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Do neurônio ao nó

Jacques-Alain Miller
Diretor da Universidade Popular Jacques Lacan (Paris, França)
Psicanalista, Membro da École de la Cause Freudienne (Paris, França)
Fundador da Associação Mundial de Psicanálise (Paris, França)
E-mail: jam@lacanian.net

Resumo

O autor busca obstinadamente o que o momento cognitivista pode ensinar sobre o discurso analítico. A formulação “do neurônio ao nó” poderia resumir, graças à ajuda da assonância das palavras, a trajetória da teoria psicanalítica dos inícios de Freud ao último Lacan. Mas poderíamos dizer que os nós ocupam o lugar dessa quantidade material que é colocada como premissa por Freud quando ele tenta elaborar uma psicologia que seja científica. Para que seja científica, ela deve tratar de algo material. Coloca-se a questão do que faz a correlação – fundada ou não? – entre ciência e matéria.

Palavras-chave: psicanálise, cognitivismo, ciência, neurônios, nó.

 

Busco obstinadamente o que o momento cognitivista pode nos ensinar sobre o discurso analítico1. Se quiséssemos, “do neurônio ao nó” poderia resumir, graças à ajuda da assonância2 das palavras, a trajetória da teoria psicanalítica dos inícios de Freud ao último Lacan.

A perspectiva materialista que habita a psicanálise

O neuroreal quevolta à cena hoje em dia já havia sido elaborado por Freud em torno de 1895, com os meios que estavam à sua disposição naquele momento, em seu rascunho-esboço “Projeto de uma psicologia científica” (1895). Este texto, que levou muito tempo para ser publicado, quando foi a público gerou comentários de fisiologistas e neurofisiologistas, tanto quanto convocou os analistas a tomarem posição a respeito desta primeira tentativa.

Ele parte, explicitamente, de dois teoremas que reencontramos em jogo nas neurociências que se desenvolveram e se impuseram desde a década de 1970. Estes dois teoremas, Freud os coloca sob as espécies da concepção quantitativa e sob o título da teoria dos neurônios.

O ponto de vista quantitativo freudiano de atividade

O ponto de vista quantitativo – vale a pena lembrar – se impõe para Freud a partir da psicopatologia, da observação clínica das patologias mentais que implicam, segundo ele, a intensidade excessiva de certas ideias. Neste excesso, ele encontra o fundamento para a utilização que faz de um princípio que define como sendo a base da atividade neuronal, relacionado ao que simboliza pela letra Q – letra inicial de quantidade, definida como sendo o que diferencia a atividade do repouso.

Sua referência, o padrão, é, portanto, este conceito de atividade – de atividade psíquica, de atividade neural, de atividade neuronal – que vimos em ação nas descrições cognitivistas do cérebro. Esta quantidade, este marco, este símbolo quantitativo, Freud tem o cuidado de indicar – o que é uma coisa de valor considerável – que designa uma quantidade submetida às leis gerais do movimento. Trata-se então de uma realidade de ordem física, tratável segundo as exigências do programa físico-matemático. É, para ele, certamente algo material.

Esta perspectiva materialista habita a trajetória da teoria psicanalítica do neurônio ao nó. De fato, a matéria nodal tratada por Lacan em seu derradeiro ensino não é suscetível de ser designada pela letra Q. Não há dúvidas de que, se os nós obedecem a alguma lei, não serão as leis gerais do movimento prescritas pela física matemática. Mas poderíamos dizer que os nós ocupam o lugar dessa quantidade material que é colocada como premissa por Freud quando ele tenta elaborar uma psicologia que seja científica. Para que seja científica, ela deve tratar de algo material.

Coloca-se a questão do que faz a correlação – fundada ou não? – entre ciência e matéria.

Esse elemento material se apresenta sob dois aspectos bem definidos por Strachey no comentário que apôs a este texto na Standard Edition. É necessário buscar esta fonte, pois Freud não explicita esta dicotomia. De um lado, esta quantidade material é qualificada de fluxo ou de corrente que passa através de um neurônio ou de um neurônio a outro, mas, e este é o segundo aspecto, é igualmente capaz de permanecer dentro de um neurônio. Esta descrição parece ainda mais metafórica considerando que esta Q permanece um enigma (x) no enfoque de Freud. Tentou-se defini-lo como eletricidade, mas nada no texto de Freud vem validar esta tradução. Sua natureza permanece desconhecida.

