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O desejo pelo parceiro-máquina
The desire for a partner-machine
Le désir d'un partenaire-machine



Erly Alexandrino da Silva Neto
Psicanalista
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ
erlyneto@gmail.com

 

Resenha do livro:
MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro: Zorge Zahar. 1999, 117 p.


Perspectivas do Seminário 5 de Lacan é um livro de 117 páginas, que resulta de um seminário ministrado por Jacques-Alain Miller em Barcelona no ano de 1998. É um livro curto – com mais de uma década de idade e de pequeno porte – cuja facilidade de manuseio é inspiradora. Seu contexto pretérito não o faz menos imprescindível neste momento da psicanálise lacaniana. O texto funciona como uma espécie de pórtico dourado de entrada na psicanálise de Lacan justamente pelo clima alegre e esperançoso que se estabelece ao se entrar nela na perspectiva do novo. Explico: se a experiência clínica psicanalítica nos coloca às voltas com o mesmo, com o automatismo da repetição e nos empurra para o working through - a reelaboração - Lacan encontra na estrutura do Witz a possibilidade do novo, de algo novo no dizer.

É não só uma entrada na psicanálise lacaniana pela alegria da possibilidade do novo como é a entrada no "ano maravilhoso" dela: o ano do seminário sobre As formações do inconsciente (1957-58). Ano em que Lacan consegue formalizar e estruturar a lógica significante de tal maneira que ela possa responder aos problemas cruciais da psicanálise. O Witz, os lapsos, os sonhos, os acting outs, as fantasias, a regressão, a transferência: todas estas formações puderam ser reduzidas, com sucesso operativo, à sua lógica significante.

Esse sucesso inaudito na redução dos fenômenos clínicos a uma lógica, a uma estrutura, faz surgir um entusiasmo no seio do lacanismo que possibilitou, neste mesmo ano, o surgimento de escritos centrais no ensino de Lacan: “A instância da letra no inconsciente”, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”, “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” e “A significação do falo”, dentre outros, são exemplos da fertilidade fruto deste entusiasmo. Não apenas são numerosos os trabalhos desse período, como são escritos portadores de uma consistência capital - no sentido mais imprescindível que uma capita pode assumir para um corpo - no campo da psicanálise de Lacan. São mesmo os escritos que podemos dizer constituintes de um momento clássico do lacanismo, fundadores de um ponto de vista, dito, clássico justamente por, ao se evocar a imagem mais difundida da psicanálise lacaniana é a eles que se reporta.

Desta feita, embarcar pelas perspectivas que nos são apresentadas durante esta leitura não é enveredar-se por vielas ou trilhas inexploradas da psicanálise, mas se deparar com a "via romana" mesma da psicanálise, onde um pequeno lampejo de esclarecimento ressoa como um enorme clarão retumbante.

Miller nos mostra que, para conseguir alçar vôo do terreno pantanoso no qual a psicanálise se encontrava, Lacan busca referências na lingüística e na antropologia estrutural, se alojando no que chama de um pequeno promontório conceitual neológico. Isso lhe permitiu abordar a experiência analítica não pelo viés da satisfação do gozo infantil, tal qual o fez Freud, mas pelo da insatisfação própria da linguagem, pelo que, na própria estrutura da linguagem, se mantém insatisfeito e busca se satisfazer no Outro simbólico enquanto lugar da linguagem.

Esse Outro que Lacan trabalha para estabelecer aqui, nos diz Miller, é o Outro abstrato da linguagem, do algoritmo, o lugar do simbólico que seria o parceiro-máquina do sujeito, no qual o sujeito do significante buscaria a única satisfação possível de ser atingida na linguagem: a do reconhecimento do próprio horizonte de seu desejo, presente em sua enunciação, pelo Outro. Segundo Miller, Lacan sonha encontrar esse Outro universal da linguagem, capaz de reconhecer e sancionar as formações neológicas do sujeito. Mas aqui se estabelece uma tensão: o único Outro capaz de reconhecer uma mensagem inédita ao código é o Outro próximo, "da paróquia", um Outro vivo e desejante e não o Outro universal do matema, deixando-nos na falta quanto à possibilidade de existência de um parceiro-máquina. Só temos o parceiro-sintoma.

