Existem novos sintomas e patologias? Para responder a essa indagação, que nos ocorre mediante os impasses na clínica psicanalítica atual, escolhemos abordar a toxicomania. De Freud a Lacan, houve uma ampliação da psicopatologia de molde a incluir novos sintomas em conformidade com as mudanças nos laços sociais da contemporaneidade.
Em Freud, “a função da droga é abordada [...] apenas como um operador ético, nos limites precisos da economia libidinal do sujeito, seja ele neurótico, perverso ou psicótico” (Santiago, 2001, p. 114). Já em Lacan, encontramos outra concepção:
“[...] a toxicomania como uma nova forma de sintoma. Ou seja, o que emerge como novo no envoltório formal do sintoma justifica-se pela própria compreensão de que a toxicomania é um efeito do discurso da ciência, o que, por sua vez, não é suficiente para lançar as bases de uma estrutura clínica particular” (Santiago, 2001, p. 153). |
Partimos, então, dessa localização teórica precisa e também da nossa experiência na instituição de psicanálise aplicada que se propõe a escutar usuários de substâncias psicoativas. Nesta instituição, cujo valor do significante é voltado para a vida – Associação CasaViva –, o diagnóstico estrutural de sintomas, que nos remetem a modos de gozo muito próximos da pulsão de morte, mostra-se tarefa árdua.
Assim, nos deparamos com os sintomas que podemos nomear de sintomas da moda, nos quais a fixação do gozo em um determinado objeto revela um modo-de-gozar sem o Outro. De tal forma, o modo de gozo não passa pelo Outro social e se situa necessariamente no mais-de-gozar. Pensamos então em um circuito de modo de gozo precário, desorganizado e encarnando uma faceta autística e solitária. Nesse cenário localizamos a toxicomania.
No Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan afirmou que o parceiro do sujeito não é o Outro, mas sim o que vem em substituição e que se constitui como causa do desejo (Lacan, 1972-73, p. 171). Na clínica da toxicomania, nos deparamos com sujeitos que não vestem o mais-de-gozar com outra pessoa e sim jogam sua partida essencialmente com as drogas e de forma narcísica. Nesse sentido, o parceiro não está sob a roupagem da sexualidade.
“Se esboço uma teoria do parceiro é porque o sujeito lacaniano, aquele a quem nos remetemos, está essencialmente engajado em uma partida. Ele tem de maneira essencial, não contingente, mas sim necessária, de estrutura, um parceiro. O sujeito lacaniano é impensável sem um parceiro” (Miller, 1996-97, p. 164). |
A partir da constatação lacaniana, seguimos, então, com a releitura de Jacques-Alain Miller, que nos apresenta a toxicomania como um anti-amor, na medida em que nela se prescinde do parceiro sexual e há uma fixação na substância psicoativa como um parceiro a-sexuado do mais-de-gozar (Miller, 1996-97, p. 170). Na contemporaneidade, para ele, localizamos a toxicomania em uma época na qual prevalece o objeto a e se prejudica o ideal. Assim, ele resume sua proposição com o matema I < a.
Nos atendimentos da instituição CasaViva, um de nossos pacientes conclui: “eu comecei a beber na adolescência, e fui bebendo, bebendo, até a hora que me dei conta que passei a gostar mais de bebida do que de mulher”. Outro paciente diz, se referindo à dependência de crack: “eu nem queria saber de namorar, o beijo mais gostoso que eu dava era aquele beijo apaixonado na latinha”. É ainda recorrente na fala destes sujeitos a constatação de que, especialmente, o crack elimina a fome, o sono e o amor.
Durante a confecção deste artigo, questionamos o porquê do interesse atual pela toxicomania, uma vez que ela sempre existiu. Encontramos, então, em Miller a resposta:
“Se nos interessamos hoje pela toxicomania, que existe desde sempre, é porque ela traduz maravilhosamente a solidão de cada um com seu parceiro mais-de-gozar. A toxicomania pertence ao liberalismo, à época em que nos lixamos para os ideais, em que não nos ocupamos de construir o Outro, em que os valores ideais do Outro empalidecem, desagregam-se frente à globalização de que ninguém está a cargo, enfim, uma globalização que prescinde do Ideal” (Miller, 1996-97, p. 170). |
Ainda para este autor, “o gozo toxicômano tornou-se emblemático do autismo contemporâneo do gozo” (Miller, 1996-97, p. 172), na medida em que o sujeito dispensa o Outro e goza a sós. Assim, encontramos, na clínica da CasaViva, homens abobalhados e desvirilizados que, ao se afastarem do uso da droga, não sabem como usar o próprio dinheiro, sequer imaginam como abordar uma mulher e, muitas vezes, precisam ser secretariados – ainda que não sejam psicóticos – para uma reconstrução da posição viril.