Vamos revê-la em seguida sob as espécies do que Freud denominará sem aprofundar o tema: a energia, a energia nervosa, até mesmo a energia psíquica; logo, se coloca a questão de saber o que distingue esta energia psíquica de uma realidade física. Ao inventar a pulsão, Freud será levado a questionar um termo cuja essência mesma emerge como limite entre o psíquico e o físico.

É já, sob a espécie da letra Q, uma entidade paradoxal, pois se trata de uma quantidade que não se pode medir – os esforços quantificadores de Reich sobre a energia sexual tornar-se-ão um desvio para o conjunto do discurso analítico. É uma quantidade que não se pode medir, mas que mesmo assim pode-se dizer que está aumentando, diminuindo, se deslocando, se descarregando. Em sua forma desenvolvida, esta concepção quantitativa inspirará o que permaneceu no ensino da psicanálise como o ponto de vista econômico que não dissipa, na realidade, seu mistério e paradoxo.

A teoria freudiana dos neurônios

O que Freud chama de teoria dos neurônios – onde ele encontra o segundo principio de base de sua “Psicologia científica” –, apoia-se no que era à época uma descoberta recente da histologia, que ensinava ao mundo que o sistema nervoso consiste de neurônios distintos, que têm a mesma estrutura, estão em contato uns com os outros e se ramificam.

A “Psicologia científica” de Freud se desenvolve a partir desses dois princípios: a referência aos neurônios e a uma quantidade indeterminada (x) que circula ou que estanca entre neurônios, dentro de um neurônio, ou de um conjunto de neurônios. Ressaltemos que a descoberta propriamente dita do inconsciente foi precedida por essa designação de uma base material aos fenômenos psíquicos e ao conjunto da psicopatologia.

O materialismo lacaniano do significante

Façamos aqui um pequeno curto-circuito para percebermos que Lacan também procurou por tal base material e operou com esta referência. Não é a base material neuronal trazida por Freud. Digamos – eu já disse assim antes – que Lacan tenha substituído a referência biológica de Freud por uma base material que é linguística – o significante, precisamente. O materialismo do significante do qual Lacan pôde fazer uso no final dos anos 1950 e durante os anos 1960 era bem apropriado para satisfazer as elucubrações daqueles que queriam ser materialistas dialéticos, ou para quem a dialética não afastava o materialismo.

Não podemos então afirmar que a pesquisa de uma base material para o mental não faça parte da psicanálise. Muito pelo contrário! Ela está lá desde o início. Está lá no final. E ela atravessa a obra de Freud e também o ensino de Lacan.

Eu afirmei na última vez, sobre a causalidade psíquica, que Lacan opunha à causalidade física, orgânica – que promovia, então, Henry Ey –, uma causalidade semântica a ser buscada no registro do sentido. Certamente não estamos errados em dizer isto. Mas lá também, entretanto, havia a ideia de um análogo desta base material, já que Lacan considerava naquela época que o registro imaginário, como tal, poderia ter efeitos reais sobre o psiquismo e sobre o organismo. Ele buscava seus testemunhos na etologia animal, isto é, em um registro onde a linguagem não é uma função. Ele tinha, portanto, uma certa postulação da base material, que só encontrou e desenvolveu quando modificou sua concepção das transformações psíquicas segundo o modo imaginário para a modalidade baseada na ordem simbólica – uma ordem simbólica que ele comprimiu sobre uma realidade material, isto é, o significante. Mesmo não tendo feito disso o enquadramento principal de seu ensino, a palavra lá está como a base material de suas construções e, caso desejemos, como a base material do inconsciente.

O abismo do raciocínio cognitivista

Eu falei da última vez deste conceito de atividade que se efetua na concepção cognitivista e que, de fato, me parece crucial. Esta concepção já caracteriza a distância em que se encontra com relação ao ato. Tudo o que se relaciona com a atividade certamente implica, mas também sutura ou foraclui o que é do registro do ato. A referência à atividade psíquica, cerebral, mental, obedece ao postulado segundo o qual o psiquismo duplica o cérebro, de que o psiquismo é o duplo do cérebro e que tudo o que localizamos como atividade cerebral vale então ipso facto para o psiquismo.

