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Pobre de mim! Ou o eu na melancolia1

 

Valeria Wanda da Silva Fonseca
Psicóloga clínica
Psicanalista
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica / UFRJ (RJ, Brasil)
Mestre em Teoria Literária / UFJF (MG, Brasil)
Membro do Instituto Sephora de ensino e pesquisa de orientação lacaniana/ISEPOL
E-mail: valeriawanda@uol.com.br

Resumo

Este artigo interroga as relações entre o empobrecimento econômico e social e a melancolia. Há um conflito que constitui o eu. Este conflito diz respeito aos graus de eficácia da renúncia pulsional. É uma equação lógica: o quanto de pressão das exigências pulsionais, associadas à precariedade dos recursos externos da civilização, tem como consequência os diferentes graus de “debilidade” do eu. Duas teses freudianas orientam essa reflexão: a primeira – a de que a melancolia é o “modelo” para conceber a constituição do ser humano; e a segunda – a de que o medo do empobrecimento é uma característica peculiar ao melancólico. Muitos sujeitos testemunhavam a dor de existir. E falar d’Isso era uma saída. Ilustra-se essa reflexão com o romance de Dostoievski, Gente Pobre, que indica inclusive a partir da diferença sexual as versões desse sofrimento.

Palavras-chave: psicanálise, pobreza e melancolia, constituição do eu, melancolia, direção do tratamento.

 

 

A proposta deste artigo é refletir sobre as relações entre o empobrecimento do eu, o empobrecimento econômico e social e a melancolia2. Nesse estudo, pretende-se construir as bases da argumentação da hipótese freudiana, respaldada por Jacques Lacan, de que a melancolia é uma “neurose narcísica”, a qual se diferencia das neuroses e da psicose. Além disso, objetiva identificar por que o empobrecimento material é um sintoma proeminente da melancolia.

Desde a antiguidade, temos relatos dos sujeitos que denunciam e desmascaram a efêmera condição humana, ora com arte, ora com dor e sofrimento para si e para os outros. Entre os homens, a dependência é um fato e uma questão de sobrevivência. Reafirmamos, em tempos de ilusões individualistas, a importância do vínculo amoroso no laço social, em particular, na família. A experiência de desamparo, associada à fragilidade do outro parental, mediante a impossibilidade de “tudo” nomear, fomenta o trabalho psíquico em que, a partir da falta do Outro, do outro parental, se institui a possibilidade de um sujeito de desejo. A tese freudiana é que quanto maiores as exigências pulsionais associadas à precariedade dos recursos externos da civilização, maiores as dificuldades na eficácia da renúncia pulsional e, consequentemente, maior “debilidade” do eu. Essa precariedade seria o fator de adoecimento psíquico presente nas neuroses, nas psicoses e na melancolia. Procuraremos seguir a trilha deixada por Freud (1917): a primeira: considerar a melancolia como “modelo” para conceber a constituição do ser humano; a segunda: identificar o medo do empobrecimento como uma característica peculiar ao melancólico.

Atualmente, a “doença dos afetos” foi nomeada pelo DSM-IV como “Depressão Maior”. A ela foram atribuídas causas orgânicas, quando não genéticas; ao mesmo tempo, foi desvalorizando tudo o que é particular no sujeito: sua história, seu inconsciente, sua estruturação como ser de linguagem e sua sexualidade. Essa substituição fez desaparecer os traços distintivos da doença – a capacidade destrutiva e o sentimento de culpa – que orientam a vida desses sujeitos. Não se trata na melancolia da perda da realidade, mas da perda do sentido da vida. Há uma retração libidinal que mostra que uma concentração de gozo excluiu os vínculos com a vida e com o mundo. Se a medicalização dos afetos, por um lado, produz um bem-estar passageiro, por outro, dificulta a expressão dos conflitos decorrentes de tal estado mental.

