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A obesidade como sintoma contemporâneo: uma questão preliminar1

Maria Cristina da Cunha Antunes
Psicanalista
Membro do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana / ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
Doutorado em Teoria Psicanalítica / UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Coordenadora do grupo de pesquisa sobre obesidade crônica e obesidade mórbida do ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
E-mail: crisantunes@superig.com.br

Katia Moskal Danemberg
Psicanalista
Membro do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana / ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
Integrante do grupo de pesquisa sobre obesidade crônica e obesidade mórbida do ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
E-mail: kdanemberg@hotmail.com

Maria Luiza Caldas
Psicanalista
Membro do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana / ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
Integrante do grupo de pesquisa sobre obesidade crônica e obesidade mórbida do ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
E-mail: luizacaldas@terra.com.br

Flávia Lana Garcia de Oliveira
Graduada em Psicologia / UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Membro adjunto do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana / ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
Mestrado em Teoria Psicanalítica / UFRJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Especializanda e residente em Psicologia Clínica Institucional do Hospital Universitário Pedro Hernesto / HUPE / UERJ (Rio de Janeiro, Brasil)
Integrante do grupo de pesquisa sobre obesidade crônica e obesidade mórbida do ISEPOL (Rio de Janeiro, Brasil)
E-mail: flavialanago@gmail.com


Resumo

Nosso estudo sobre as obesidades em mulheres localiza o seguinte ponto comum: nas mulheres obesas crônicas, seus corpos estão fora do sexo. Esta evidência exige um exaustivo trabalho preliminar de investigação no sentido de localizar se esse corpo fora do sexo é efeito do recalque, caracterizando uma estrutura psíquica neurótica, ou se é uma neo-conversão, indicando uma psicose não desencadeada. Neste caso, estaríamos no âmbito das psicoses ordinárias, isto é, no campo dos novos sintomas conversivos da contemporaneidade. Apresentaremos duas vinhetas clínicas do tratamento de mulheres obesas crônicas que ensinam a importância de não se abrir mão da investigação psicanalítica para podermos definir se estamos de fato diante de um sintoma contemporâneo. Na civilização contemporânea, em que o gozo excessivo é estimulado e requerido, a busca do diagnóstico psicanalítico referido à sexuação é cada vez mais trabalhoso e difícil, revelando-se, ao mesmo tempo, como primordial em nossa orientação como psicanalistas.

Palavras-chave: obesidade, diagnóstico psicanalítico, real, sintoma, cultura.

 

 

O campo do real e a modernidade

O campo freudiano de orientação lacaniana trabalha segundo o axioma de que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização. Esta afirmativa de Miller (2004) se estabelece no rastro das tradições freudiana e lacaniana. Freud apresenta esta tese em textos como “Totem e tabu” (1913), “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908), ou ainda em “Mal estar na civilização” (1930). Nestes artigos, ele explicita de diferentes formas que o funcionamento subjetivo na modernidade se caracteriza pelo antagonismo entre pulsão e civilização. A renúncia ao gozo incestuoso, cuja origem é remontada por Freud (1913) ao mito do assassinato do pai primevo, a inibição da finalidade pulsional com o abandono do investimento libidinal dos objetos edipianos em prol dos objetos disponíveis na cultura (1908) e a consideração do mal-estar intrínseco à civilização relativo à produção de um excesso pelo supereu no interior do psiquismo (1930) são os processos destacados como constitutivos da subjetividade moderna.

Desse modo, a lei representada pelo pai barra a satisfação autoerótica da sexualidade infantil, transmitindo a promessa de satisfação na esfera da partilha sexual adulta. As diferenças entre as gerações e entre os sexos produzem um efeito de regulação da pulsão de morte, do corpo e do gozo. É pela referência fálica que elas permitem a inserção do sujeito no laço social da modernidade.