Devemos constatar, me parece – digo me parece porque estou decifrando a literatura de nossos cognitivistas, estou longe de ter esgotado o tema, não sou levado a isso por gosto, tenho que assumir, mas por um sentimento de dever –, uma problemática permanente, presente em diversos autores; uma problemática bipolar: a multiplicidade e a síntese.
Tomo como exemplo a sequência de duas frases do meu amigo Jean-Pierre Changeux, no último texto que me foi apresentado: sua introdução ao trabalho de seu aluno Dehaene sobre Os neurônios da leitura (2007).

Changeux escreve primeiramente a seguinte frase: “O desenvolvimento fulgurante dos métodos baseados na obtenção de imagens do cérebro tornou acessível a identificação das bases neuronais de nosso psiquismo”. Primeiramente, ele ressalta a dependência desta investigação em relação à tecnologia. Ele não esconde que o que se desenvolveu se deve à aparição de um instrumento de investigação: os exames de imagem cerebral, imagens magnéticas que deram acesso a quê? A novas percepções, antes de mais nada atestadas – na linguagem deles – no sistema visual. Ele afirma, de fato, o que nós já sabíamos – que as promessas do cognitivismo ficaram mais insistentes e gloriosas de uns quinze anos para cá. “Este desenvolvimento”, diz ele, “tornou acessível à identificação das bases”. Nós estamos de fato – ressaltemos isso – no nível das bases, no nível básico. Os autores relatam um certo número de observações, que, salvo evidências em contrário, não temos motivo para questionar: as observações sobre a ativação de zonas neuronais no cérebro que são bases nervosas, bases neurais. Ressalto o aspecto básico, na medida em que há um abismo entre o que ele denomina a “identificação das bases neurais” – aí, não podemos falar em “identificação”, pois não se trata de identificação – e as hipóteses que tratam dos picos de atividade psíquica. Podemos então validar a assertiva de Changeux, com a condição de ressaltarmos o termo “base” e explicarmos que o termo “identificação”deve ser lido precisamente com o sentido de “localização”, termo que Changeux evita cuidadosamente, me parece, porque teria de lidar com a crítica de que se trataria apenas da retomada, com uma tecnologia superior, da ambição de Broca. Por isso, ele diz “identificação”.

Já eu estou de acordo com uma frase bem simples: o desenvolvimento da tecnologia foi fulgurante, permitiu perceber e localizar as bases neurais do psiquismo. Por que não?
A coisa ganha profundidade com a segunda frase.

Não as aproximo de modo arbitrário. Elas estão juntas em seu texto e testemunham o raciocínio utilizado. A meu ver, cavam um abismo.

Cito. “Ainda falta, entretanto” – bom, é um acréscimo: ainda não fizemos tudo – “conectarmos entre eles os múltiplos níveis de organização embutidos em nosso cérebro” – isto é, o que temos são módulos localizados separadamente, o pequeno detalhe que falta ajustar é que é necessário conectá-los entre eles – e “sintetizá-los de forma pertinente” – aqui existe um equívoco, eis que se trata de saber como esses módulos, que são localizados separadamente, nos dão uma atividade de síntese que é aqui de certa forma confundida com a síntese pertinente que nós, estudiosos, teríamos que fazer desses múltiplos níveis – “e sintetizá-los de uma maneira pertinente que nos permitirá compreender os fundamentos neuronais do pensamento consciente ou da criação”. De uma só vez, sob pretexto de que ainda falta fazer isso, mais uma vez pulamos das bases neuronais do psiquismo aos fundamentos neuronais do pensamento.

A lógica da multiplicidade sintética

Esse abismo entre multiplicidade e síntese me parece caracterizar o conjunto do estilo cognitivista. A promessa cognitivista é a de englobar, em sua pesquisa, o pensamento, a criação, e o que é doravante chamado de cultura.

Eles acreditam, a partir dos módulos onde localizam as bases neurais, conseguir se desenvolver até abraçar o conjunto da cultura, caracterizando como cultura o essencial do meio ambiente da espécie humana. Eles então prometem estudar a interação do cérebro com o mundo exterior.
A cultura não entra tão mal no programa cognitivista, já que é caracterizada como um “conjunto de signos”, signos materiais, com referências astuciosas a Ignace Meyerson: “não existe signo sem matéria”. No caminho de Changeux, isolamos um conjunto particular de signos que é a escrita. A pesquisa versa sobre o reconhecimento da escrita e sobre o porquê da padronização relativa dos signos escritos através das culturas, relacionados às propriedades mais frequentemente supostas dos módulos neurais.