Comportamentos sociais, tais como a proliferação da violência psíquica, social e econômica, são relatados na literatura psicanalítica como consequência do descrédito de si. Em muitos sujeitos, o embate diante da castração e da impossibilidade de completude é desencadeador do ódio ao objeto perdido. Esta também é a justificativa para os ataques a si mesmo, por identificação, e/ou ao outro no laço social, por projeção. O discurso de vitimização denuncia a ambigüidade de sentimentos decorrentes da culpa e do ressentimento com a sociedade, o Estado, o parceiro, etc. Todos são injustos por não entenderem tal situação.

Dostoiévski, no seu primeiro romance, Gente Pobre (1846), ilustra com agudeza psicológica o discurso melancólico do personagem Makar em relação à impossibilidade de ter um romance com a jovem Varvara. O livro é composto por uma média de cinquenta cartas que relatam uma intimidade ambígua, caracterizada, do lado de Varvara, por frases do tipo: “Mais uma vez lhe imploro que não gaste tanto dinheiro comigo. Sei que gosta de mim, mas o senhor mesmo não é rico...”. Ela reclama da sua infelicidade: “Ah, o que vai ser de mim, qual será a minha sina? É duro viver nessa incerteza, sem ter um futuro, sem poder sequer prever o que há de acontecer comigo” (Dostoievski, 1846, p. 18).

Makar, o personagem masculino, afirmava sua infelicidade e revolta com a “impossibilidade” de mudança na estrutura social e econômica na Rússia do século XVIII. Sua condição de pobreza era assim interpretada: “Gente pobre é caprichosa – e é assim por disposição da natureza” (Ibid., p. 104). Fala de um sofrimento que atinge o ser e coloca o sujeito na impotência, produzindo-lhe dor e humilhação: “uma pessoa pobre é pior que um trapo e não é digna de nenhum respeito da parte de ninguém, seja lá o que for que escrevam!” (Id., Ibid.). Nesse romance, encontramos, também, a descrição pormenorizada das diferenças que caracterizam a precariedade financeira na mulher e no homem. O sofrimento do homem pobre é associado ao fato de que, mesmo trabalhando, nunca receberá o suficiente para sustentar os “mimos” de uma mulher e de uma família. Para as mulheres, a infelicidade causada pela pobreza é decorrente da importância da beleza que o dinheiro pode comprar e, assim, agradar a si, às outras mulheres e aos homens. Algumas se entregam a um descuido generalizado que reflete a penúria, a ausência de objetos que façam véu à falta da mulher, o desamparo causado pelo parceiro amoroso e até o excesso de “dedicação” aos filhos, que não retribuem e não reconhecem o sacrifício da maternidade. Só Deus vai provê-la.

Os pacientes repetem ao analista: por que é isso que me faz sofrer?

Freud, em seu texto “Mal-estar na Civilização” (1930), advertiu os psicanalistas sobre a importância de se familiarizarem com a ideia de existirem dificuldades ligadas à natureza da civilização fundamentais à constituição da sociedade. Ele se referia ao alicerce dos laços sociais – a relação essencial do sujeito com a lei.

As preocupações seriam decorrentes do fato de que os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas identificações entre seus membros. Freud lembra aos psicanalistas que, “além e acima das tarefas de restringir as pulsões, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção ao perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de pobreza psicológica dos grupos” (1930, p. 138).

Em um dos seus últimos escritos, o “Esboço de psicanálise” (1938 [1940]), Freud delimitou os pilares da psicanálise para identificar as fronteiras da normalidade. Esta compreensão se deu através dos estudos sobre os distúrbios da mente e dos estados patológicos – as neuroses e as psicoses – que operariam como corpos estranhos e com causas específicas.