Por outro lado, as mulheres que chegam ao serviço para atendimento analítico encontram-se devastadas e são levadas ao extremo da posição de dejeto, na maioria das vezes acompanhando seus parceiros também drogadictos. Recuperar algo da posição feminina na parceria com seu homem e convocar a recusa do gozo excessivo se torna, então, um desafio na clínica contemporânea frente à toxicomania.
Miller ainda nos propõe pensar uma distinção das drogas, separando-as quanto aos efeitos que elas provocam na relação entre o sujeito e o Outro. Assim, ele aponta que a maconha é uma droga cujo uso não se encaixa indispensavelmente na dinâmica do excesso, na medida em que não rompe com o social e que pode auxiliar as relações sociais e sexuais.
Para justificar tal proposição, ele retoma a concepção lacaniana de que o gozo toxicômano pode ser considerado verdadeiramente patológico quando ele é preferido à relação sexual (Miller, 1996-97, p. 175-176). De acordo com Lacan (1975), o sucesso da droga se resume no fato de que ela pode ser uma ferramenta que permite ao sujeito romper o casamento com o seu “pequeno-pipi” (petit-pipi, em francês). Assim, este gozo tem valor supremo para os sujeitos que não medem esforços para atingi-lo, ainda que seja através da prática de crimes e outros tipos de transgressões.
“Lacan foi obrigado a recorrer às ficções kantianas para explicar o gozo perverso. Kant considerava líquido e certo o seguinte: se disserem a você que o cadafalso o aguarda ao término de uma noite de amor com uma mulher, você renuncia à mulher. Lacan, por sua vez, diz que não se recua forçosamente, sobretudo se aí estiver em causa um gozo que vai além do amor à vida. É o critério propriamente lacaniano do gozo toxicômano como patologia” (Miller, 1996-97, p.175-176). |
Assim, o resultado do uso do crack se encaixaria perfeitamente dentro do critério lacaniano de toxicomania patológica. Dessa forma, localizamos o uso do crack como um fator que viabiliza o movimento de separação do sujeito com o social e o Outro. Geralmente, os sujeitos, nomeados crackeiros, chegam facilmente à situação de dejeto. Em geral, eles rejeitam e se afastam do Outro e das relações sociais, tornando-se cada vez mais desenraizados.
Tal gozo rompe com a possibilidade de relação sexual e carrega o sujeito para uma posição de resto que sustenta este gozo inscrito na dinâmica do excesso. Na eleição do crack pelo sujeito, propomos que há uma busca da dimensão autoerótica do gozo, que, por sua vez, passa a alimentar os sujeitos, os separam radicalmente do Outro, da função de mediação da linguagem e do amor.
Seguindo ainda a particularização das drogas, o uso da cocaína, para Miller (1996-97), pode ser traduzido como um sintoma da alienação do sujeito, sendo uma droga que facilita a inscrição no campo do Outro. Localizamos nessa vertente alienatória também a eleição do álcool realizada por alguns sujeitos. Miller trata ainda da heroína, porém sabemos que o uso dessa droga não é significativo na realidade de nosso país. Apesar disso, entendemos que os efeitos relatados por ele podem ser deslocados para o uso do crack, conforme apontamos acima.
A partir dessas proposições, o presente artigo pretende ainda retomar uma proposição freudiana a respeito da relação entre a satisfação tóxica e a satisfação sexual. Desde Freud, nos deparamos com a teorização de que há na satisfação tóxica um prazer que pode prescindir do Outro sexo. Este autor, em seu artigo “A tendência à depreciação do amor” (1912), exemplifica que os grandes alcoólatras mantêm uma relação de amor com a bebida a mais próxima possível da fidelidade e da harmonia, constituindo, assim, um modelo de casamento feliz. Podemos aferir ainda que quanto mais se entrega à satisfação tóxica, mais o sujeito se distancia da satisfação sexual.
Sendo assim, a partir da lógica da clínica da sexuação, propomos ainda que a toxicomania funda a busca pelo casamento rigorosamente feliz com um parceiro silencioso, pois se põe de lado a mulher que fala demais ou o homem que fala de menos, queixas que demarcam classicamente as posições sexuadas.
Para finalizar, propomos ainda que a direção do tratamento nos casos de toxicomania deva estar orientada em aplacar a dimensão autística do sintoma que esvazia a dimensão do desejo e insere os sujeitos em uma relação cínica com o gozo.
