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Nem todo dia eles fazem tudo igual: a psicanálise de um sintoma médico1

 

Lúcia Helena Carvalho dos Santos Cunha
Psicanalista
Doutoranda em teoria psicanalítica pela UFRJ
Mestre em ciências, área de saúde mental, pela ENSP/FIOCRUZ/RJ
Professora adjunta da UNIFESO, no Hospital das Clínicas de Teresópolis/RJ
Membro do Instituto Sephora de ensino e pesquisa de orientação lacaniana/ISEPOL
E-mail: luciahelenacunha@gmail.com

Resumo

A psicanálise de orientação lacaniana aplicada ao sofrimento subjetivo na experiência de trabalho é uma extensão ainda incipiente no campo psicanalítico que, entretanto, teria muito a dizer sobre o sintoma profissional, a partir da aplicação de seus conceitos à clínica dos sujeitos submetidos a um laço profissional. Sintomas descritos na literatura como síndrome de burnout e síndrome do cuidador descuidado, até hoje estudados apenas no âmbito da psicologia e da medicina, são abordados neste texto a partir do referencial teórico da psicanálise de orientação lacaniana, através de sua leitura sobre o gozo sintomático, a dietética pulsional, o fantasma, a teoria dos discursos e a subordinação da clínica dos sujeitos à clínica da civilização. O relato de alguns dados obtidos em pesquisa de campo num hospital universitário confirma a legitimidade de aplicar a psicanálise ao campo profissional.

Palavras-chave: psicanálise aplicada, orientação lacaniana, sintoma, profissão, burnout.

 

Introdução

A existência de um sintoma relacionado ao campo profissional coloca o psicanalista diante do desafio de buscar, em seu campo conceitual, as referências que possam auxiliá-lo a se posicionar diante das demandas de intervenção neste campo. A psicanálise de orientação lacaniana aplicada ao sofrimento subjetivo na experiência de trabalho é uma extensão ainda incipiente da experiência psicanalítica, mas que precisa ser desenvolvida na medida em que o sintoma oriundo do campo profissional produz as mesmas interrogações que as demais manifestações do inconsciente, fazendo parte da clínica psicanalítica. Entretanto, raramente as manifestações sintomáticas relativas ao campo do trabalho são reconhecidas como assunto de interesse psicanalítico, mesmo quando relacionadas a atuações significativas e até mesmo passagens ao ato com repercussões graves na vida dos sujeitos.

Da mesma maneira, os sujeitos afetados pelo sintoma profissional raramente se dão conta dessa realidade, ou procuram atendimento psicanalítico. No campo profissional, predominam as abordagens da medicina ou da psicologia do trabalho, que desconsideram o sujeito do inconsciente, a pulsão, e outros conceitos principais da abordagem psicanalítica.

Nas últimas décadas, o estudo de um novo fenômeno no campo do trabalho, nomeado como síndrome de burnout, surgiu na literatura científica como relacionado a adoecimento físico e abandono profissional, sem que o profissional o reconheça como um sintoma de sua experiência profissional.

Esse estranho desconhecimento vem sendo detectado particularmente entre os profissionais do campo da saúde, principalmente médicos e enfermeiros que trabalham em hospitais. Constatamos, através de observação direta, que estes profissionais se dedicam à cura de enfermos que sofrem o risco da morte, enfrentando desgaste físico e emocional, estresse continuado, cobranças pessoais e familiares, sendo muitas vezes mal remunerados e fortemente penalizados em caso de erro. Trabalham em condições muitas vezes precárias, com grande sacrifício pessoal, em prol do bem estar alheio. A literatura indica a presença do burnout neste grupo profissional em níveis alarmantes, e muitas publicações relatando pesquisas sobre o tema se utilizam de diversas correntes da psicologia e da psiquiatria. Resta saber o que a psicanálise pode dizer sobre o assunto.

Esta síndrome vem sendo relatada desde 1970 principalmente por médicos, enfermeiros e psicólogos (Carlotto, 2008; Câmara, 2008; Hallak et al, 2007; Neiva et al, 2006; Kompier, Kristensen, 2003). Os vários relatos apontam um conjunto de características que podem aparecer no comportamento profissional de sujeitos em seu ambiente de trabalho, notadamente nos médicos e enfermeiros que atuam em hospitais. As características citadas na literatura indicam sua manifestação através da exaustão emocional, baixa realização no trabalho e distanciamento emocional ou “despersonalização”. Tais efeitos, segundo essa literatura, seriam decorrentes da tensão emocional produzida pelo fato de lidarem excessivamente com pessoas, indicando uma dificuldade específica ao laço social dessas profissões.