A neurose e a psicose, a partir da segunda tópica, são resultantes dos conflitos do eu com as outras duas instâncias: isso e supereu. Não se tratava só de uma falha do eu ao desempenhar a tarefa de conciliar as diversas instâncias, mas, sim, de que havia um caráter constitucional em tais conflitos. Estes seriam resultantes do pacto entre a satisfação das exigências pulsionais e as objeções da realidade. Freud resume: “Assim, do mesmo modo como, através da adoção de perversões sexuais, as pessoas puderam prescindir do recalque, também por meio dessas deformações as inconsequências, as excentricidades e as loucuras das pessoas vêm à luz” (Freud, 1924, p. 98).

O normal e o patológico, na clínica psicanalítica, são orientados pelos seguintes pilares: a relação entre os diferentes graus de investimento libidinal nos objetos e o posicionamento mediante a diferença sexual. A subjetivação da diferença sexual – a consciência da diferença anatômica dos sexos – ativa os mecanismos de defesa e produz alteração no eu. A divisão do eu não seria peculiar só ao fetichismo (Freud, 1927), mas também a uma necessidade do eu de construir uma defesa, associando os mecanismos da renegação (Verleugnung) ao do recalque (Verdrängung), ou seja, a divisão do eu é resultado do complexo de castração e este, o motor da renegação (Freud, 1938 [1940]). 

A proposição de que há um conflito constitucional do eu nos permite inferir que em algumas pessoas as exigências pulsionais são maiores e, quando associadas à precariedade dos recursos externos provindos da civilização, tem-se mais dificuldade na eficácia da renúncia pulsional, o que causaria como consequência certa “debilidade” do eu (Freud, 1940 [1938]).

Do empobrecimento psíquico à melancolia

A reflexão sobre os limites entre o normal e o patológico levou Freud a introduzir a categoria nosográfica de melancolia no campo da psicopatologia. A afecção do melancólico possibilitou-lhe revelar a constituição do eu humano. A característica mais marcante seria o desagrado com o próprio eu. A perda do amor-próprio leva uma parte do eu a se colocar contra a outra. Toma-o como objeto e julga-o criticamente. Há uma consciência moral, uma instância do eu, que critica e julga o próprio eu, e pode, inclusive, adoecer isoladamente. Há uma fragilidade estrutural, decorrente da falha narcísica, que se traduz numa demanda ilimitada de amor e, ao mesmo tempo, de ódio para tentar bordear o sentimento de desamparo de quem está submetido à égide pulsional.

  “Frequentemente, a autoavaliação do paciente se preocupa muito menos com a enfermidade do corpo, a feiura ou a fraqueza, ou com a inferioridade social; quanto a essa categoria, somente seu temor da pobreza e as afirmações de que vai ficar pobre ocupam posição proeminente” (Freud, 1917, p. 280).

Freud acreditava que o desafio anal se apresentava na composição do complexo de castração. As exigências feitas às outras pessoas seria uma importante reação do eu, uma aplicação narcísica do erotismo anal (1918, p. 165). Lembramos que Freud demonstrou como se desenvolve o processo neurótico, referindo-se à equivalência simbólica entre fezes (dádiva e dinheiro), bebê e pênis: produtos que se prestam a representar ideias espontâneas, fantasias e sintomas inconscientes, colocando-os como elementos que inconscientemente se equivalem e se substituem livremente um ao outro, independentemente da diferença sexual. As fezes representam a primeira dádiva de uma criança, ela só dará “uma parte do seu corpo” a quem ama, ou seja, as crianças não sujam estranhos. Momento de decisão entre adotar uma atitude narcísica ou uma atitude de amor objetal. O primeiro significado de que o interesse pelas fezes tem para uma criança é o de “dádiva”, só posteriormente sendo transferido para o dinheiro: “A criança não conhece dinheiro, a não ser o que lhe é dado – não há dinheiro adquirido por si, nem herdado” (Ibid., p. 165).

Para Freud, o temor da pobreza como sintoma proeminente da melancolia se torna plausível por conta de como o erotismo anal foi arrancado do seu contexto e alterado no sentido regressivo. Lembra as pessoas maçantes, que se julgam desconsideradas e injustiçadas e sofrem com a feiura, com o corpo, com a insônia, com a inferioridade social que a pobreza pode causar.

