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A clínica psicanalítica em instituições públicas de saúde

Claudia Maria de Sousa Palma

Psicóloga
Psicanalista
Doutora em Saúde Mental pela F.M.U.S.P/ Campus Ribeirão Preto
Pós-Doutora pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da UNICAMP
Profa. Adjunta do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina / PR
E-mail: cacaupalma@gmail.com

Resumo

Considerando a inserção da clínica psicanalítica no âmbito da saúde pública, o artigo problematiza os desdobramentos da não relação psicanálise-instituição, apontando para uma aproximação possível entre os dois campos. A partir das formulações freudianas sobre os desdobramentos, no coletivo, do caráter de exceção e do laço necessário entre pulsão e civilização, o trabalho propõe uma interlocução necessária entre psicanálise e instituição;assim, a especificidade do discurso analítico e as elaborações lacanianas sobre o gozo, bem como o lugar de ideal da instituição poderiam, numa perspectiva inclusiva, se somarem ao tratamento dos sintomas atuais.

Palavras-chave: clínica psicanalítica; instituição de saúde pública; psicanálise em instituição de saúde.

 

Psychoanalytic clinic in public healthcare institutions

Considering the practice of psychoanalytic clinic in public healthcare context, this article debates the repercussions of the non-relation between psychoanalysis and institution and tries to identify possibilities of approximation between these two fields. Based on freudian conceptualizations about the collective reverberations of the exception character and the required bound between civilization and drive, this work proposes a necessary dialogue between psychoanalysis and institution. In this inclusive perspective, the specificities of psychoanalytical discourse and Lacanian theorization about jouissance could articulate with the institutional expectations to contribute to contemporary symptoms treatment.

Key words: psychoanalytic clinic, public healthcare institutions, psychoanalysis and healthcare institutions.

 

La clinique psychanalytique dans des institutions publiques de santé

Considérant l’insertion de la clinique psychanalytique dans le domaine de la santé publique, l’article met en question les dédoublements de l’absence du rapport psychanalyse-institution, faisant le point pour l’approche possible entre ces deux champs. A partir des formulations freudiennes sur les dédoublements, dans le collectif, du caractère d’exception et du lien nécessaire entre pulsion et civilization, le travail propose une interlocution essentielle entre psychanalyse et institution; la spécificité du discours analytique et les formulations de Lacan sur la jouissance, ainsi que le lieu idéal de l’institution pourraient, par le biais de l’inclusion, s’ajouter au traitement des symptomes actuels.

Mot clés: clinique psychanalytique; institution de santé publique; psychanalyse dans des institutions de santé.

 



A clínica psicanalítica é constituída por uma metapsicologia e uma prática de intervenção psíquica que hoje se encontram bastante difundidas no âmbito da saúde pública, em seus diferentes níveis: primário (centros de saúde), secundário (hospitais) e terciário (hospitais gerais com centros de formação).

Ainda que haja particularidades na configuração institucional, nos diferentes níveis, todos os Serviços de Saúde oferecidos pelo Estado preconizam um tratamento que visa à saúde física e mental. Em seu funcionamento, eles dispõem de critérios que pertencem à ética do serviço dos bens, como a cura e a intervenção pedagógica (Lebrun, 2009), em que se trata de fazer o sujeito entrar na ordem estabelecida ao custo do silêncio dos elementos tramados sob a incidência da pulsão de morte, do que não funciona segundo a ordem dirigida pela pulsão de vida.

Para tanto, a terapia ideal deve ser “rápida, confiável e não desagradável para o paciente” (Freud, 1917, p.524), aforisma médico que Freud resgata para situar a modalidade de tratamento cujo acento está na extirpação do sintoma, diferentemente da abordagem realizada na analítica. Essa, com Lacan, solicita do analista uma posição de responsabilidade; é a posição mais responsável de todas, posto que ao analista confia-se a operação de uma conversão ética radical, aquela que introduz o sujeito na ordem do desejo e dos avatares pulsionais, na direção de uma responsabilização por essa posição, de sujeito (Lacan, 1965). Ou seja, uma ética que convida a uma operação com o que “não funciona” em contraponto a uma intervenção orientada a ceifar o sintoma.