Temos então uma abertura. Não tivemos a ideia de estudar o cérebro independentemente da vida do indivíduo. Ao contrário, o cérebro está situado em um Umwelt caracterizado, antes de mais nada, como cultura e como conjunto de signos.

Encontramos neste espaço abissal, é necessário dizer, uma floração extraordinária de hipóteses epigenéticas. A epigênese é a aparição em um ser vivo de uma forma nova, que não estava contida no germe do referido ser, isto é, que não foi pré-formada.

Prometemos estudar as interações do cérebro com a cultura – digamos, para empregar nosso termo, as interações do cérebro com o significante, que Changeux não ignora, pois ele o menciona –, as interações do cérebro com o significante que explicam o desenvolvimento extraordinário das capacidades de pensar do ser humano.

Vejo a mesma lógica da multiplicidade sintética em certa passagem de Stanislas Dehaene (2007), onde ele relembra a “modularidade do córtex que se subdivide em múltiplos territórios especializados”, diz ele, antes de apelar para uma síntese, que seria própria da espécie humana em relação aos demais animais – ele escreve em algum lugar: “uma síntese dos conteúdos”. É necessário dizer que ele postula esta síntese com uma marca condicional: “a espécie humana disporia”, prossegue, “de um sistema evoluído de conexões transversais que aumenta a comunicação e” – então, em um nível superior, até o momento hipotético – “trinca” – é seu termo – “a modularidade cerebral”. Mesmo não sendo afirmada, esta zona de síntese é celebrada quase de forma poética. São atribuídas a ela todas as qualidades superiores do pensamento: é lá que se efetiva a reunião das percepções e das lembranças, é lá que estas capacidades seriam reunidas, confrontadas umas às outras, recombinadas e, enfim, sintetizadas de maneira a evitar, segundo Dehaene, o fracionamento dos conhecimentos.

Encontramos em diversos momentos nesses trabalhos uma homenagem às extraordinárias capacidades de conexões transversais colocadas como hipotéticas e condicionais, mas evidentemente necessárias, pois são, entre aspas, “faculdades que possuímos”. É necessário que em algum lugar elas de fato existam.

A antífona da síntese mental e crítica do atomismo

Conseguimos identificar a zona, lá onde, aliás, ela foi desde sempre localizada – só que agora podemos olhar para ela: o lobo frontal, o córtex frontal. É ele que nos daria o que Dehaene (2007) denomina lindamente de espaço de deliberação interno. Seria o local do foro íntimo. Então, este maravilhoso córtex frontal reúne de uma só vez o conjunto de dados sensório-motores e os vestígios de memória – ele é o todo deste conjunto – e seria, ao mesmo tempo, maravilhosamente desvinculado das contingências do presente para, citando o autor, “se voltar para o futuro”. Temos aí a descrição de um córtex frontal que, de certa forma, faz tudo o que fazemos e que – utilizamos a forma verbal condicional, porque somos estudiosos – seria a consciência, a consciência reflexiva.

Isso não é novo, já no século XIX se procurava o “órgão das sínteses mentais”, procurava-se identificar o que Aristóteles chamava de sensocomum. Dehaene (2007) cita Avicena, que, desde o ano mil, já localizava o senso comum não muito longe do córtex frontal – sem contar com nossos modos de investigação. Córtex frontal ou pré-frontal, segundo os autores ou os momentos. O que permite que Dehaene enuncie a hipótese de que a competência para a cultura, a consciência reflexiva e a existência de uma potente rede de conexões no córtex frontal ou pré-frontal são os “fenômenos ligados”. Ele não se estende além da ligação, ficando na fronteira da causalidade.
Temos, então aqui, um abismo entre a identificação das bases e as hipóteses epigenéticas sobre os picos. Para preencher esse abismo, existem apenas hipóteses. Não há observações senão as referentes à densidade da rede de conexões em certas partes do córtex.

Temos então de fazer a conexão entre o ser do cérebro que é basicamente um computador elementar – eis a expressão: “uma máquina de Turing” – e as criações mais elaboradas da cultura. O que certamente permite que a conexão seja feita, segundo este autor, é a capacidade do cérebro de se beneficiar da acumulação e da transmissão cultural que já se estende ao longo de milênios.