O personagem, Makar, se envergonhava de não ter dinheiro e ao mesmo tempo se endividava cada dia mais. Até que resolveu pedir dinheiro emprestado a um agiota, que o questionou: “Para que o senhor tem necessidade de dinheiro?” (Ibid., p. 121). Esta pergunta foi o golpe fatal. Sua situação precária o impediu até de obter empréstimo. Caiu na bebedeira e vivenciou um tempo de desespero.

Há uma ambiguidade de sentimentos que faz com que os melancólicos demandem um amor ilimitado e, ao mesmo tempo, tenham ódio do objeto introjetado por despertar-lhe o sentimento de culpabilidade que faz com que procure o castigo e a desvalorização de si mesmo.

Esse quadro não é muito diferente dos dias atuais. Temos uma proliferação de comportamentos sociais que refletem a violência psíquica, social e econômica, que, na literatura psicanalítica, são relacionados como resultado desse processo de descrédito de si. O ódio ao objeto perdido justificaria o ataque a si mesmo e/ou ao outro no laço social. O discurso de vitimação denuncia a culpa e o ressentimento com a sociedade que, injustamente, não possibilita as mesmas condições psicológicas, educacionais e até financeiras para todos.

Alguns adolescentes, ao enfrentarem situações de impotência e desamparo, desenvolvem um investimento narcísico, deslocando sua libido do mundo externo para o próprio eu. Seus desejos e atos são superestimados, passando a lidar com o mundo externo de forma mágica para evitar o enfrentamento de angústias decorrentes da perda. A decorrência de toda esta operação é que há um investimento autoerótico a partir do qual o sujeito vive uma ilusão imaginária de que não precisa mais do objeto.

No corpo está a sede da satisfação pulsional, do gozo. Mas o corpo também se constitui a partir da demanda dirigida ao Outro, na cadeia significante. Lacan (1962-1963) acompanha Freud (1917) ao identificar a melancolia como uma das patologias do desejo. Por conta de não termos um objeto definido para satisfação pulsional, não há um objeto mais valioso que outro, e sim um que faz agalma para o desejo do sujeito. Nos seminários A transferência (1960-61) e A angústia (1962-63), Lacan faz referência a um objeto que iniciou o sujeito no campo do desejo e desapareceu abruptamente; seria um “suicídio” do objeto, mas que deixou “uma marca altamente simbólica, a marca da identificação ao nada: ‘eu não sou nada’” (Lambotte, 2001, p. 94). O melancólico está sob a égide da pulsão, lugar do qual o desejo está excluído. O complexo de Édipo do melancólico instaura um circuito nas duas vertentes: o amor incestuoso e o desejo de morte do pai. Não tendo extraído um saber sobre o que se perdeu com a perda do objeto, só resta o silêncio. Lacan (1962-63) acrescenta que a angústia do melancólico é decorrente dessa identificação com o nada e de não ter pelo que viver. "A sombra do objeto cai sobre o eu" (Freud, 1917) e faz surgir um sujeito a quem o supereu maltrata com seu mandato de gozo mortífero. No lugar da perda da realidade há a perda do sentido da vida, uma retração libidinal que mostra que a concentração de gozo excluiu os vínculos com a vida e com o mundo. Lambotte (2001) afirma que a marca da perda do objeto é simbolizada, é uma marca da identificação com o “eu não sou nada” que faz referência a algo que poderia ter sido. Ela retoma a origem latina da palavra “nada” (res – coisa), e afirma que não é pouca coisa! (Ibid., p. 94). Acrescenta que essa posição é, justamente, uma das diferenças entre um sujeito melancólico e um sujeito psicótico. A castração do melancólico toca o ser, a falta fundamental.