Nesse sentido, o presente artigo pretende problematizar os desdobramentos da não relação entre psicanálise e instituição. Aponta para uma aproximação possível dos dois campos, considerando a inserção da clínica psicanalítica no âmbito da saúde pública. Para tanto, parte de uma diferença radical: a psicanálise contempla o tratamento da singularidade (inclusão do in-desejado), do pulsional. Em contrapartida, os dispositivos institucionais têm em suas iniciativas uma abordagem universal do sintoma (exclusão do pulsional, vivido à margem), sustentada na tentativa de objetificação e submissão do“pathos” à ordem da coletividade.

Apoiando-se nas formulações freudianas (1916) sobre os desdobramentos no coletivo do caráter de exceção e do laço necessário entre pulsão e civilização, o texto a seguir aponta para uma interlocução necessária entre psicanálise e instituição, em que a especificidade do discurso analítico e o lugar de ideal da instituição podem, em interlocução, somar suas abordagens ao tratamento das configurações clínicas atuais.

No que tange à clientela dos serviços, sobressaem configurações clínicas que apresentam uma forma peculiar de ordenação da satisfação pulsional, em que o sintoma falha na sua função primeva de enlaçar o sujeito ao Outro. Como consequência, há a promoção de manifestações sintomáticas –anorexias, toxicomanias, respostas psicossomáticas – em que o risco eminente para o sujeito e para o grupo social não podem ser desprezados. Elas convocam a uma extração radical do sintoma e desafiam a metapsicologia e a clínica, mas também os dispositivos institucionais sustentados nos preceitos reguladores de saúde, que não conseguem regular um modo de vida em que se destaca uma invasão pulsional. Isso denota uma condição limite, onde sobressaem a desinserção afetiva e laboral.

Com efeito, a questão que aqui se apresenta concerne à inserção da clínica psicanalítica como modalidade de tratamento oferecida em instituições de saúde, considerando o atravessamento das demandas institucionais constituídas a partir de um trabalho entre vários (prática multiprofissional). Ou seja,os profissionais da saúde respondem a uma lógica de saúde cujo acento está em seguir os preceitos universais de qualidade de vida, os quais tendem a se opor à invasão pulsional, orientadora da clínica analítica.

Como desdobramento, seria possível estabelecer elementos de interlocução entre o discurso psicanalítico e o institucional? Como formalizar a especificidade de um tratamento, cuja operação incide sobre um sujeito, em conformidade com o desejo que o habita, sem transformar a clínica psicanalítica numa modalidade de oposição às práticas higienistas?

I - O campo psicanalítico no cenário institucional

Ao tratar de alguns tipos de caráter encontrados na clínica,Freud destaca a condição de exceção na qual o paciente se reconhece com direitos e privilégios em relação aos demais, dado um passado sofrido e desprivilegiado. Considera ser essa a condição especial que justificaria o estado de exceção, ou seja, o privilégio de não se encontrar com situações desagradáveis que impliquem frustraçãoe mal-estar (Freud, 1916).

Na instituição não é pouco freqüente nos depararmos com uma posição de exceção para a psicanálise, no sentido de uma clínica que solicita o que os profissionais da saúde entendem como privilégios: atendimentos individuais previamente agendados, privacidade nos atendimentos, distanciamento da intervenção familiar, número significativamente menor de atendimentos, entre outros. Estes “privilégios”encontram sua justificativa nos fundamentos da psicanálise,que os toma como necessários ao encontro com a singularidade do sujeito. Contudo, são injustificáveis segundo os critérios institucionais de abordagem universal-cura do sintoma, em que sobressaem os dispositivos grupais e as atividades coletivas, orientadas por uma mesma finalidade interventiva, tais como abstinência para todos ou atividades lúdicas terapêuticas para todos.