Na verdade, para um certo filósofo - não estamos muito longe do atomismo, criticado por Merleau-Ponty há muito tempo atrás em seu livro Estrutura do comportamento (2006), ao qual fiz referência uma vez nesse curso – onde  já havia notado que, com uma mão, decompomos em unidades ou em módulos, isolamos processos, os colocamos lado a lado e, em seguida, pretendemos corrigir este atomismo por meio de noções, como dizia ele em 1943, de integração e coordenação. A palavra-mestra utilizada por Dehaene é a “recombinação” das percepções, do sensório-motor e das lembranças. Adiciona-se um pouco de combinatória, mas isso se inscreve no mesmo local.

A rudimentar hipótese cognitivista de outrem

Dito isso, esta referência à cultura é extremamente massiva. Ela é especificada pela ideia de conjunto de signos. Sem dúvida, o estruturalismo tem seu lugar nesta especificação. Vamos nos apropriar de certas passagens de Lévi-Strauss para seguir nessa direção. Os autores sentem a insuficiência e a pouca nitidez dessa implicação. Por isso, criam uma hipótese mais precisa sobre a porta de entrada da criança pequena no cérebro pequeno, cujo desenvolvimento vai se estender durante muitos anos. É a hipótese da entrada do pequeno cérebro na cultura. Há diversas hipóteses epigenéticas que eu não vou enumerar, mas essa vale a pena ressaltar: “As crianças humanas começam a entender que as outras pessoas são agentes intencionais como elas”eis um fator cerebral de suma importância! “É essa compreensão que lhes concede acesso ao aprendizado cultural”. Aí está precisamente a hipótese que deve complementar e, de certa forma, preencher este abismo: a criança pequena entende que as outras tem intenções como ela, e é essa compreensão de outrem que dá acesso ao aprendizado cultural.

É uma hipótese sobre outrem. É uma hipótese sobre a leitura, a decifração da intenção do outro e a compreensão deste como sendo um sujeito intencional. Temos então aqui, em desenvolvimento cognitivista, a irrupção de outrem como sujeito intencional que o sujeito compreende. Isso se acompanha da hipótese complementar segundo a qual deve haver, cito o autor, “um módulo cerebral especializado na representação das intenções e das crenças de outrem”, que, por enquanto, não foi objeto de uma identificação à maneira de Changeux, mas, já que tudo tem seu lugar no cérebro, devemos supor que há um módulo cerebral especializado para isso. Entendemos como isso tudo funciona: valoriza-se tal ou tal traço do pensamento, ou do comportamento, ou da criação, e a resposta é a hipótese de que deve haver um módulo especializado que acabaremos por encontrar nos exames de imagem do cérebro.

Não podemos evitar a impressão de que estamos tratando de um balbuciamento, que a fenomenologia do estádio do espelho já é bem mais rica no que diz respeito à relação com o outro, e que o conceito de ordem simbólica é muito mais preciso que o conceito de cultura do qual se utiliza o psicólogo cognitivista.

Percebe-se, aliás, a função que tinha o estádio do espelho para Lacan quando ele o propôs: uma solução para a problemática da multiplicidade sintética. A multiplicidade em questão era, então, a do corpo despedaçado e é pelo espelho que a forma total do corpo vinha a ser percebida e, por esta via, poderia simbolizar a permanência mental – são os termos de Lacan – do que ele chamava de Eu. Ele dava a este fenômeno um lugar eminente no desenvolvimento mental, pois caracterizava este desenvolvimento como algo necessário, visto a prematuridade específica do nascimento na espécie humana.

O tapa-buracos da construção cognitivista

Por mais rudimentar que seja a hipótese cognitivista, ela designa o que falta na construção deles, isto é, a necessidade de uma porta de entrada do cérebro na cultura, no aprendizado cultural, conforme a expressão que eles utilizam, pois só entendem haver saber através do aprendizado. Este abismo é preenchido por meio da designação de uma relação de compreensão global com a instância do outro. Na linguagem deles, isso supõe a necessidade da utilização de uma hipótese suplementar, isto é, um módulo especializado para sua realização.

Entretanto, sentimos que todo o discurso sobre a conexão com o registro da cultura supõe inicialmente a identificação do momento inaugural de uma entrada, apresentada nos termos da psicologia mais elementar, digamos, a psicologia positivista: a decifração da intenção do outro. Com a suposição, aliás, que o sujeito seria também, para ele mesmo, um sujeito intencional. Cito: “As crianças humanas começam a entender que as outras pessoas são agentes intencionais tanto quanto eles.” Este encontro que parece indispensável para o aprendizado cultural supõe que, para ela própria, a criança humana seja um agente intencional.