A inserção na cultura pressupõe uma dívida impagável. A autorrecriminação melancólica é a consciência dessa impossibilidade, o sofrimento silencioso que promove doenças reumáticas ou doenças autoimunes os quais deixam os indivíduos paralisados de diversas maneiras, e os levam até o suicídio. O corpo que não está sendo investido pelo simbólico, se apresenta cheio de “furos”, de doenças e de dores generalizadas, sofre de distúrbios do apetite e do sono. São sujeitos que se queixam de perdas econômicas e injustiças sociais, fatores que justificariam desde atos de delinquência até suicídios e/ou assassinatos.

O que justificaria tal autodegradação?

Freud, desde seus primeiros escritos, intuía que a melancolia seria uma via real para o conhecimento do ser. No “Manuscrito E” (1895), por exemplo, ele afirmava que os melancólicos sofriam de “anestesia”, termo que vem do grego anaisthesia e que significa sem sentido. Este sintoma faz relação com o acentuado sentimento de vazio do qual o melancólico é portador. No “Manuscrito G”, ele correlacionou a melancolia e a anestesia sexual ao luto por perda da libido, dizendo que "não seria errado partir da ideia de que a melancolia consiste em luto por perda da libido" (1985). Havia um sofrimento produzido por uma "hemorragia interna" da libido, por onde se perderia, sem cessar, a energia sexual psíquica, provocando no sujeito um "esvaziamento do eu", ou melhor, um "buraco na esfera psíquica".

Foi somente em “Luto e melancolia” (1917) que Freud retomou a ideia de "esvaziamento do eu", para identificar as diferenças existentes entre a melancolia e o afeto do luto. Tratava-se da economia libidinal – o empobrecimento psíquico faz o sujeito perceber e agir no mundo como empobrecido. No luto, o sujeito sabe quem perdeu e o que perdeu e pode, assim, desatar os laços que atavam sua libido ao objeto perdido através do trabalho do luto; na melancolia, parece que o sujeito não sabe o que perdeu com a perda do objeto, caindo então num profundo mutismo, através do qual ele aponta a vida sem sentido. “No luto, o mundo se tornou pobre e vazio; na melancolia, foi o próprio eu que se empobreceu” (Ibid., p.105). No luto, o teste de realidade mostra que o objeto amado não mais existe. O trabalho de luto termina quando o eu se libera outra vez para se vincular a novos objetos. Porém, em algumas pessoas, as perdas tomam proporções de sofrimento psicopatológico – a melancolia. Nesta, algo do sujeito se perde com o objeto. Com a perda, ele se perde. Nos melancólicos há um trabalho psíquico que gera a autodepreciação, o desinteresse pelo mundo externo, pela capacidade de amar, uma inibição generalizada para realizar tarefas e uma despudorada satisfação em se autoexpor num desmascaramento de sua existência, estabelecendo, assim, um delírio de insignificância. As elaborações teóricas posteriores a “Luto e melancolia” (1917) acerca da posição melancólica, convergem ao lugar relevante do supereu.

Lacan (1960-61), reafirma que Freud identificou a melancolia como um luto que não termina e coloca o sujeito numa dor infinita, que o impede de fazer uma substituição significante. Não há desinvestimento do objeto perdido; ao contrário, há introjeção, tal como Freud descreveu a incorporação do objeto no ritual canibal, fazendo assim a identificação narcísica – numa identificação com o nada.

Em “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), Freud utiliza a expressão ideal de eu para descrever uma instância que tem uma origem narcísica, em que o homem projeta como seu ideal o substituto do estado de onipotência do narcisismo perdido na sua infância. Esse ideal corresponde aos ideais dos pais, em que a criança acredita na sua onipotência porque se acha amada incondicionalmente, o que era seu próprio ideal (eu ideal). O supereu seria uma instância que tem a função de manter os ideais, de ser a consciência moral, é o representante dos valores parentais no eu. Sendo a melancolia uma neurose narcísica, entende-se que o sujeito se decepciona consigo enquanto tomado como seu objeto, pois não consegue corresponder à imagem idealizada que montou para si. A falha narcisista poderia situar-se neste nível de constituição da imagem, uma fragilidade, no que esta se confunde com um modelo ideal que sempre estará fora do alcance do sujeito.