Como conseqüência, um conflito se estabelece, pois a condição de exceção tende a despertar sentimentos hostis naqueles que convivem com as demandas de privilégio desse tipo de caráter.Freud,em 1916, sugere que a solução seja procurada:

“no fornecimento dos antecedentes secretos que despertem simpatia [...] e essa simpatia só pode basear-se na compreensão ou no sentimento de uma possível solidariedade [...] sentimento de solidariedade que compele nossa simpatia” (Freud, 1916,p.355).





Por conseguinte, a formalização dos elementos que justificam a diferença de princípios e procedimentos da clínica psicanalítica favoreceria o acolhimento da sua diferença. Trata-se de uma conclusão de certo modo simples, entretanto a especificidade do discurso psicanalítico promove dificuldades –ou, talvez, a impossibilidade?–relativas à “apreensão” dos “antecedentes secretos”.

Ao não se apresentar formalizada nem se diluir na estrutura institucional subsumindo-se aos códigos de conduta decorrentes de necessidades sociais básicas, a psicanálise na instituição pode se encontrar com uma posição de subversão ou mesmo de ejeção, destacando-se o passo de exclusão como um movimento facilmente dado (Lebrun, 2009). Nessa perspectiva, o desdobramento proposto por Freud no caráter de exceção se constitui como uma configuração possível à clínica desenvolvida em instituição, mas indesejável quando consideramos a ética analítica de abordagem à singularidade.

No que tange à operação analítica, ao ofertar a escuta e convidar o “mal-dito”à palavra operante, a clínica psicanalítica é qualificada de subversiva quando é cotejada com a perspectiva terapêutica das outras modalidades que compõem o campo terapêutico da saúde. Ou seja, os profissionais da saúde estão engajados em ofertar artifícios que ordenem o sujeito nos códigos de condutas sociais, nos quais ele possa se servir de meios para se distanciar o mais prontamente de situações conflitantes e/ou frustrantes, na exata medida em que essas situações lhe impeçam a operação sócio-afetiva e econômica preconizada pelo coletivo.

Como contraponto, a clínica psicanalítica opera com e na intensidade pulsional, em que as situações de frustração, desamparo e conflitos são enfrentamentos essenciais, pois é a partir do atravessamento da dificuldade em lidar com os aspectos afetivos, sociais e econômicos que um sujeito estabelece suas satisfações. Assim, a psicanálise subverte a perspectiva de silenciamento da angústia, preconizado por outras abordagens, que visam anulá-la seja por artifícios químicos, pedagógicos ou sociais. Com a psicanálise, é a partir do manejo com a angústia, formalizada no sintoma, e não de sua extração a priori, que o sujeito pode estabelecer formas de satisfação.

Ao dar voz ao mal-estar, a condição específica que justificaria a posição de exceção da psicanálise estaria, metaforicamente falando, como que no caminho, no percurso trilhado pela decisão de entrar nos desvios, nas ruelas, em meio à intenção de se delimitar a cidade. É uma perspectiva diferente da institucional que, na metáfora, aposta numa linha reta, desconsiderando que a cidade a ser delimitada está justamente no desenho geográfico do percurso.

Como então se manter nessa diferença, com a especificidade que ela contempla, sem confundir-se com o lugar de exceção que se recusa a conversar com a perspectiva higienista da equipe de saúde, ou com o lugar de reivindicação de uma condição especial na inserção na equipe?

I.1 A ordem institucional e o não-lugar da clínica psicanalítica

Em relação à ordem preconizada pela sociedade e por suas instituições, como via para a satisfação, Freud destaca, em 1930, que “os benefícios da ordem são incontestáveis. Ela capacita os homens a utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor proveito, conservando ao mesmo tempo as forças psíquicas deles” (Freud, 1930,p.100).

No mesmo trabalho, aponta que o termo “civilização” descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados e que servem a dois intuitos: o de proteger os seres humanos contra a natureza e o de ajustar seus relacionamentos mútuos. Todavia, ele também constata o equilíbrio precário que mantém o ser humano em uma civilização destinada a protegê-lo; e que, paradoxalmente, ele pode destruí-la.
Pelo fato de restringir as pulsões sexuais e agressivas dos indivíduos, com o objetivo de manter a coesão da sociedade, a civilização entra em conflito com seus membros tomados individualmente. Nestes, os benefícios oferecidos pela civilização - ao custo da não efetivação pulsional - tendem a promover uma condição de revolta e um movimento de destruição da ordem social.