É aí que estamos em uma extraordinária fantasmagoria. Salvo se recorrermos – não digo que seja a solução mais desenvolvida – à noção lacaniana de ordem simbólica que dá consistência ao meio onde a decifração e o “querer dizer” são concebíveis. Mas isso supõe uma estrutura mais desenvolvida que a da imitação que está subjacente aqui. Supõe-se a existência de uma estrutura cujo ponto de partida é retroativo, e que localiza no Outro (A) o sítio inicial, conforme dizia Lacan, do sujeito do significante.

01

Para o Lacan mais clássico, a base material – antes mesmo que ele a desfizesse – era a estrutura da linguagem, aquela em relação à qual ele acreditava poder demonstrar que sustentava o sintoma no sentido psicanalítico, no local onde o sintoma se verifica estar em relação com uma estrutura significante que o determina.

A causalidade significante... e sua desestabilização

Podemos ver como Lacan pensou amaciar o discurso científico ou talhar um espaço para a psicanálise no discurso da ciência, através de um recurso que hoje em dia prova menos do que na metade do século XX, pelo viés da linguística estrutural, que foi progressivamente recalcada por outras abordagens da linguística. É, ao se apoiar sobre a linguística estrutural de Saussure e Jakobson, que Lacan poderia pensar e dizer que a linguagem conquistou seu estatuto de objeto científico. Permaneceu a base intocada de seu ensino, até que, no último deles, por meio de uma frase lapidar que mencionei no ano passado, ele sacode essa base.

Na época, nós gostávamos de reproduzir sua escrita da diferença do significante e do significado, sob a forma de algoritmo, dizia ele.

02

Este algoritmo tinha o objetivo de marcar que as ligações internas ao significante tinham as funções mais amplas na gênese do significado. É o que deu a seu escrito “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (Lacan, 1957) seu valor enquanto ponto de basta. Em seguida, ele endureceu esta posição ao fazer do significante a causa, não só do significado, mas do sujeito também. Dito de outra forma, à verdadeira causalidade psíquica, ele conseguiu dar a forma de causalidade significante, e é sobre essa base que a parte mais clássica de seu ensino pôde se desenvolver.

Do sujeito lacaniano e de sua abolição nas neurociências

Por reflexão, a partir do cognitivismo, o termo sujeito que Lacan trouxe para a psicanálise adquiriu seu valor de ruptura da relação de duplicação entre o que é psíquico e o que é orgânico.
Por essa razão, Lacan podia dizer que admitia a definição aristotélica da alma enquanto forma do corpo e, de certa forma, o estádio do espelho é uma gênese da alma no sentido aristotélico. É o paradigma que ilustra a emergência da alma.

O que nos é desenvolvido sob o tópico das espécies da atividade neuronal – em suas formas supostamente mais elevadas, suas formas integrativas e combinatórias, até mesmo reflexivas – são apenas gêneses da alma aristotélica. Dehaene (2007) acredita validar seu esquema ao identificá-lo ao esquema aristotélico do senso comum. É necessário um local onde isso tudo se reúna.

Com respeito a isso, é sensível que o sujeito está em numa posição descompletada. O sujeito do qual se trata em Lacan não é o sujeito psíquico. Da mesma maneira que o saber do qual se trata no inconsciente não guarda nenhuma relação com o saber tal como é posto em função no cognitivismo como informação – objeto de uma estocagem de memória, de um aprendizado ou de uma pedagogia. O saber do qual se trata no inconsciente habita outro lugar: habita o discurso, e num discurso onde interrogamos o inconsciente sob o modo “que ele diga por que”, dizia Lacan, isto é, sobre o modo da decifração.

O sujeito de Lacan é um sujeito pura e simplesmente abolido na neurociência, já que, para esta, o postulado é aristotélico: o que é psíquico é jogado fora, é o duplo do orgânico.
Percebemos claramente que, mesmo se Freud fez empréstimos à biologia, não é, evidentemente, a partir da biologia que se pode isolar a pulsão de morte. Só se pode fazê-lo como uma função do discurso, isto é, precisamente sob as espécies da função da repetição.

