote e dotado de todos os poderes e qualidades, caiu o médico para uma posição de ser humano comum, dotado de falhas e incompletudes, e, portanto, passível de erros e titubeações” (Filho, 2006, p. 17), contempla um estudo sobre o sintoma profissional contemporâneo do burnout, ou esgotamento profissional, onde se constata um declínio da satisfação na profissão.

Abordando questões como o estresse na medicina, marcado pelo encontro com o sofrimento, a sexualidade e a morte, o artigo comenta a realidade profissional contemporânea, de incerteza; seus autores trazem uma pesquisa de campo realizada com um grupo de médicos do estado de São Paulo, cujos resultados atestam a existência de casos onde a relação com a profissão expressa desesperança e sofrimento subjetivo. Tal experiência é relacionada pelos autores à frustração diante das expectativas de realização profissional, e a conflitos frente ao “ideal de ser médico” (Filho, 2006, p. 359), próximos à experiência de dor diante da violência e à economia psíquica da dor. Nos dizeres dos autores,

  “são formas de lidar com a violência, da qual o sujeito se sente vítima. Violência que adveio da infração de um contrato que estava implícito na ordem social, e que legitimava as aspirações que sustentavam a própria escolha da profissão. Quebra de contrato, realizada de forma arbitrária, imposta, geradora de sofrimento, vivida como sem alternativa e que ameaça sua identidade” (Filho, 2006, p.363).

Ícaro pós-moderno, esse sujeito experimenta a queda violenta do patamar idealizado, sonhado, fantasmaticamente construído, sintomaticamente fracassado, de uma identidade médica que lhe foi proposta?


Nota:

  1. Burnout - ou Síndrome do esgotamento profissional - é, segundo os autores do artigo “O Burnout no exercício profissional da medicina” (Filho, 2006, p. 315-369), um conceito desenvolvido na década de 1970 a partir de trabalhos da psicóloga social Cristina Maslash e do psicanalista Herbert Freudenberger, que assim indicam "o preço que o profissional paga pela sua dedicação ao cuidar de outras pessoas, ou de sua luta para alcançar uma grande realização" (Filho, 2006, p. 332).