Como se pode perceber, o texto freudiano guarda uma contemporaneidade significativa se tomamos o estado atual da sociedade pós-moderna. Entretanto,o que é acentuado aqui é a ausência de relação entre a civilização e a pulsão. Problematizamos as demandas singulares do individuo e as necessidades coletivas para destacar a impossibilidade de domínio pleno dos artifícios civilizatórios sobre as solicitações pulsionais e, também, a impossibilidade de vida humana sob a égide do domínio pulsional (Freud, 1930).Quando o horizonte é o estabelecimento da satisfação humana é preciso operar com ambas.

Com efeito, se no início do seu percurso teórico Freud acreditou na harmonia possível entre os registros do sujeito e do social, bem como na idéia que a psicanálise poderia oferecer uma resposta resolutiva ao mal-estar na civilização, em 1930 ele interroga tal possibilidade. Evidenciando a problemática do desamparo e a desarmonia inerente aos laços sociais do sujeito, considerou nesta ocasião os limites do tratamento simbólico da pulsão de morte.

Ainda nesse artigo, quando Freud discorre sobre a busca pela felicidade, ele a ancora em duas vias: a evitação de sofrimento e o encontro com o prazer.

“[...] essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado visa a uma ausência de sofrimento e desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra felicidade só se relaciona a esses últimos. Em conformidade com essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar um ou outro desses objetivos” (Freud, 1930,p.94).







Freud ressalta a desproporcionalidade entre ambas as vias. Isso se deve ao fato de que a própria constituição humana coloca obstáculos para a efetividade da felicidade pela via do prazer. O prazer implica uma descarga pulsional (pulsão de morte), logo requer a liberação (satisfação) de necessidades represadas em alto grau, daí sua manifestação episódica e repleta de vicissitudes. Já a infelicidade é muito mais predominante. Ela provém de três direções que ameaçam constantemente o homem: o próprio corpo, o mundo externo e o relacionamento com outros homens (Freud, 1930). Desse cenário, podemos retirar um movimento predominante pela busca de artifícios para evitação do sofrimento.

Os artifícios civilizatórios são produzidos para esse fim e a evitação do sofrimento ofertada como equivalente ao encontro com a felicidade. Tal perspectiva assume lugar predominante na ordem institucional, quando consideramos que a ordem espera curar o sofrimento, agindo sobre os comportamentos inadequados vinculados à saúde-doença. Nessa via, Freud nos adverte para o fato de que os métodos mais interessantes de evitação do sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo, posto que só sentimos o sofrimento como consequência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado (Freud, 1930).

Poderíamos até supor, a partir do supracitado, que os prescritores dos comportamentos vinculados à qualidade de vida apóiam-se na perspectiva freudiana quando essa destaca a relevância dos procedimentos reguladores do organismo para a evitação do sofrimento. Contudo, a constatação de Freud da presença de uma “tendência inata do organismo ao descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade em seu trabalho” (Freud, 1930,p.113) interroga a equivalência entre hábitos saudáveis e felicidade, uma vez que a satisfação articula-se a vazão dessa tendência pulsional refratária às abordagens comportamental-pedagógicas.

A partir de tal evidência, Freud propõe uma clínica em que o circuito pulsional se inclui como elemento determinante ao tratamento na medida em que a sua satisfação equivale à felicidade. Nessa via, lembra que a satisfação que se origina dos impulsos mais grosseiros e primários (pulsão de morte, destrutividade, culpabilidade, masoquismo primário), logo os mais distantes da ordem social, é a que convulsiona o ser físico, assumindo um valor determinante (Freud, 1930). Assim, o programa de tornar-se feliz assume várias possibilidades, disponibilizadas pelos artifícios civilizatórios para a aproximação de sua consecução, ainda que se considere o impossível de sua conclusão. Para tanto, pode-se conceder prioridades quer ao aspecto positivo do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer, lembrando que todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo ele pode encontrar os meios para fazer com o seu mais primitivo na direção do encontro com uma satisfação que se possa enlaçar com um amor e um trabalho, estabelecendo condições mais propícias ao viver.