Em “A ciência e a verdade”, Lacan (1966) aponta o corte que a ciência moderna produz entre o mundo antigo e a modernidade. Sustenta que este corte tem como consequência uma mutação subjetiva, denominada por ele de sujeito da ciência. Assim, Lacan estabelece uma equivalência entre sujeito da ciência, sujeito moderno e sujeito do inconsciente. Com esta articulação, propõe o axioma fundamental da orientação lacaniana: o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência. A descoberta freudiana do inconsciente só pôde acontecer nesse contexto sócio-histórico caracterizado pelo advento da ciência moderna, a qual promove a expulsão de Deus do mundo, recusando a autoridade divina e o conhecimento fundado na fé religiosa.

A noção de real, no campo psicanalítico, advém do campo da ciência: a ciência moderna é um corte que introduz, na civilização, o real como impossível. Neste trabalho, utilizaremos o conceito de real que Lacan apresenta no Seminário 19: ...ou pior: “o real constitui um limite que resiste ao avanço da articulação de um discurso” (Lacan, 1971-72, p.81). Sabemos com Koyré (1991) que a ciência moderna produz um corte em relação ao mundo antigo, medieval. Este corte é nomeado por ele como a retirada de Deus do mundo. Como apontamos, no mundo antigo, Deus estava presente como a origem de todas as coisas, fornecendo o sentido do mundo. O universo era finito e Deus, como o princípio de tudo, representava a existência de um sentido prévio que ordenava o mundo. A figura divina falava aos homens através de seus representantes e organizava as existências. Indicava de onde cada um vinha e para onde ia. A ciência dessa época é representada pela ciência de Aristóteles: tratava-se de catalogar e de classificar as coisas que Deus colocou no mundo. O gesto de retirada de Deus do mundo, que inaugura a ciência moderna, é uma operação lógica. Tem como efeito a dessubstancialização dos objetos, ou seja, o esvaziamento das suas qualidades sensíveis (imaginárias) e de seu sentido prévio (Deus).

Trata-se de uma operação lógica que podemos aproximar da operação que Lacan demonstra no Seminário 19 acerca da relação entre o zero e o um no campo da lógica matemática. Logicamente, o zero – conjunto vazio – é a condição de possibilidade da constituição da série dos números inteiros. O zero corresponde ao conceito do número que não há: é o número um que funda a série dos números. Nesta operação, fica evidente que o objeto da ciência – aqui a série dos números – se constrói por relações lógicas e não em relação a uma evidência empírica. Aquilo que se escreve no campo da ciência – a fórmula matemática – organiza-se em relação ao que é impossível de escrever. A ciência opera nessa dialética que se evidencia como “impasses lógicos” (Lacan, 1971-72, p.137).

No texto, “O saber do psicanalista”, de 1971, Lacan afirma que fala aos muros e faz uma relação entre os muros e o mito da caverna de Platão. Seguindo o comentário de Coelho dos Santos (2012) sobre este texto, observa-se aí uma analogia entre a caverna de Platão e o que Lacan nomeia como o muro da linguagem. A ciência moderna funda o campo para além do muro da linguagem: o campo do real como impossível. Isso significa dizer que a ciência opera com puras formas, com o campo do significante, no domínio das fórmulas matemáticas, despojadas de qualquer sentido. Para aquém do muro da linguagem, isto é, do campo do sentido, encontram-se os discursos que organizam a realidade. Desse modo, há uma equivalência entre discurso, laço social e realidade. A realidade é, portanto, considerada como um efeito discursivo.

Lacan apresenta o conceito de discurso no Seminário 17: o avesso da psicanálise (Lacan, 1969-70). Discurso é um aparelho que regula, distribui o gozo, organizando as modalidades de laço social. A máquina discursiva proposta por Lacan possui quatro lugares: agente, verdade, saber e gozo, os quais são compostos por quatro letras (S1, S2,  barrado e a) que fazem uma permutação por esses lugares, dando lugar aos quatro discursos existentes: o discurso do mestre ou do inconsciente, o discurso da histérica, o discurso universitário e o discurso do analista.