Entretanto, no comportamento de muitos médicos, observa-se também a existência de outro sintoma, que estaria relacionado à sua formação profissional. Pesquisas indicam que os médicos, em geral, parecem estar alheios aos riscos de seu próprio adoecimento. Cuidar da saúde alheia em detrimento da sua própria é um aspecto sintomático a ser considerado no meio médico, pois é uma tendência que já foi verificada mundialmente no meio destes profissionais, levando alguns centros de saúde a lançar programas específicos voltados para o cuidador médico, como acontece, por exemplo, em Barcelona, Espanha (PAIMM: Programa de Assistência ao Médico Doente); e em Besançon, França2. Um relatório produzido em 2008 pelo conselho da Ordem dos Médicos na França revelou uma preocupante tendência, especialmente entre médicos que trabalham em urgências, de reconhecerem um estado de esgotamento psicológico ou físico, mas ainda assim nada dizerem a colegas ou familiares.

Escondendo sua angústia e desencanto com a profissão, as dificuldades em lidar com seus pacientes, recusando-se a procurar ajuda, esses profissionais não têm seus problemas tratados até que a doença se instale. A pesquisa francesa revelou o abuso de automedicação de corticoides e psicotrópicos entre 86% dos médicos que se declaram exaustos; informou também que o suicídio é a causa da morte de 14% dos médicos franceses em atividade, contra 5,6% do restante da população. O relatório ainda indicou que os médicos recusam muitas vezes os exames preventivos, mesmo quando são assalariados de uma empresa. Raramente tomam vacinas, mesmo contra patologias importantes como o tétano, a hepatite viral ou até mesmo a gripe. Parecem assim supor total imunidade às doenças e ignorar a existência de seus limites, ideias inconscientes que lhes passam despercebidas, mas se manifestam em seus comportamentos. O que se detectou foi algo que se manifesta no coletivo profissional e que exige estudos; parece indicar que nem todo dia eles fazem, consigo mesmos, o que prescrevem a seu pacientes: não fazem tudo sempre igual! Revelam-se descuidados em relação à própria saúde, configurando o que já foi nomeado como síndrome do cuidador descuidado (Benevides-Pereira, 2002).

No Brasil, o problema foi abordado pelo Conselho Federal de Medicina em 2007 numa publicação sobre a saúde dos médicos (CFM, 2007), quando divulgou os resultados de sua pesquisa feita com 7.700 médicos brasileiros sobre os efeitos do trabalho médico sobre sua saúde. Em suas conclusões, o Conselho afirma que:

  “A prevalência dos transtornos mentais e comportamentais, numa significativa proporção de cerca de 1:12 instiga pesquisas mais aprofundadas e reflexões sobre suas causas e formas de manejo. É relevante a desproporção entre a frequência de tais transtornos e o grande número de usuários de psicofármacos; tais medicamentos estão entre os três mais usados pelos médicos. Quiçá, isso indica uma presumível tendência a maquiar os sentimentos mais brandos, que não acabam de dar sinais e logo são aniquilados, como se as emoções não tivessem uma função na vida das pessoas” (CFM, 2007, p. 172, grifo meu).


Uma abordagem psicanalítica do sintoma profissional médico

De fato, como defendemos em outro artigo, verifica-se uma desinserção do campo da subjetividade na experiência de trabalho dos profissionais de saúde, principalmente no campo médico (Cunha, 2011). O discurso médico, estabelecido por Jean Clavreuil como equivalente ao discurso do mestre, produz um laço social que exclui a consideração à subjetividade tanto do paciente quanto a do médico, fazendo o saber científico trabalhar na direção de agir sobre o objeto de cuidados, o corpo doente, promovendo como realização profissional a cura da doença. O médico intervém sobre o corpo doente orientado por sua formação profissional, científica, e toma como sendo um dever ético e moral a obtenção do sucesso na luta contra a doença.