Freud, em “Psicologia de grupo e análise do eu” (1921), indica a dificuldade de compreender o mecanismo de deslocamento da melancolia à mania. Baseia-se na análise do eu para afirmar que, nos casos de mania, o eu e o ideal do eu se fundem, de maneira que, a pessoa em estado de ânimo, de triunfo e autossatisfação, não se perturba com qualquer autocrítica, pode desfrutar da abolição de suas inibições, sentimentos de consideração pelos outros e autocensuras. Supõe que esses pacientes, temporariamente, converteriam o ideal do eu no eu, após havê-lo anteriormente governado com especial rigidez.

Em “O eu e o isso” (1923), Freud desenvolve a ideia de haver uma introjeção do objeto sexual no melancólico, ideia que corrobora o processo de identificação. No ano seguinte, em “Neurose e psicose” (1924), com a segunda tópica, ele inclui a melancolia na categoria das neuroses narcísicas, apresentando-a como uma organização psíquica singular e estabelecendo limites rígidos entre a neurose e a psicose. As neuroses teriam sua gênese no conflito entre o eu e o isso; as psicoses, entre o eu e o mundo externo; e a melancolia é compreendida como um confronto entre o eu e o supereu. As "psiconeuroses narcísicas" se separam, então, tanto das neuroses como das psicoses. Freud faz da melancolia o paradigma desta categoria, inserindo-a no complexo de Édipo articulado ao complexo de castração, o eixo estruturante de toda a concepção freudiana.

Na conferência XXVI, “Teoria da libido e narcisismo” (1933), Freud mostra a estrutura interna da doença. As autocensuras com que esses pacientes melancólicos atormentam a si mesmos da maneira mais impiedosa são aplicadas a outra pessoa, o objeto sexual que perdera ou que se tornou sem valor para eles por sua própria falha. Conclui que o melancólico, na realidade, retirou do objeto sua libido, mas que, por um processo que chamou de “identificação narcísica”, o objeto depreciado projetou-se sobre o eu.

O eu da pessoa, então, é tratado à semelhança do objeto que foi abandonado e é submetido a todos os atos de agressão e expressões de ódio vingativo, anteriormente dirigido ao objeto. A tendência do melancólico para o suicídio torna-se mais compreensível se considerarmos que o ressentimento do paciente atinge de um só golpe seu próprio eu e o objeto amado e odiado. Na melancolia, bem como em outros distúrbios narcísicos, emerge um traço particular na vida emocional do paciente — a ambivalência. Ou seja, sentimentos contrários — amorosos e hostis – são dirigidos à mesma pessoa. Contudo, foi na Conferência XXXI, intitulada “A dissecção da personalidade psíquica” (1933), que Freud falou da consciência – uma parte do eu que faz função do supereu. O eu do melancólico é julgado, punido com censuras dolorosas e remorso por qualquer ato que proporcione prazer:

  “O Supereu aplica o mais rígido padrão de moral ao eu indefeso que ficaria à mercê das exigências pulsionais; representa, em geral, as exigências da moralidade, e compreende-se imediatamente que o sentimento moral de culpa é expressão da tensão entre o eu e o supereu” (Freud, 1933, p. 79).

A melancolia e o ressentimento revelam os impasses do sujeito frente ao objeto numa época marcada pelo declínio de Eros e do simbólico. As elaborações de luto ficam, portanto, comprometidas. As perdas da vida cotidiana são ilusoriamente reparadas pela via desenfreada de objetos de consumo que obstruem a via erógena, inclusive no que diz respeito à escolha dos parceiros amorosos.