As integrações sempre parceladas

Isso não implica, definitivamente, uma negação do real do corpo. Também não implica uma negação do real do esquema mental, ainda que imaginário. Eu diria, generalizando uma proposição de Lacan, que as integrações são sempre parceladas.

Lacan o afirma a respeito da imagem do corpo: o acesso à forma total do corpo não anula a fragmentação inicial da relação com o corpo. A integração especular nunca é completa, é contraditória. Da mesma forma, pode-se dizer que a integração mental, longe de ser uma função de síntese total, é sempre parcelada. O que chamamos de “sujeito” é justamente o que é parcelado nesta integração.

Quando Lacan trata do eu, é na linha freudiana que o define como uma miscelânea de identificações descombinadas, a mil léguas do local de deliberação interna e reflexiva que constitui o objeto da hipótese cognitivista.

A função dissociada do sujeito

Este sujeito, que Lacan recomendava nunca encarnar – mesmo quando o representava sob as espécies do conjunto vazio, ainda era muito –, inútil dizer que ele não é certamente capaz de encarnar-se no cérebro. Existe aí outra função, uma função dissociada, que não pode ser abordada – não digo conhecida, mas que “só pode ser abordada” – na referência ao discurso.

A partir do momento em que admitimos que não se pode alcançar o conhecimento científico do cérebro sem apelar para a cultura, ficamos com muita dificuldade de negar que o discurso, a relação com o outro pelo  discurso, constitui uma ordem de realidade própria. A hipótese, à qual não é possível renunciar, da decifração da intenção do outro já é o testemunho de que não se pode negar a densidade de real que existe no fato do discurso, eis que, até mesmo neste exemplo sumário que nos dão, neste apelo sumário que fazemos ao outro, trata-se de decifração.

Afirmamos então que o sujeito é uma função que se depreende dessa ordem de realidade sui generis que é o discurso.

A contingência no lugar da causa

É o que Lacan, em seu ensino mais clássico desenvolveu, até o ponto que eu indiquei da última vez, onde ele encontra uma quebra na causalidade.

Ao longo de seu ensino, pronto a afrontar em seu próprio terreno o discurso da ciência, ele adotou, com seu valor de provocação, a linguagem causalista. Até isolar uma quebra da causalidade, uma quebra da determinação, encontrando, sintetizando – por que não dizê-lo? – um certo número de resultados sob as espécies de: “não existe causalidade sexual”. Ele disse “relação”. Disse relação para dizer que não existe aí causalidade. Não existe lei da relação entre os sexos.

Ele pensou que dessa forma fazer oposição ao real da ciência – que é um real que contém um saber –, o real próprio da psicanálise – sob as espécies de um real que não conteria um saber e que veicularia o saber do inconsciente. Ele veicularia, antes de mais nada, especialmente a ausência de lei, precisamente o buraco deste saber. “Não há relação sexual”, é a noção de uma ausência de lei. A lei sexual não pode ser escrita.

É então que o termo “contingência”se torna palavra mestra, no lugar de causa. Esta contingência é colocada por Lacan no nível da constatação – validada pelo discurso analisante, pela experiência analítica e pela multiplicidade da qual testemunham os modos sob os quais os dois sexos entram em relação. Existe aí uma multiplicidade clínica que permite – sob sua forma sintética, do fato que esta contingência não se desmente – ser tomada como demonstrativa da impossibilidade de escrever uma lei nesse local.

O real atestado pela psicanálise

O que poderia ser considerado como impotência do discurso analítico a formular a relação sexual é tratado por Lacan como uma impossibilidade. A análise se torna o local próprio onde o inconsciente atesta este real – um real sem saber.

Em que medida existe um matema deste real? É um real sem matema.
Se seguíssemos todas as etapas – o que eu não fiz –, veríamos finalmente Lacan fazendo retroceder o lugar da psicanálise: de ciência a ciência conjetural, em seguida de ciência à margem da ciência e, finalmente, de formação discursiva sobre a margem externa da ciência. Ele inventa um real sem matema, cuja questão é saber em que medida é transmissível. Lacan responde que ele só é transmissível pela fuga à qual responde todo discurso. Ele é essencialmente transmissível pela experiência analítica propriamente dita, isto é, pela própria experiência da fuga.