Com efeito, esse trabalho propõe considerarmos a ordem institucional como estando representada pelas modalidades terapêuticas dos profissionais da saúde, que trabalham ancorados nos preceitos da qualidade de vida e da inibição das forças destrutivas da subjetividade. Logo, trata-se de uma oferta sob o aspecto negativo do objetivo de se alcançar a felicidade – evitar o sofrimento. Já a clínica psicanalítica é uma oferta de operação com o aspecto positivo, a operação com as demandas pulsionais.Portanto, são intervenções distintas. Mas o fato de que se dão sob vias diferentes não faz com que sejam excludentes. Ao contrário, elas se entrecruzam e sua operação simultânea pode ofertar recursos à efetividade do circuito do prazer, a partir da apropriação dos artifícios civilizatórios que sirvam ao sujeito, isto é, de uma experiência de satisfação que contemple uma parcela de segurança pela manutenção do vivente.

Para tanto, a clínica psicanalítica com Lacan, ao avançar sobre a intervenção no circuito pulsional, desloca-se de uma primazia do registro simbólico, em que os conflitos se produzem sob a égide dos ideais paternos, para uma equivalência entre os registros do real, do simbólico e do imaginário, em que a compulsão ao gozo convoca o desenvolvimento de manobras clínicas no sentido de possibilitar uma ação sobre a especificidade do circuito pulsional. Especificidade traduzida por Lacan no registro do real como um estatuto de registro sem lei, cito: “o verdadeiro real implica a ausência de lei. O real não tem ordem” (Lacan, 1976, p. 133). Contudo, não quer dizer que não haja uma lei regendo o gozo, mas que essa lei não opera pela incidência do Nome-do-pai, ou seja, ordenada pelos ideais, mas adquire sua consistência a partir dos imperativos dos objetos autoeróticos. Logo, o“além do princípio do prazer” se estabelece como um ordenador fundamental à constituição do sujeito, regendo um fazer desmedido que busca uma satisfação incompreensível, pois sem sentido, insistente e impossível de se atingir. Um fazer, portanto, que os ordenadores simbólicos regido pelos ideais, a priori não conseguem barrar.

Essa abordagem permite extrair um sentido às dificuldades terapêuticas dos profissionais da saúde com as chamadas patologias do real, configurações marcadas por uma desinserção social, isto é, uma condição de não resposta à ordem civilizatória e/ou aos prescritores que regulam a saúde.

Ao se propor a uma terapêutica específica e não especial, a clínica psicanalítica se deslocaria da posição de exceção, tal qual descrita por Freud, para um lugar de “ao menos um”, como proposto por Lacan a partir de seus estudos com a topologia e a lógica.

Lebrun (2009) apresenta alguns elementos da lógica e seu estudo dos paradoxos para situar o desdobramento do lugar de ao-menos-um para um conjunto. Considerando o conceito de consistência na perspectiva matemática, ou seja, como ausência de contradição lógica interna, aquilo que interroga a consistência deve ficar fora a fim, inclusive, de sustentar a própria consistência produzindo, assim, um conjunto incompleto, mas consistente; diferente da perspectiva de entrada do elemento inconsistente à lógica, cuja produção seria um conjunto completo, mas inconsistente.

Na atualidade o que temos, segundo o autor, é uma estruturação do laço social completa e inconsistente, um sistema em que todos os lugares estão em igual paridade, predominando a horizontalidade. Um sistema que teoricamente favorece as diferenças e se estabelece pelo semblante da rede. No entanto, um problema se coloca pela crença de uma suposta completude associada a uma condição de liberação de toda incompletude, de todo lugar diferente, de toda chefia.

Podemos constatar desdobramentos dessa condição na dinâmica institucional, a partir da dificuldade dos profissionais em estabelecer as responsabilidades individuais, diluídas na rede, como também da equipe; dificuldade em encontrar um modo de fazer que prescinda do mando de um e, paralelamente, encontrar um lugar de alteridade estabelecida na autoridade dos saberes e não no autoritarismo do poder.