O que nos interessa ressaltar é que essa permutação de letras pelos lugares obedece a uma lei: as letras giram respeitando a mesma medida de ¼ de volta, na direção dos ponteiros do relógio. Essa permutação regulada a partir de uma lei inscreve, simultaneamente, uma impossibilidade, ou seja, inscreve o real como impossível: é impossível as letras permutarem em qualquer direção. Nesse ponto, a nosso ver, Lacan evidencia que os discursos se organizam ancorados no real, tal como a ciência o demonstra, isto é, como impossível de se escrever. Os quatro discursos fundam, portanto, modalidades de laço social que se constituem a partir do real.

No Seminário 19, Lacan apresenta a proposição de que não há relação sexual a partir da impossibilidade de se escrever o que é um homem ou uma mulher. Diz Lacan: “o homem e a mulher não sabemos o que são” (Lacan, 1971-72, p. 35). O que se escreve, em discurso, é o valor sexual recebido, homem ou mulher, presente em todas as línguas. Lacan, desse modo, parte da tese de que para haver homem ou mulher, é preciso sua organização em discurso, só assim é possível. Isso significa que todo ser falante ou bem é ele ou bem é ela. Não há neutro.

O valor sexual – homem ou mulher – advém da relação ao falo, o significante da diferença anatômica entre os sexos. O falo – o operador da diferença sexual no campo discursivo – é o meio pelo qual se pode escrever o que é ser homem ou ser mulher. Dessa argumentação, resultam as fórmulas da sexuação introduzidas no Seminário 20: mais, ainda (Lacan, 1972-73): não há relação sexual. Há, portanto, sintoma sexual. Reencontramos, aqui, as coordenadas freudianas: os sintomas são sexuais. São respostas frente ao real do sexo, impossível de se escrever. Os operadores do complexo de Édipo e de castração possibilitam a organização em discurso do sexo (discurso do inconsciente). Nesse sentido, o mal-estar subjetivo diz sempre respeito ao sexual.

A civilização contemporânea e os novos sintomas:

Coelho dos Santos (2012) propõe a tese de que a civilização contemporânea tem uma relação perturbada com o real da ciência. Propomos explorar essa tese a partir do quinto discurso que Lacan apresenta como o discurso do capitalista. Este discurso se caracteriza pelo fato de que não há lei na permutação pelos lugares discursivos: todo movimento de permutação é possível. Isso representa uma abolição, no campo discursivo, da relação ao real. Desatar o laço entre o simbólico e o real tem como conseqüência a fantasia de que tudo pode ser dito, ou seja, de que todos os ditos – os objetos – são equivalentes. Esta desrealização do simbólico engendra o campo subjetivo necessário ao capitalismo de consumo. Quando não parece haver mais o real em jogo, o que temos são objetos consumidos e descartados, numa relação de gozo imediata e automática.

O rebaixamento do simbólico produz identidades forjadas em torno do eu, sob o imperativo do individualismo. Este é o parceiro que convém ao capitalismo de consumo: o sujeito que é um consumidor, cuja falta é sempre falta em gozar. Se a modernidade engendrou um sujeito que se apreendia como falta-a-ser em relação aos seus ideais, a contemporaneidade produz um sujeito à caça do mais de gozar.

Outra consequência da relação perturbada da civilização atual com o real é o empobrecimento da relação ao saber. Os laços sociais são preponderantemente imaginários, intersubjetivos e simétricos. O saber confundiu-se com a opinião e caiu no relativismo. No campo psicanalítico, a relação dos sujeitos com o saber decaiu para um pragmatismo, para querer saber como fazer com o seu modo de gozar. A suposição de saber ao Outro, o campo simbólico, e, portanto, ao inconsciente, não está mais garantida pela cultura. Pelo contrário, a cultura contemporânea funciona no sentido do apagamento dos significantes mestres que podem orientar uma existência. No lugar deles, estão os objetos de consumo.