Trabalhar não é apenas uma obrigação social: a partir da psicanálise podemos afirmar que há um gozo em jogo permeando as relações do sujeito com sua atuação profissional. E, no campo do trabalho médico, encontramos um estranho regime de gozo pautado na abnegação e no sacrifício, segundo as recomendações da ética profissional tradicional na qual ainda hoje se baseia a educação médica. Esta parece retirar suas referências do discurso cristão, fundamentado na ética do amor ao próximo, que estabelece a prática profissional como equivalente ao exercício de um sacerdócio religioso. A este respeito, reproduzimos abaixo os termos retirados do livro do CFM, acima citado:

  “Alçada à condição da mais sublime das profissões, com exigências técnicas e humanitárias proporcionais a essa soberania, a Medicina é vista como uma profissão sacerdotal. Afinal, a atividade médica diz respeito aos mais apreciados valores humanos. Não há, pois, como subtrair do vulgo o sentimento de que a atividade médica exercida na sua plenitude se compare a um magistério sacerdotal, no sentido de missão elevada, quase divina. Tal caráter é realçado por Bonifácio Costa, citado pelo historiador Pereira Neto (2001), ao ressaltar que a prática médica comporta um caráter de moralidade, de desinteresse, de abnegação e de sacrifício que merece ser identificada a um sacerdócio religioso – e este caráter consagra sua originalidade profissional” (CFM, 2007, p. 21).

Em flagrante contraste com o regime de gozo instaurado contemporaneamente pelo capitalismo, onde vigoram o individualismo e a disposição ao consumo, a ética médica impõe a renúncia e o sacrifício a um sujeito que também está submetido às expectativas sociais de conquista de conforto e de riquezas. Além disso, esse profissional se defronta em seu dia-a-dia com outros efeitos do discurso capitalista que interferem nas condições de trabalho no campo de saúde em nosso país, especialmente quando este se volta ao atendimento da população carente que recorre ao SUS.

O emprego estável oferecido pela rede pública de atenção à saúde brasileira disponibiliza baixos salários e precárias condições materiais, obrigando o profissional a complementar seus ganhos trabalhando em prol da medicina privada, determinada pelos convênios com empresas que financiam o acesso ao atendimento na chamada rede particular de saúde. As exigências de produtividade deste campo de trabalho interferem em suas condições de trabalho, produzindo um grande desgaste físico e mental. Nestas condições, o médico de nossos dias encontra uma realidade profissional bastante atribulada e estressante, especialmente quando se trata do campo hospitalar, onde a referida pesquisa constata que a expressiva maioria desses profissionais declara trabalhar.

Freud, em seu texto sobre “A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna”, já se referia à exaustão produzida nos sujeitos com o aumento da ânsia de prazeres materiais, cobiça e descontentamento, bem como na redução do tempo de recreação, sono e lazer promovidos pelo capitalismo; mencionava o aumento de exigências feitas aos indivíduos, a pressa e agitação dos tempos modernos, já presentes no século passado (Freud, 1908). A associação entre o sistema social vigente e a produção do distúrbio emocional foi por ele tratada a partir da economia de gozo característico da sociedade vitoriana, que desautorizava a satisfação sexual dos sujeitos como o principal elemento da vida subjetiva, e, desta maneira, estimulava a realização fantasmática dos desejos sexuais, ou seja, da vida pulsional – tendo como consequência a produção de sintomas neuróticos.

Partiremos da hipótese de que, na cultura de nossos tempos atuais, a influência do sistema econômico neoliberal sobre as condições de trabalho, no campo da saúde, interfere na moral profissional de médicos, afetando a relação ética tradicional de amor ao próximo e produzindo respostas subjetivas que se manifestam no campo de trabalho através de sintomas como o do burnout e do cuidador descuidado. Neste sentido, também nos apoiamos no pensamento de Gilles Lipovetsky, que em seu livro sobre a sociedade da decepção menciona os novos desiludidos da empresa: funcionários acometidos de estresse, ceticismo, descontentamento, indiferença. Este autor comenta que tal decepção:

  “tem raízes nos ideais individualistas de satisfação pessoal veiculados em grande escala pela sociedade hiperconsumista [...]. Na medida em que abandonam os padrões tradicionais, a atividade profissional se torna uma esfera cada vez mais frustrante, ainda que os assalariados não ousem confessá-lo. Destes, a maioria se declara ‘feliz no trabalho’ e ‘confiante na empresa’, mas, curiosamente, pensa que os outros devem estar infelizes e descontentes!” (Lipovetsky, 2007, p. 15).