Sobre a função de uma diferença no coletivo, Freud em “Totem e tabu” (1913) cria o mito do pai da horda primitiva, ancestral da civilização que goza de todas as mulheres, numa condição de diferença radical em relação aos outros membros da horda. O seu extermínio funda um laço social pactuado, ou seja, originado da assunção do bem grupal ao custo da interdição ao desvario da pulsão.

Já num outro texto freudiano clássico sobre a organização dos grupos sociais surge outro pai, o varão Moisés (Freud, 1939),que ocupa uma posição de exceção,com um passado coberto de dificuldades e desamparo, porém sem a solicitação dos privilégios que o caráter apresenta e, também, sem a desconsideração ao outro em prol de uma satisfação plena.

Ao contrário do pai da horda primeva, Moisés se depara com muito trabalho, dificuldades e frustrações na sua saga para libertar o povo judeu e fornecer-lhe suas leis e religião (Freud, 1939). Trata-se, portanto, de uma exceção que não solicita privilégios e distanciamento do mal-estar. Entretanto, como propõe Lebrun (2009)em sua análise sobre as duas modalidades paternas, Moisés funciona como um “ao menos um” que opera sobre um grupo, no caso organizando a identidade dos judeus. Logo, como aquele que estabelece um conjunto incompleto- Moisés não pertencia ao grupo dos judeus sendo, inclusive, um egípcio-,mas consistente.

O avanço da trajetória lacaniana também apresenta a passagem de uma figura paterna consistente –onipotente- para aquela de um ao-menos-um, cuja função é propiciar, a partir de sua diferença, de sua exterioridade, uma organização e não apenas uma única organização.Tal avanço apresenta a pluralidade dos Nomes-do-pai, em que:

“O pai fundador da lei desaparece em favor de um traço diferencial, de um ao-menos-um, daquele sobre quem podemos nos apoiar para que possamos formar um grupo. É preciso, com efeito, ao-menos-um elemento que seja identificado como exterior a um conjunto para que esse conjunto possa se constituir” (Lebrun, 2009,p.97).

 





Nessa vertente, a clínica psicanalítica ofertada na instituição, isto é, re-orientada pela clínica do real, convida o analista ao lugar que Lacan (1976), ao final de seu ensino, concebe como um sinthoma, isto é, um parceiro do sujeito na sustentação da crença no sintoma que traduz a particularidade do gozo. Ao operar desse lugar lógico, o analista, enquanto direção do tratamento,espera uma produção autoral do paciente sobre o mal-estar que o dirige ao Serviço. Um trabalho psíquico que possibilite a passagem de um estado de mal-estar paralizante para a experiência que solicita um fazer com o resto indecifrável. Resto que pode funcionar como o elemento (ao-menos-um) a oferecer a sustentação necessária à inserção de uma diferença no laço social.

Assim, se há um avanço metapsicológico sobre o inconsciente e suas formações, isso se desdobra numa reorientação da clínica, do sintoma como enigma decifrável ao sinthoma como resto indecifrável. Se para Freud, em análise terminável e interminável, o resto tangenciava um não resolvido da transferência, “uma pendência parcial” reveladora da impossibilidade de uma transformação completa, em que resíduos e fixações libidinais anteriores podem ser mantidos na configuração final (Freud, 1937, p. 261) promovendo, inclusive, um retorno à análise, como no caso do homem dos lobos; para Lacan, os restos não assumem a perspectiva de algo a ser inativado, ao contrário, compõem o mais fecundo na história humana.

A partir dessa perspectiva, não será esse o lugar –ao-menos-um- que também cabe ao analista frente ao conjunto dos profissionais da saúde? Lugar que se dirige para uma produção autoral do grupo que possa recolocar a pertinência dos dispositivos institucionais, não na direção de uma inativação do sintoma, mas ao tratamento “dos restos”, ou seja, na de uma operação com o mal-estar estrutural?