O termo “novos sintomas” ou “sintomas contemporâneos” surge, no campo freudiano de orientação lacaniana, para nomear as modalidades de sofrimento psíquico atuais que, justamente, não se organizam conforme o sintoma clássico freudiano. O sintoma em Freud, como dissemos, é uma formação do inconsciente. Ele resulta de uma formação de compromisso entre um desejo sexual e uma exigência da realidade que se lhe opõe. Trata-se do mal-estar em relação à sexuação e da produção de um sintoma cujo sentido é sexual. Sob a operação do recalque, o desejo sexual retorna de forma disfarçada, irreconhecível para o eu e experimentado como sofrimento. O sintoma, enquanto uma formação simbólica, é uma mensagem endereçada ao Outro que pode interpretá-la.

Os novos sintomas se apresentam como transtornos cuja evidência é a satisfação pulsional a céu aberto. Esta se apresenta de forma não deformada, automática, como exigência de satisfação imediata. É o campo das compulsões, dos vícios, da angústia elevada ao pânico desorganizador, da depressão melancólica. Esses sintomas não são formações do inconsciente e não portam uma mensagem a ser interpretada. São soluções, tratamentos do gozo que não passam pelo trabalho do inconsciente (Coelho dos Santos e Antunes, 2006). Isso significa dizer que estes transtornos são organizações sintomáticas que não possuem um sentido sexual, são experiências de gozo fora do sexo.

O conceito de “novo sintoma” se articula ao de “psicose ordinária” (Miller, 2004). Tal conceituação foi criada buscando um contraponto com a chamada psicose extraordinária, a psicose clássica, efeito da foraclusão do Nome-do-Pai, com a consequente produção de uma atividade delirante. A psicose ordinária tem relação com a civilização contemporânea, com a época em que o Outro não existe. Para Miller (2004), a partir do momento em que a lei do pai não é mais o eixo que orienta a civilização, está-se na época da psicose ordinária. Com o declínio do Nome-do-Pai, a psicose já não é mais uma exceção à regra, pois não há mais uma regra a seguir. Como efeito, o que temos são soluções de gozo que localizam, estabilizam, impedem o desencadeamento psicótico.

O Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo trabalha alinhado a esta orientação. Sob o âmbito do ISEPOL, surgiu o projeto de psicanálise aplicada ao tratamento da obesidade, com o objetivo de investigar a articulação entre obesidade e sintomas contemporâneos e delinear a potência do dispositivo analítico no tratamento dos chamados novos sintomas.

A partir das referências psicanalíticas que traçamos acima, estabelecemos as seguintes coordenadas neste projeto:

 
  1. A obesidade não é um sintoma psicanalítico. Trata-se de um fenômeno que não é idêntico em todos os sujeitos. Há, portanto, obesidades, cuja função psíquica desempenhada para o sujeito varia conforme sua estrutura subjetiva.
  2. Nesse sentido, o fenômeno da obesidade precisa ser investigado à luz do processo de sexuação, ou seja, a partir dos operadores do complexo de Édipo e de castração.
  3. Com essa orientação relativa ao campo da sexuação, podemos definir de saída que as obesidades das mulheres não são idênticas às dos homens. Conforme nos alertou Freud (1923), embora as posições subjetivas do homem e da mulher surjam no rastro do complexo de castração, as conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos incidirão de maneira diferenciada nos destinos da sexuação masculina e feminina.
  4. Nosso estudo sobre as obesidades em mulheres localiza o seguinte ponto comum: nas mulheres obesas crônicas os seus corpos estão fora do sexo. Esta evidência exige um exaustivo trabalho preliminar de investigação no sentido de localizar se esse corpo fora do sexo é efeito do recalque, caracterizando, portanto, uma estrutura psíquica neurótica. Neste caso, a obesidade pode ser compreendida como uma resposta subjetiva que implica o não consentimento da mulher ao lugar de objeto causa de desejo de um homem já que, pela gordura excessiva, abdica do semblante de mulher desejável. Por outro lado, a obesidade pode revelar-se uma neo-conversão e, portanto, indicar uma psicose não desencadeada. Neste caso, estaríamos no âmbito das psicoses ordinárias, isto é, no campo dos novos sintomas conversivos da contemporaneidade. Neles não é possível rastrear sua história e significação inconsciente. Aqui, a obesidade parece se configurar como uma solução a serviço de impedir a desorganização subjetiva.