A volta ao sentimento de desamparo é revivido quando o próprio eu abandona a libido que o investia e se desinveste. Com a sua inércia deixa-se ficar nas mãos potentes da crítica que o habita, tomado pelo gozo inapelável da desesperança. Deixa-se morrer. Sai-se de cena. Trata-se da renúncia ao que Freud considerou como mais fundamental para alguém: seu apego à vida. Em "Reflexões para o tempo de guerra e morte", diz Freud: "Tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos" (1915, p. 339).

Considerações finais:

A conclusão desse trabalho apresenta uma reflexão em torno da pesquisa sobre a constituição do sujeito melancólico somado à condição de ser pobre e ao exemplificar, com a literatura, uma história de gente pobre. Observamos ao longo da história que os poetas, os filósofos, os religiosos e os psicanalistas tentam falar, ou melhor, testemunhar sobre o uso lógico e sintático para “organizar” um meio-dizer sobre o que é da ordem do real. Ginzburg (2001) apresenta um panorama geral sobre os escritores da antiguidade até a contemporaneidade, que se encarregam de escrever sobre os ideários pessimistas e niilistas, e até sobre a força do cristianismo. São reflexões que ainda vigoram e que traduzem o sofrimento do cristão que, dividido, tem que viver as tristezas na terra, enquanto espera as alegrias do céu. A vida é marcada pela infelicidade e pela errância, a morte seria um alívio.

Como expressar a dor de existir, da perda de amor e a própria condição da vida humana?

Freud nos ensinou a buscar a literatura para demonstrar seus conceitos, e isto se tornou uma tradição no campo psicanalítico. Só através do uso da linguagem podemos expressar nossas verdades, mas também sabemos que sempre faltaram palavras para expressá-las. A verdade é meio dita.

Muitos escritores e filósofos não consideram a postura melancólica como doença e, sim, um estado de exceção de alguns que têm um pensamento contemplativo, necessário à filosofia. O melancólico seria um ser polimorfo, que busca na poesia a transcendência dos limites. Saber da mesquinhez do homem, proclamar sem cessar a insuficiência e o nada de todas as coisas junto com o sofrimento pelas privações e dos desejos são objetos de trabalho desses pensadores. Principalmente nos séculos XIX e XX, esses artistas foram criticados por favorecerem o declínio da masculinidade. Havia uma preocupação de que esses sujeitos melancólicos perturbassem o padrão predominante da organização dos papéis sexuais na sociedade.

Dostoiévski, através do personagem Makar, relata o sofrimento da percepção dos outros homens sobre si. Os colegas eram impiedosos no julgamento a seu respeito. Tinha vergonha da sua condição, pois um homem pobre não gosta de despir-se diante do mundo. Ele mesmo dizia que não servia para nada, mas queria agradar e ser útil a Varvara. Traduziu seu sofrimento na comparação com o pudor da mulher. “Um homem pobre, nesse sentido, sente o mesmo pudor que você, para dar um exemplo, um pudor vaginal” (Dostoievski, 1846, p. 105).

Freud, atento aos movimentos artísticos do seu tempo, também marca o melancólico como aquele que anseia em achar algo que foi perdido, inquieto com a finitude. Entre os artistas brasileiros, Ginzburg (2001) localiza a expressão de um discurso melancólico nas obras que se consagraram ao discurso sobre a precariedade subjetiva e a realidade social brasileira – os modos de exploração dos homens desde o período colonial, o escravismo, a opressão dos regimes autoritários e as consequências traumáticas na formação cultural e no funcionamento do brasileiro.