Não há clínica do sujeito sem se levar em consideração a clínica da civilização (Miller et Milner, 2004, p. 46), afirmação que endossa o pensamento desse texto freudiano. Um sintoma profissional como o que foi acima descrito pode ser estudado pela psicanálise a partir de seu próprio referencial teórico. No campo lacaniano, o sintoma é tomado em sua equivalência a um discurso, mas também como uma formação de gozo que é índice do real. O real em questão é o real da psicanálise, ou seja, a castração enquanto aquilo que é impossível de ser simbolizado. É, por exemplo, o real da morte, que aparece no campo médico como o impossível a ser superado. Passamos a defender que o sintoma profissional reproduz a mesma lógica que a psicanálise encontrou nos demais sintomas: trata-se de uma satisfação pulsional que se realiza por meio do fantasma, encobrindo e, ao mesmo tempo, indicando a presença do real em jogo.

O regime pulsional que podemos localizar num sintoma é relativo a uma maneira de administrar os prazeres, característico de um grupo social numa determinada época da história da civilização: acompanhamos aqui o trabalho de Foucault (1984) em seu estudo sobre a história da sexualidade, que encontrou na Grécia clássica uma prática sexual relacionada a uma ética e estética de vida. Baseados na renúncia aos prazeres, Foucault localizou em sua pesquisa a existência, naquela época, de sujeitos capazes de exercerem tal domínio sobre si que se tornavam socialmente autorizados a exercerem igual poder sobre os outros, numa arte da temperança que associava regulação pulsional à autoridade social. Assim como o santo da religião cristã, Foucault atribuiu ao herói virtuoso da antiguidade a mesma capacidade de se desviar do prazer, dessa tentação que ele saberia, em sã consciência, evitar; e indicou, nesta prática, uma virtude de valor social que rendia respeito e o direito à ascendência sobre os demais cidadãos.

No sintoma profissional contemporâneo, entretanto, propomos que tal dietética pulsional de renúncia não se faz à luz da consciência, nem indica a temperança; ao contrário, se realiza através do campo fantasmático, inconsciente, onde o lugar de exceção social configura o campo onipotente do pensamento mágico, posição do “ao menos um” fora da castração, indicado por Freud em “Totem e Tabu” (1912-13). Este regime pulsional se afasta da clássica arte da temperança estudada por Foucault, uma vez que a psicanálise encontra no fantasma um dispositivo capaz de indicar um gozo em excesso, descabido, desregulado, autoerótico que, no sintoma profissional em questão, pode colocar a própria vida do médico em risco, sendo expressão muda da pulsão de morte.

Assim, no campo da experiência profissional da medicina, o exame psicanalítico do regime de gozo apontaria para a onipotência fantasmática, adiando ou negando a iminência da morte e apagando os riscos de adoecimento, pois no sintoma profissional médico o doente é sempre o outro, num contrato narcísico que consideramos uma dietética de gozo. O real da estrutura, no discurso médico, indica a impossibilidade do mestre – a ciência da saúde como agente do discurso médico (S1) – possuir um saber (S2) sobre a morte, de forma a dominá-la. E tal discurso, calando o sujeito ($) em sua verdade de sujeito dividido que subjaz sob a barra da castração, faz surgir um gozo (a) particular, que localizamos no campo do fantasma.

Afirmaremos que o fantasma médico, ao fazer incidir uma tela sobre o real, produz um gozo onipotente que desconsidera a castração, podendo levar o médico a se colocar como imune à doença e à morte apagando os seus riscos de adoecimento: o doente é sempre o outro, o paciente. Abrindo mão de sua posição de sujeitos para atuarem a partir de uma posição de objeto, levantamos a hipótese que alguns médicos agem como quem não tem corpo, não morre, estando fora do mundo dos mortais. O desânimo e a frieza, caracterizados na literatura como “despersonalização” indicativa do burnout, aparecem no comportamento profissional desses sujeitos, evidenciando um funcionamento fantasmático que sobrepuja o ideal do eu, produzindo então um comportamento antagônico àquele que eles mesmos preconizam aos seus pacientes. Tal suposição se confirma na observação clínica realizada num hospital universitário da região serrana, abaixo relatada.

Uma pesquisa em andamento

Uma investigação psicanalítica sobre a realidade profissional de profissionais de saúde vem sendo realizada em um hospital universitário da região serrana do estado do Rio de Janeiro. Observando o cotidiano de trabalho de médicos e enfermeiros numa clínica do hospital; acompanhando reuniões de serviço; conversando com diferentes profissionais sobre problemas oriundos das relações de trabalho; e participando de espaços de conversação entre internos de medicina e seus professores sobre situações polêmicas que envolvem a ética médica, essa observação vem reunindo dados sobre a experiência de trabalho num hospital, atenta às questões que embaraçam e angustiam estudantes ou profissionais de medicina e que possam trazer informações sobre o real do sintoma profissional.