A seguir, apresentaremos duas vinhetas clínicas do tratamento de mulheres obesas crônicas. Nosso propósito é mostrar que a busca de uma hipótese diagnóstica nos levou a atravessar o fenômeno da obesidade e encontrar duas posições subjetivas neuróticas organizadas de modo peculiar. O que estes casos ensinam é justamente a importância de não se abrir mão da investigação psicanalítica para podermos definir se estamos de fato diante de um sintoma contemporâneo, e, portanto, no campo das psicoses ordinárias. Na civilização contemporânea, em que o gozo excessivo é estimulado e requerido, a busca do diagnóstico psicanalítico, referido à sexuação, é cada vez mais trabalhoso e difícil, revelando-se, ao mesmo tempo, como primordial na nossa orientação como psicanalistas.

Primeira vinheta clínica: “Tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda”

Maria tem trinta anos e é obesa crônica. Mora com os pais. Terminou um curso superior, mas não trabalha. Sua família é de classe média e passou sua infância e adolescência numa cidade do interior. Seu pai tem curso superior e trabalha como autônomo. Sua mãe é dona de casa. Maria não tem relacionamentos amorosos.

A investigação preliminar busca organizar as letras em discurso. Isso significa um esforço em mapear os impasses da sexuação da paciente a partir da sua localização na cena edípica e dos efeitos sobre ela da diferença sexual.

A partir da narrativa da sua história, é possível circunscrever o seu lugar: ela ocupa o lugar da outra mulher, a preferida pelo pai, que saía para passear com ele. A fantasia de Maria é que ele a preferia em vez da sua mãe. Desenha um pai todo poderoso que sempre tomará conta dela e da mãe. Maria faz parte da vida do casal e, como tal, seu corpo está entregue a este gozo. Na análise, a subjetivação da castração do pai, pela via do sexo e da morte, tem efeitos sobre o corpo de Maria. Este entra em cena na análise. Antes adormecido, mudo, indiferenciado entre os pais, esse corpo começa a se manifestar, a doer e a adoecer. É o momento de seguidas doenças, vários sintomas no corpo e até uma fratura. Esta fratura é alçada, pelo analista, ao campo da metáfora, como sendo a quebra, a perda desse primeiro corpo que incluía seus pais. Seu corpo vivo dói e a convoca a existir nele. Há uma exigência de trabalho, neste ponto, para Maria: subjetivar a dor que agora explode no seu corpo e tratar dele.

Há um enunciado paradigmático que permitiu a hipótese de uma neurose e localizou a função peculiar da obesidade no funcionamento psíquico de Maria: “eu como escondida (da mãe) com meu pai”. Este enunciado se apresenta como uma tradução regressiva, na linguagem oral, do gozo incestuoso, edípico, que Maria usufrui. Essa tradução regressiva permite a Maria recalcar – não saber nada – do gozo que ela usufrui quando come. Ela não come qualquer coisa. Ela não goza da comida. Ela goza da comida que lhe é proibida. Seu gosto é burlar, transgredir. Ela gosta do que é proibido.

Segunda vinheta clínica: “Somos todos filhos de Deus”

Marta tem sessenta anos. É obesa crônica, solteira, funcionária pública e aposentada. Mora com a mãe e a sustenta. Ajuda também financeiramente sua filha adotiva. Viveu durante a infância e a adolescência numa favela. Foi criada pela mãe e pela avó materna. O pai morreu de tuberculose quando ela era menina. A filha adotiva solicita a sua ajuda demasiadamente. No seu relacionamento com a mãe, também marcado pela demanda de amor incondicional, não havia palavras, apenas obediência. Do ponto de vista subjetivo, não há nenhuma elaboração sobre a sua indiferenciação com a mãe.