O convite feito aos analistas para ek-sistir 3

Quando Lacan formula em seu último texto escrito, como já ressaltei, que o inconsciente é real, ele entende que o inconsciente não é imaginário – o que era a tese à qual conduziam suas “Formulações sobre a causalidade psíquica” (1946); que o inconsciente não é simbólico – ao menos em sua fase mais profunda; mas que o inconsciente é “sem lei”. Ele nem sequer representa o retorno da verdade ao campo da ciência, porque a verdade, se comparada com este real, é apenas uma miragem. Donde o apoio que ele acreditou poder encontrar no nó. Fez dele uma matéria do inconsciente, a base material da psicanálise, mas sob a condição, precisamente, que ele não se desenvolva nas normas do discurso da ciência. Não é a falta de saber que lhe faz evitar o simbolismo matemático dos nós, é, antes de mais nada, para dar o paradigma de um tratamento de uma matéria à qual o discurso científico era, ao menos até esse momento, incapaz de regular.

Devemos sustentar graças a avanços feitos de um lado de observações, mas, de outro, de hipóteses para os crentes – não é possível dizer isso de outra forma –, temos que sustentar, diante desses avanços, o convite feito aos analistas por Lacan para que se esforcem para ek-sistir, isto é, existir fora dessas normas – não sendo proibido, por meio de operações de comando, minar algumas convicções. É o que, com meus meios, tentei fazer hoje aqui.


Notas

 
  1. Lição de 6 de fevereiro de 2008 do curso ministrado por Jacques-Alain Miller, “A orientação Lacaniana. Todo mundo é louco”, [2007-2008], proferido no quadro do departamento de psicanálise de Paris VIII. Texto consolidado por Yves Vanderveken a partir da transcrição de Michel Jolibois, publicada em lista eletrônica na edição extraordinária da revista TLN, n. 378. Tradução não revista pelo autor. Publicado originalmente em Mental, Revue internationale de psychanalyse, EuroFédération de Psychanalyse. Bélgica: Seuil, n. 25, abril / 2011, p. 69-82.
  2. Nota da tradução: em francês há uma assonância entre as palavras neurônio e nó.
  3. Nota da tradução: no original, é o jogo de palavras “ek-sister”.


Referências bibliográficas

DEHANE, S. (2007) Les neurones de la lecture, Paris: Odile Jacob.
FREUD, S. (1895) Esquisse d’une psychologie scientifique, em La naissance de la psychanalyse, Paris : PUF, 1956, 8e. edition, 2002, p. 307-396.
LACAN, J. (1946) Formulações sobre a causalidade psíquica, em LACAN, J. Escritos, Rio de Janeiro: JZE, 1998, p. 152-194.
LACAN, J., (1957) L’instance de la lettre dans l’inconscient ou la raison depuis Freud, em LACAN, J. Écrits, Paris : Seuil, 1966, p. 496-528.
MERLEAU-PONTY, M. (2006) La structure du comportement, Paris: PUF.



Resumos


From the neuron to the node

The author persistently seeks what the cognitivist moment can teach about analytical discourse. The phrase: “from the neuron to the node” could summarize the analytical speech of the trajectory of the psychoanalytic theory from the beginning of Freud first until the last of Lacan, with the help of the words in assonance. But we could say that these nodes occupy the place of this material quantity which is placed as Freud's premises when he tries to develop a psychology that is scientific. To be scientific, it must address to something that is material. This raises the question of what makes the correlation-founded or not - between science and material.
Keywords: psychoanalysis, cognitivism, science, neurons, node

Du neurone ao noeud

L'auteur cherche obstinément ce que le moment cognitiviste peut enseigner sur le discours analytique. La formulation "du neurone au noeud" pourrait résumer, grâce à l'aide de l’assonance des mots, la trajectoire de la théorie psychanalytique Du début de Freud jusqu’au dernier Lacan. Mais on pourrait dire que nous occupons la place de cette quantité materielle qui est établie comme prémisse par Freud quand il essaie de développer une psychologie qui est scientifique. Pour être scientifique, elle doit répondre à quelque chose de matériel. La question de ce qui fait la corrélation - fondée ou non? - entre la science et la matière.

Mots-clés: psychanalyse, cognitivisme, la science, les neurones, le nœud.




Citacão/Citation: MILLER, J.-A. Do neurônio ao nó. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VII, n. 13, nov. 2011 a abr. 2012. Disponível em www.isepol.com/asephallus

Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received: 13/01/2012 / 01/13/2012.

Aceito/Accepted: 04/03/2012 / 03/04/2012.

Copyright: © 2012 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.