Nesse contexto, surgiu no episódio abaixo descrito um acontecimento capaz de contribuir para o estudo em questão. Um médico que atua no hospital, com mais de trinta anos de intensa dedicação ao trabalho institucional, sem nenhuma doença prévia, fez um episódio de natureza cardíaca com alguma gravidade, que o obrigou a permanecer internado no CTI por alguns dias. O inusitado do fato decorre de que, diante dos sinais físicos do diagnóstico que ele mesmo realizou durante uma madrugada em que não conseguia dormir, saiu de casa, sozinho, dirigindo seu próprio carro, como se tivesse sido chamado para atender algum paciente. Confirmado no hospital o problema cardíaco, foi imediatamente internado.

Em seu retorno ao trabalho, após a licença médica, ele concordou em conversar com a psicanalista, que lhe perguntou sobre sua avaliação do que havia ocorrido. Negando a existência de maiores problemas, ele reconheceu ter sofrido as consequências do estresse no trabalho, e atribuiu, de maneira genérica, a tensões no relacionamento interpessoal no hospital a principal causa do desgaste responsável pelo episódio que sofreu.

Prosseguiu dizendo que precisava conseguir lidar melhor com o ser humano, compreendê-lo e aceitá-lo em suas diferenças, adotando um tom religioso que se coaduna às suas assumidas crenças. Em seguida, ele se perguntou, evidenciando algum sentimento de culpa, se ele teria contribuído de alguma forma para promover o forte estresse grupal que surgiu no ambiente de trabalho, quando dois colegas a ele subordinados desistiram dos empregos num momento institucional de atraso de salários e de grande insatisfação coletiva.

Conhecido na instituição por seu jeito calmo, conciliador e contido, esse médico atua, segundo seus colegas, como um médico abnegado; sua atenção aparece voltada predominantemente para seus pacientes. Quando divergiu da conduta dos que vieram posteriormente a se demitirem, evitou abordá-los diretamente ou examinar preventivamente com eles as situações geradoras da discórdia, aparentemente contando com uma resignação à realidade que supôs presente nos outros, à sua semelhança. O desligamento voluntário de ambos, entretanto, foi por ele referido como produtor de um grande mal-estar, ao qual se sucedeu o episódio cardíaco, que podemos interrogar como sendo um acontecimento de corpo, equivalente ao comportamento médico descrito nas pesquisas citadas, associável à manifestação do sintoma de burnout se considerarmos a frieza e a indiferença com que tratou a si mesmo neste episódio.

Um segundo dado dessa observação se delineou a partir de um espaço acadêmico em que estudantes de medicina e seus preceptores médicos, nesta mesma clínica, costumam se reunir para examinar situações que envolvam dilemas éticos profissionais. Na maior parte das vezes, diferentes grupos de estudantes escolhem por conta própria debater situações onde as questões éticas surgem em meio a impasses na relação médico-paciente. Solicitações de aborto, de eutanásia ou de recusa a procedimentos médicos, como a transfusão de sangue por motivos religiosos, costumam ser temas escolhidos para uma conversação, com a presença da psicanalista.

Entre as ideias que são livremente apresentadas pelos participantes, a psicanalista recolhe, com certa frequência, afirmativas sobre o direito ao uso de intervenções médicas que evidenciam abuso do poder; ou posições que desconsideram o limite da prática profissional diante de proibições jurídicas, religiosas ou éticas. Muitos sonham, acordados, com uma impossível autonomia ou liberdade total de ação profissional, evidenciando, sem o perceberem, a fantasia de ocuparem um lugar fantasmático da exceção à castração.

Em todas essas situações relatadas, escutamos nas falas colhidas afirmativas que indicam a evitação da castração, seja na ausência de reconhecimento do risco corrido pelo médico, seja no sonho fantasmático de ocupar de maneira onipotente o lugar da exceção que foi evidenciado por alguns estudantes durante a conversação com seus pares e professores.

Considerações finais

Encontrar na clínica em estudo a verificação das situações descritas pela literatura, captando as ideias que orientam os comportamentos de risco, é uma realização da pesquisa que, a nosso ver, autoriza uma associação entre a ocorrência do fenômeno descrito como burnout e o sintoma profissional do cuidador descuidado encontrado entre médicos. Pretendemos afirmar que a exaustão emocional, a baixa motivação (ou moral para o trabalho) e a chamada despersonalização (ou frieza e distanciamento afetivo), característicos da síndrome de burnout, comparecem de alguma maneira na indiferença com o cuidado da própria saúde no caso relatado; e que este caso confirma a hipótese levantada por este estudo quanto à existência de conflitos entre a postura fomentada pela ética médica tradicional e os problemas atuais encontrados nas relações de trabalho afetados pela economia capitalista, produzindo sofrimento psíquico e promovendo o comportamento sintomático.