A vida na favela era muito penosa. Marta tinha vergonha da sua condição sócio-econômica. Sua mãe, empregada doméstica, trabalhou em mais de um emprego para manter os filhos depois da morte do marido. Segundo Marta, sua mãe colocou na cabeça que os filhos tinham que estudar. Apesar da precariedade da origem, sua mãe, mesmo com pouca instrução, desejou para os filhos um destino diferente do seu. A transmissão desses ideais – nos quais localizamos a subjetivação da função paterna por parte de Marta – possibilitou-lhe uma nova inserção e ascensão sociais. Pela via dos estudos e, consequentemente, do trabalho, passou num concurso público, saiu da favela e conquistou uma posição sócio-econômica de classe média.

Apesar de sua ascensão social e financeira, Marta manteve-se, subjetivamente, prisioneira do laço com sua mãe e não media esforços para atender as demandas desta. Ao mapear as coordenadas simbólicas que orientam a vida de Marta, verificamos que o ideal religioso, fortemente presente na sua origem, orienta as suas ações, apesar da sua promoção social. A condição precária de moradia, a falta de infraestrutura e a não participação do Estado que não insere esta população no pacto moderno igualitário, favorece a posição de um apelo a um pai todo poderoso: só se pode contar com Deus.

Esse pai – pai de todos – localiza cada um como filho e, nessa lógica, é impossível deslocar-se desse lugar. Embora tenha alcançado uma ascensão social, Marta permanece filha e aderida ao ideal religioso que envolve o ideal de um amor eterno: trata-se de amar e olhar pelo outro. O que sobressai, neste caso, é a posição religiosa de Marta, não dialetizada pelo novo espaço social que ela passou a ocupar na vida adulta. Por posição religiosa entendemos a entrega à missão do amor, da generosidade e do cuidar e ser cuidado incondicionalmente.

O que parecia, inicialmente, estar fora do padrão de normalidade – a excessiva posição de arrimo e a dedicação total ao outro –, no caso de Marta fazia parte do seu contexto social. Sua posição subjetiva era pertinente em relação à sua origem. Esta paciente é representante das coordenadas simbólicas da sua cultura de origem, respondendo à demanda que lhe foi atribuída: amar e cuidar do outro. A predominância do axioma “somos todos filhos de Deus” em lugar do axioma “somos todos livres e iguais” implica numa obediência e entrega à missão do amor.

Tomada por este imperativo de origem, Marta manteve-se unida à sua mãe a vida toda. Seu corpo paga o preço por esta entrega. Sob a forma de uma obesidade crônica, seu corpo é cheio de amor e, em contrapartida, fora do sexo. Neste caso, o amor recalca o sexual: a missão do amor serve para encobrir a divisão de Marta entre ser mulher e ser mãe. O que aparentemente se apresenta sem conflitos e sem sintomas, aparece no corpo sob a forma de obesidade, indicando a sua renúncia a usufruir do seu corpo como mulher. Marta goza do prazer devorador de amar e ser amada incondicionalmente.


Nota

  1. Este artigo resulta da pesquisa desenvolvida no Programa de Psicanálise Aplicada à Obesidade do ISEPOL, coordenado por Tania Coelho dos Santos e por Maria Cristina da Cunha Antunes. O texto é constituído parcialmente pelos trabalhos apresentados por Maria Cristina Antunes, Katia Moskal Danemberg e Maria Luiza Caldas na mesa redonda “Sintomas clássicos e novos sintomas na clínica da obesidade crônica e mórbida: localizando o excesso pulsional” realizada no  V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, em setembro de 2012, na cidade de Fortaleza (CE). Estes trabalhos encontram-se disponíveis nos anais do evento: http://www.fundamentalpsychopathology.org/