Ainda que haja tensão entre o Outro universal e o Outro da paróquia (parceiro-máquina e, grosso modo, parceiro-sintoma), Lacan segue construindo o grafo do desejo, que nada mais é do que o estabelecimento da estrutura da linguagem tomada enquanto real, ou seja, da estrutura da relação do sujeito com o Outro. Esta construção, Miller nos diz, dá suporte a pelo menos duas empreitadas em Lacan: a própria criação de um Outro da psicanálise, de uma instituição psicanalítica, que possa reconhecer e sancionar o seu ensino, bem como a do estabelecimento da estrutura de funcionamento do ideal do eu como um significante neológico que surge a partir do terceiro tempo do Édipo e que poderia organizar a subjetivação do sujeito sob o signo do novo, da invenção. O sanção para ambos os neologismos - o ensino de Lacan e o advento do ideal do eu - viria através do recurso ao significante do Nome-do-pai, significante do Outro no Outro, que confere ao Outro sua autonomia em relação à Lei.

Após situar-nos em relação a essa construção de Lacan, Miller nos conduzirá à aplicação dela na análise de temas da literatura espanhola, nos três tempos do Édipo – exemplificados com a perversão de André Gide - e numa inestimável elucidação da estrutura do desejo histérico e obsessivo. Tudo isso conta com a sua astúcia corriqueira ao lidar com a topologia e os matemas de Lacan, nos demonstrando com as letrinhas e os esquemas a passagem das fórmulas imaginárias para o simbólico, o que é outra das grandes empresas deste seminário.

Por outro lado, e este é o motivo pelo qual se faz importante resgatar este livro de mais de uma década, é uma visada do período maravilhoso da clínica do significante que se encontra diretamente articulada às elaborações recentes de Miller sobre o “finalíssimo ensino de Lacan”1. Segundo Miller, este ensino é muito mais obscuro e, mesmo, pessimista quanto à eficácia miraculosa do significante diante das coisas com as quais nos debatemos - cegos como morcegos, por vezes - na prática pedregosa da clínica psicanalítica, no que, ao tempo que nos sentimos tentados pela suntuosidade do templo que se desvela, após a passagem pelo pórtico dourado há um Miller desagradável que nos gralha: "mas não se deixem levar pelos olhos, os ídolos são de barro", o Outro da fala não existe, há apenas o outro de fato.

Nesta guia, então, ao fim de seu livro, vemos uma exposição organizada em forma de debate que nos conduz a discussões muito mais atuais na psicanálise sob a luz grandiosa de seus momentos áureos. Essa exposição nos permite ver com clareza não só o desenvolvimento que o lacanismo clássico passou ao longo de mais de duas décadas como também nos situa em um lugar privilegiado de retroação que nos permite ler o Lacan eufórico de sua invenção significante do ponto onde ele conclui seu ensino. Termino lhes deixando com palavras de Miller que, creio, resumem bem este espírito:

"Expus o grande princípio de Lacan no Seminário. Diante de uma pergunta vocês respondem: "é um significante". O que é a fantasia? Respondem que é um significante [...] O que é um acting out? [...] é um significante [...] O que é a regressão? [...] A regressão é um significante. [...] Lacan aplica essa idéia de forma sistemática e afortunadamente a uma série de dados. Por outra parte é a forma de atuar sistemática que lhe permite encontrar o que não é significante. Assim inventa o objeto a. É por poder dizer que tudo é significante que tropeça em algo que absolutamente não o é. Trata-se de algo que resiste, apesar da máquina trituradora. Há uma dimensão da experiência, um elemento, que não permite ser reduzido ao significante. Isso levou Lacan a postular que nem tudo é significante. Ou seja, diz "não" ao esforço que ele mesmo havia feito nesta direção" (Miller, 1999, p. 110-111).

 











Nota:

1- Este é o termo que Miller utiliza para se remeter aos seminários 24 - L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre, 25 - O momento de concluir, 26 - A topologia e o tempo e 27 - Dissolução. Usa o termo ultimíssimo ou finalíssimo para se referir a este momento do ensino de Lacan não só pela cronologia mas pelo teor das proposições do mestre que, segundo Miller, destrói muito de seu próprio esforço teórico anterior e se diz não lacaniano.