II - Os elementos que formalizam a clínica psicanalítica

II.1 - Sobre o dispositivo de tratamento


A clínica psicanalítica se configura num discurso específico, que para se constituir e operar requer um dispositivo. Do mesmo modo a subjetividade, sob a égide de determinada organização depende, com Freud, do ordenador edípico e, com Lacan, da inscrição do Nome-do-Pai, isto é, dispositivos que permitem uma determinada estrutura ao aparelho psíquico.

Dispositivo que encerra o que é relativo à disposição: prescreve, ordena, dispõe; um aparelho construído para se obter certo fim ou, ainda, assume o sentido de regra, norma, preceito (Houaiss e Villar, 2001).Sentidos do termo que, na perspectiva das condições para um tratamento psíquico, convergem para a idéia de enquadramento, portanto algo mais formal, descritivo, cuja função é instaurar um tratamento, no caso o tratamento psicanalítico em diferença a outras terapêuticas.

Entretanto, como precisa Barros, há uma diferença entre um dispositivo - ou enquadramento, que o Dicionário Internacional de Psicanálise definiu como "o dispositivo formal e contratual necessário para que se instaure a situação que caracteriza um tratamento psicanalítico, por oposição às outras formas de psicoterapia", e um discurso. Enquanto o dispositivo diz respeito às condições para a instituição do laço social, o discurso para Lacan é o próprio laço social: no caso da análise, enquanto o dispositivo analítico visa dar condições a que uma análise aconteça, o discurso é a própria análise em marcha (Barros, 2010).

Desde os primórdios da psicanálise, a estabilidade do dispositivo analítico tem sido um quase equivalente da estabilidade do lugar e da função do psicanalista. Ou seja, o respeito às formas do dispositivo determina os limites da função do analista, que por sua vez se apóia na função transcendente do Nome-do-Pai. É a partir desta função transcendente que Freud enumerou certa vez as várias figuras que pode encarnar o analista, segundo os avatares da transferência: pai, educador, mestre (Barros, 2010).

Este procedimento requer a presença consistente do significante do Nome-do-Pai, cuja função é ordenar e de certa forma estabilizar a linguagem através do corte que promove a queda do objeto a e a condição de separação do gozo do A, fundando a estruturação do inconsciente que responde ao dispositivo analítico do deciframento simbólico.Portanto um dispositivo que requer a presença de outro dispositivo (Nome-do-Pai) para produzir o resultado esperado: interpretação do inconsciente.

Quando o significante do Nome-do-Pai não opera (psicose) ou mesmo vacila (sintomas contemporâneos), o sujeito rejeita de certa forma a linguagem e, com ela, o inconsciente freudiano, não dando lugar para a metáfora e a metonímia; tornando, linguagem e inconsciente, inconsistentes (LaSagna, 2010). Por conseguinte, a invenção de dispositivo(s) que, possam ordenar e, de algum modo, incidir na inconstância tanto da linguagem como do inconsciente nesses casos, é convocada. Ou seja, nessas configurações clínicas o dispositivo de tratamento assume um valor ainda maior que o discurso, considerando o inconsciente na perspectiva da clínica do real.

Logo, não há discurso sem um ou vários dispositivos. Se um elemento coloca em risco um discurso, os dispositivos são interrogados (Barros, 2010), condição que concerne tanto a estruturação da subjetividade, como podemos observar com as novas configurações clínicas que nos convocam a interrogar a consistência da metáfora paterna, como ao enquadre clínico, a partir da diferença necessária de enquadramento ao tratamento das psicoses e dos chamados sintomas contemporâneos.

Como situa Barros, não se trata de reduzir o tratamento ao dispositivo, chamando a atenção para o cuidado com a burocratização do dispositivo (Barros, 2010), configuração que impossibilitaria a razão da própria existência do dispositivo para a psicanálise: encontro com o inusitado da demanda pulsional. Mas se trata de interrogarmos sobre a construção de dispositivos estáveis quando a função do pai vacila, dispositivos compatíveis com um discurso que se estrutura a partir de uma perda.