“O que isso quer dizer? Que há uma parte do gozo do Um, o gozo autístico, que está agarrado no Outro e é capturado pela língua e pela cultura, tornando-se, em razão disso, manipulável. [...] Do lado do Outro, há como mandíbulas que captam uma parte do gozo autístico; é a significação da castração. A verdade da castração é que precisamos passar pelo Outro para gozar e deixar de gozar com o Outro” (Miller, 1996-97, p. 181). |
Vinhetas clínicas
CASO H.
H. é um rapaz de 31 anos que começou a usar drogas aos 12 anos de idade, sendo que nos últimos cinco anos fez o uso do crack. Passou dois anos preso em função do tráfico e roubo. Chega à instituição no momento em que decide parar de usar drogas. Relata em sua história que seu pai foi traficante e havia passado pela prisão também. Conta que começou a fumar maconha com o seu pai, apesar de achar isso “esquisito”. Hoje, o pai parou de usar drogas e passou a cobrar essa mesma posição do filho. Segundo H., “o pai arrumou uma mulher e sossegou”. Ao chegar à instituição, H. já estava frequentando uma igreja evangélica e passou a coordenar um grupo de jovens. Diante da doença do avô, ele tem uma recaída, mas consegue simbolizar que sente medo de perder o avô paterno, figura de grande importância em sua vida. Depois desse momento, não acontecem mais recaídas, mas H. precisa ser amparado em momentos em que se sente em dificuldades. Uma dessas dificuldades surge quando ele vai receber a primeira parcela do seguro desemprego e tem medo de usar o dinheiro para comprar drogas. Diante disso, surge a pergunta da analista: “o que você acha que um homem faz com seu dinheiro?”. Essa pergunta o situa e ele compra roupas novas, pois havia vendido as suas para comprar drogas e convida uma garota para sair. Quando fala do futuro profissional, localiza na família vários tios policiais, uma mãe trabalhadora e uma irmã honesta. Começa a pensar em fazer curso para trabalhar como segurança, como a irmã. No entanto, os conflitos entre os valores da igreja e a possibilidade de ter uma mulher o assombram e a analista necessita constantemente orientar H. quanto às questões viris e mediar a relação com a religião. Na igreja, passa a desenvolver um projeto para ajudar adolescentes que querem parar de usar drogas. Em conjunto com um colega, desenvolve uma camiseta com os seguintes dizeres: “crack, tire essa pedra do seu caminho”. Junto com a camiseta, ele busca uma parceria com uma clínica de recuperação para dependentes químicos para realizar trabalhos de aconselhamento. Começa a falar de outro projeto: fazer um teatro sobre sua vida. Porém, na condução do caso paira a pergunta: será que H. conseguirá realizar outro projeto – o projeto do pai (pére-version): “arrumar uma mulher e sossegar”?
CASO C.
C. é uma mulher com 41 anos, que surtou aos 29 anos. As mortes de dois irmãos e o nascimento da filha fizeram eclodir vozes e alucinações. No momento do nascimento da filha, descobre que é soropositiva. Ela trabalhava como técnica de enfermagem em um hospital psiquiátrico da cidade e é aposentada por invalidez devido ao transtorno psiquiátrico. C. passa a se drogar com cocaína e álcool. Além disso, ela frequentemente diz não tomar os antiretrovirais e ingere cartelas de remédios psiquiátricos na tentativa de “fazer besteiras”. O pai de C. foi também um paciente psiquiátrico que passou por várias internações e faleceu dentro de um hospital para doentes mentais. Segundo ela, ele foi um pai muito bom e sua mãe – sua “coroa” – gostava muito dele, mas o casamento não deu certo devido às crises dele. Hoje, C. apresenta um discurso delirante no qual justifica suas ausências aos atendimentos com o fato de ter sido internada. Liga para a analista com frequência para dizer que está saindo de uma internação porque tomou remédios ou porque “quebrou tudo em casa”. No entanto, esses fatos não correspondem à realidade. Diz que não usa mais cocaína e que toma umas cervejinhas nos finais de semana. Comparece a alguns atendimentos com o odor de álcool, mas sempre nega ter ingerido a substância. Em um de seus momentos de “crise”, ela chega à instituição visivelmente embriagada e frente à pergunta do que havia acontecido com ela, responde: “eu tomei um sossega leão – Haldol com Fernergan”. Apesar de sua tentativa de “enganar”, ficamos com o significante “sossega leão” e a equipe passa a se perguntar se o álcool tem o lugar de invenção para seus momentos de angústia.