 


Referências bibliográficas

COELHO DOS SANTOS, T. (2001). Quem precisa de análise hoje?: o discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
COELHO DOS SANTOS, T. e ANTUNES. M.C. da C. Se todo gordo é feliz, a obesidade é um sintoma ou uma solução?, em BASTOS, A. (org). Psicanalisar hoje. Rio de Janeiro. Contra Capa, 2006.
COELHO DOS SANTOS, T. (2012). Seminário XIX de Lacan: curso do ISEPOL, mar-dez de 2012. Notas de aula.
FREUD, S. (1908). Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna, em Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, 1996, p. 169-190.
FREUD, S. (1913[1912]). Totem e tabu, em Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII, 1996, p. 21-162.
FREUD, S. (1923) A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade, em Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XIX, 1996, p. 157-161.
FREUD, S. (1931). Sexualidade feminina, em Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, vol. XXI, 1996, p. 233-251.
FREUD, S. (1930). Mal-estar na civilização, em Obras completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro. Imago, vol XXI. 1996, p. 73-148.
KOYRÉ, A. (1991). Estudos sobre a história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense universitária.
LACAN, J. (1966). A ciência e a verdade, em Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p p. 869-892.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1971-72). O Seminário 19: ...ou pior. Publicação não comerciável. Salvador. Espaço Moebius. 2011.
LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MILLER, J.-A. (2004). La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós.



Resumos


A preliminary study of obesity as a contemporary symptom.

The article summarizes the similarity found in all subjects of the study developed on obesities in women: the bodies of chronically obese women are out of the field of sexual intercourse. This evidence requires an intense research in order to point out if this body that is of sex is a result of repression, characteristic of a neurotic psychological structure or if it is a new conversion, indicating a latent psychosis. In this case, we would be within the range of ordinary psychoses in the field of the contemporary new conversion symptoms. Two clinical excerpts of the treatment of chronically obese women demonstrate the importance of not giving up the psychoanalytic investigation in order to define if we are indeed facing a contemporary symptom. In contemporary civilization where the enjoyment is encouraged and required excessively, the search of the psychoanalytic diagnosis about sexuation is difficult and troublesome, but reveals itself at the same time, as a very important orientation in our psychotherapy.

Key words: obesity, psychoanalytic diagnosis, real, symptom, culture.

L’obésité en tant que sympthôme contemporain: une question préliminaire

L'article résume le point commun de l'étude menée sur les obésités dans les femmes: chez les femmes chroniquement obèses, leurs corps sont hors de sexe. Cette preuve nécessite d’ un travail préliminaire approfondi de recherche pour savoir si ce corps est l'effet du refoulement, indiquant d'une structure psychique névrotique, ou s'il s'agit d'un néoconversion, indiquant une psychose non déclenchée. Dans ce cas, nous serions dans les psychoses ordinaires dans le domaine nouveau des symptômes de conversion contemporains. Deux vignettes cliniques du traitement de femmes chroniquement obèses enseignent l'importance de ne pas abandonner l'investigation psychanalytique pour de déterminer si nous sommes effectivement face à un symptôme contemporain. Dans la civilisation contemporaine, dans laquelle la jouissance excessive est encouragé et demandé la recherche du diagnostic psychanalytique reféré à la sexuation est de plus en plus difficile et laborieuse, mais se révèle en même temps comme primordiale dans notre orientation en tant que psychanalystes.

Mots-clés: obésité, le diagnostic psychanalytique, réel, culture, sympthôme.

Citacão/Citation: ANTUNES, M.C. da C., DANEMBERG, K.M., CALDAS, M.L., OLIVEIRA, F.L.G. de.  A obesidade como sintoma contemporâneo: uma questão preliminar. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 13, nov. 2011 a abr. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 23/09/2012 / 09/23/2012.

Aceito/Accepted: 08/11/2012 / 11/08/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.