Da mesma maneira, algumas das afirmativas escutadas durante as conversações realizadas pelos estudantes de medicina veiculam o fantasma de onipotência que recusa o real da castração, implícito nas barreiras religiosas ou jurídicas que interditam o ato médico. Tal interdição confronta o poder médico com seu limite, fazendo aparecer o sujeito anulado pelo discurso médico: o do paciente que afirma ter direito sobre seu próprio corpo, seu próprio destino, ao recusar a transfusão de sangue mesmo sob risco de morte, por exemplo; ao pressionar pelo aborto, introduzindo a morte do feto na operação médica; ao solicitar desligamento de aparelhos e autorizar o fim de uma vida, contrariando a missão médica de mantê-la a todo custo. A intromissão do limite e do real da castração na prática médica traz à luz a existência do inconsciente e o fantasma de onipotência geralmente encoberto, assim como toda experiência subjetiva dos profissionais de medicina em seu trabalho hospitalar.

Ao indicar a presença do fantasma e do regime pulsional na dietética de gozo, propomos uma nova abordagem do sintoma profissional que introduza o discurso da psicanálise num espaço consagrado ao discurso do mestre. Resta pesquisar a possibilidade de instituir no hospital um dispositivo capaz de produzir tal circulação dos discursos...


Notas

  1. Este texto foi desenvolvido a partir do trabalho apresentado no V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental, realizado de 6 a 9 de setembro de 2012 na cidade de Fortaleza /Ceará. Acrescento que este trabalho encontra-se inserido na minha pesquisa de doutoramento junto ao PPGTP, sob orientação da Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos.
  2. Conforme o Psychiatry on line Brazil (www.polbr.med.br), parte do International Journal of Psychiatry. Consultado em 05/10/2011, onde Dr Eliezer de Hollanda Cordeiro apresenta on line a tradução de artigos sobre o tema.



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Resumos

They don’t do everything the same way everyday: the psychoanalysis of a medical symptom

The psychoanalysis applied to subjective distress on work experience is an exploration of the psychoanalytic field that remains incipient, but would, nevertheless be able to explain much about the professional symptom, from the application of its concepts to the clinic of the people submitted to a professional relation. The symptoms described in the literature as Burnout Syndrome and Careless Caregiver syndrome, that until now have only been studied by psychology and medicine, are envisioned in this text in the theoretical framework of Lacan’s psychoanalysis orientation through his reading on the symptomatic enjoyment, the pulsional dietetic, the phantasm, the theory of the speeches and the subordination of the subjects to the clinic of civilization. The report of some data obtained in field research at a university hospital confirms that it is legitimate to apply psychoanalysis in the professional field.

Keywords: applied psychoanalysis, lacan’s orientation, sympthome, job, burnout.

Ils ne font pas la même chose tous les jours: la psychanalyse d’un symptôme médical

La psychanalyse lacanienne appliquée à la détresse subjective de l'expérience de travail est une extension encore naissante dans le champ psychanalytique qui cependant, aurait beaucoup à dire sur les symptôme professionnels à partir de l'application de ses concepts à des sujets cliniques ont subi un lien professionnel . Les symptômes décrits dans la littérature comme le syndrome de de Burnout et le syndrome du soignant  négligent étudiée jusqu'à présent seulement dans le contexte de la psychologie et de la médecine, sont abordées dans cet article à partir du cadre théorique de la psychanalyse lacanienne, par le biais de sa lecture sur la jouissance symptomatique, la diététique pulsionnelle, le fantôme, la théorie du discours et de la subordination de la clinique à la clinique objet de la civilisation. Le rapport de certaines données de recherche sur le terrain dans un hôpital universitaire confirme la légitimité de l'application de la psychanalyse dans le champ professionnel.

Mots-clés: psychanalyse appliquée, l'orientation lacanienne, symptôme, la profession, burnout.


Citacão/Citation: CUNHA, L.H.C.S. Nem todo dia eles fazem tudo sempre igual: a psicanálise de um sintoma médico. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 13, nov. 2011 a abr. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 11/11/2012 / 11/11/2012.

Aceito/Accepted: 27/12/2012 / 12/27/2012.

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