Resgatar esse viés da arte como uma saída do melancólico nos coloca uma questão sobre a direção do tratamento: qual a função da análise nesses pacientes? Freud (1923) alerta que a função do analista não está em se oferecer como ideal do eu do paciente, principalmente entre os pobres e, menos ainda, entre os melancólicos, que, mergulhados na impotência, derrubam qualquer argumentação analítica que pretenda animá-lo a sair desse lugar. Freud (1923) reafirma a importância de o analista garantir que o paciente possa dispor do seu próprio sintoma, falar disso. Lacan (1970) acrescenta que a direção da cura está em trabalhar a passagem da impotência à impossibilidade. Ou seja, que se possibilite a organização e/ou estruturação de um objeto estético que se ofereça à contemplação e indique um gozo. Qual será esse objeto? Alguns pacientes mais talentosos podem se encaminhar à produção artística, outros se contentarão com a terapia ocupacional e, ainda, podem existir alguns que elejam um objeto de coleção ou participem de muitos programas sociais e culturais indicados na sociedade. O objeto estético terá a função metonímica de um gozo que está por detrás. Ou seja, ao focar-se num objeto, o sujeito indica um gozo e com isso viabiliza sua volta à realidade.

Com a reflexão sobre os tratamentos que podemos oferecer aos pobres, retomamos a declaração freudiana de que seria responsabilidade do Estado e da sociedade atender a necessidade urgente de o pobre ter direito a uma assistência à sua mente tanto quanto tenha direito a uma cirurgia. Freud sugere que os atendimentos aconteçam gratuitamente em instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados analistas preparados

  “de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam se tornar capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente” (Freud, 1919a [1918]), p. 210).



Notas

 
  1. Artigo desenvolvido a partir da elaboração apresentada e publicada nos Anais do V Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e XI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental: Dietética corpo páthos, realizado em Fortaleza (CE, Brasil), no período de 7 a 9 de setembro de 2012.
  2. Temática que se articula à pesquisa de doutoramento “Sobre os efeitos subjetivos da pobreza”, no PPGTP / UFRJ, orientada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e subsidiada pela CAPES.



Referências bibliográficas

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Resumos:


Poor little me! Or the self in melancholy

This article examines the relationship between social and economic impoverishment and melancholy. There is a conflict that constitutes the self. This conflict concerns the degree of effectiveness of pulsional renunciation. It is a logical equation: how the depression of pulsional demands associated with poor external resources of civilization results in different degrees of weakness of the self. Two Freudian theories guide this reflection: the first one says that melancholy is the model for conceiving the constitution of the human being and the second one says-that the fear of impoverishment is a specific characteristic of the melancholic subject. Many subjects witnessed the pain of existence. And talking about it was a way out. This reflection is illustrated by Dostoyevsky's novel, Poor Folk, which indicates through several resources including sexual difference, the many versions of this suffering.

Keywords: psychoanalysis, poverty and melancholy, self-constitution, melancholy, treatment direction.

Pauvre de moi! Ou le je dans la mélancholie

Cet article examine la relation entre l'appauvrissement social et économique et la mélancholie. Il y a un conflit qui constitue le je. Ce conflit porte sur le degré d'efficacité du renoncement pulsionnel. Il s'agit d'une équation logique: la quantité de dépréssion des exigences pulsionnelles associées à la faiblesse des ressources externes de la civilisation, a comme conséquence les différents degrés de «faiblesse» de l'individu. Deux théories freudiennes vont guider cette réflexion: la première - que la mélancolie est le «modèle» pour concevoir la constitution de l'être humain, et la seconde - que la crainte de l'appauvrissement est une caractéristique propre à la mélancolie. De nombreux sujets ont été témoins de la douleur de l'existence. Et parler de ceci était une issue. On illustre cette réflexion avec le roman de Dostoïevski, Les Pauvres Gens, qui indique différence sexuelle comprise, les différentes versions de cette souffrance.

Mots-clés: psychanalyse, la pauvreté et la tristesse, je constitution, mélancoliques, direction le traitement.

 

Citacão/Citation: FONSECA, V.W.da S. Pobre de mim! Ou o eu na melancolia. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 13, nov. 2011 a abr. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 15/11/2012 / 11/15/2012.

Aceito/Accepted: 10/12/2012 / 12/10/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.