CASO A.
A. é um homem de 45 anos que usa drogas desde a adolescência. Iniciou o consumo como forma de lidar com uma timidez excessiva e se inserir com um grupo de meninos na escola. De lá em diante, utilizou vários tipos de drogas e passou por incontáveis internações em clínicas especializadas. Há cerca de cinco anos, passou a fumar o crack. Para ele, o amor a essa droga vai além do amor à vida, pois apresenta um quadro clínico complicado, devido à conjunção do enfisema pulmonar e da hepatite C. Não consegue realizar os tratamentos médicos em função do uso de drogas. É casado e tem dois filhos homens. Passa poucos dias sem o crack e consome a droga sozinho na garagem ou na sala de casa. Em uma de suas internações, procura pela analista e relata que reiniciou o uso depois de uma conversa “pesada” com a mãe. Revela que ela, pela primeira vez, falou abertamente com ele sobre a desconfiança de que seu pai mantém relacionamentos homossexuais. A. diz que sempre teve essa mesma desconfiança e passa a relatar o “casamento de fachada” dos pais e o fato de que “o pai sempre está acompanhado com um amigo”. A analista aponta que ele faz como o pai e que seu amigo tem nome: o crack. Ele se surpreende e reconhece sua dificuldade em se apresentar de forma viril e assumir compromissos com sua esposa e seus filhos. Nesse momento, segue, então, interessado nessa elaboração de sua parceria nessa partida inconsciente.
Referências bibliográficas
FREUD, S. (1912) Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1970, vol. 11, p. 159-173.
LACAN, J. (1972-73) O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
LACAN, J. (1975) Journées de l’Ecole Freudienne de Paris des 12 et 13 avril 1975. Disponível em: http://www.causefreudienne.net/uploads/document/68fe1630d6300182104367a76cd2d7b4.pdf. Acesso em: 01/04/2012.
MILLER, J.-A. (1996-97) A teoria do parceiro, in Escola Brasileira de Psicanálise (org.). Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000, p. 152-207.
SANTIAGO, J. (2001) A droga do toxicômano: uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
Resumos
Use off crack and the addictions as an anti-love.
Are there new symptoms and pathologies? To answer this question that occurs to us through the impasses in psychoanalytic practice today, we chose to approach the addiction. From the experience in the institution of applied psychoanalysis, the addiction was approached as a pathology of the subject of the present age in which it dispenses with the ideals and fixes in the relation to the object a. The addict enjoyment is treated in this article as a sign of autism contemporary enjoyment. Jacques-Alain Miller described the addiction enjoyment as an anti-love. We developed in this paper, that the relationship with the drug is to search for a strictly happy marriage with a silent partner. Even with this author, it was possible to distinguish the effects of these drugs and their effects in relation to the significants of the Other. Thus, analyzing especially the crack as the drug that causes a movement of separation from the Other, that we can, with Lacan, name the pathological addict enjoyment.
Keywords: psychoanalysis, addiction, enjoyment, symptom, love.
Le “crack” et les toxicomanies comme un “anti-amour”.
Y a t-il des nouveaux symptômes et pathologies? Pour répondre à cette question qui se présente à nous à travers les impasses dans la pratique psychanalytique d'aujourd'hui, on a choisi d’aborder la toxicomanie. De l'expérience dans l'établissement de la psychanalyse appliquée, la toxicomanie a été traitée comme une pathologie propre au sujet de l’époque qui dispense les idéaux et se fixe dans le rapport à l'objet a. La jouissance toxicomane est traitée dans cet article comme un signe de l'autisme contemporain de la jouissance. Jacques Alain-Miller a décrit la jouissance de la toxicomanie comme un anti-amour. Nous avons développé dans le présent article, que la relation avec la drogue est la recherche pour un mariage heureux avec un partenaire silencieux. Avec ce même auteur, il était possible de distinguer les drogues et ses impacts en relation avec les signifiants de l'Autre. Ainsi, analysant en particulier le crackcomme une drogue qui provoque le mouvement de séparation de l'Autre, nous pouvons, avec Lacan, le nommer comme la jouissance toxicomane pathologique.
Mots-clés: psychanalyse, toxicomanie, jouissance, symptôme, amour.
Citacão/Citation: RODRIGUES, P.M. O uso do crack e as toxicomanias como um anti-amor. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 12, mai. a out. 2011. Disponível em www.isepol.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 22/03/2011 / 03/22/2011.
Aceito/Accepted: 05/07/2011 / 07/05/2011.
Copyright: © 2011 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.
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