Com efeito, a clínica psicanalítica desenvolvida nas instituições de saúde rapidamente depara-se com esse fato: a necessidade de um dispositivo que viabilize o tratamento psicanalítico num contexto – clínico e institucional- que não aquele em que o discurso psicanalítico foi originalmente estabelecido e, também, não seja subsumido a finalidade dos artifícios institucionais, qual seja, extirpar o sintoma e tamponar a perda.

No que tange as terapêuticas propostas pelos profissionais da saúde, e ancoradas nos preceitos do discurso médico de cura, a terapia ideal comporta dispositivos que orientam uma intervenção breve, eficiente e indolor. Quanto mais rápida e eficaz, melhor para o paciente e para o Estado.Como desdobramento, torna-se evidente a necessidade de diferentes dispositivos clínicos para a consecução da clínica médica e da psicanalítica, posto que para a psicanálise não se trata de extirpar o sintoma, o que solicita um outro tempo, uma outra perspectiva de eficiência terapêutica e, também, uma necessidade de passagem pela dor.

II.2 -Sobre o método

A diferença na perspectiva da psicanálise leva Freud em 1917 a duas questões: as condições de um tratamento psicanalítico e os resultados que o método produz. O autor desaponta o leitor revelando que não irá abordar nenhum dos dois pontos, pois não é a intenção oferecer instruções práticas acerca de como efetuar uma psicanálise e, quanto aos resultados, Freud assinala que diversas razões o dissuadem a fazê-lo (Freud, 1917).

Interessante notarmos que as razões de Freud em 1917 ainda são utilizadas como posições para muitos profissionais que se propõem ao exercício da clínica psicanalítica no âmbito público. Ou seja, uma postura reticente frente a esses dois elementos: procedimento e resultado do método. Aspectos importantes à circunscrição do campo analítico na instituição.

Ainda sobre o procedimento na clínica, Freud no mesmo trabalho apresenta outro elemento importante à efetividade do tratamento, o valor das chamadas “condições favoráveis” aos casos de sucesso. Ele indica que a maior parte dos insucessos não foram devidos à falha do médico ou a escolha inadequada dos pacientes, mas sim as condições externas desfavoráveis, tratadas como resistências externas ao tratamento, como por exemplo a interferência de parentes.Essas resistências são emergentes das circunstâncias do paciente, de seu ambiente e, segundo o autor, são de pouco interesse teórico, mas de maior importância prática. Nesse momento, Freud traz como exemplo as condições de uma sala cirúrgica para o sucesso de uma cirurgia e interroga “[...] está-se precavido contra as resistências internas do paciente, que se sabe inevitáveis, mas como defender-se dessas resistências externas?” (Freud, 1917, p. 535).

Quanto à abordagem dos resultados de um tratamento analítico, o autor destaca fatores que influenciam os resultados como o milieu social do paciente ou mesmo cultural de sua família e que são inacessíveis ao analista. Também lembra que as estatísticas são carentes de valor se os itens nelas agrupados são por demais heterogêneos, como são os casos tomados em tratamento, impossíveis de comparação, em uma grande variedade de aspectos, o que impõe um limite significativo ao método psicanalítico quando avaliado por esses parâmetros.

No cenário da saúde se sobressaem elementos que cabem nessas considerações freudianas concernentes ao método e análise dos resultados, em que a falta das condições externas preconizadas para o sucesso da terapêutica, como privacidade, pagamento, divã, tempo prévio indeterminado, contrato analista-(instituição)-paciente, podem intervir como resistências externas que inviabilizam o tratamento analítico; assim como as condições sócio-culturais e econômicas de parte significativa dos pacientes que procuram o Serviço de saúde.

Nessa perspectiva, significativos trabalhos discutem a viabilidade da psicanálise em cenários distintos da criação original do método, apontando para a necessidade de novos dispositivos que favoreçam o estabelecimento do discurso psicanalítico.Tais estudos convergem para a pertinência do tratamento na instituição, apresentando as especificidades clínicas e os respectivos dispositivos criados como, por exemplo, o manejo de sessões por semana e horários (Figueiredo, 1997); o dispositivo de pagamento simbólico e recursos ao estabelecimento da privacidade em atendimentos em enfermarias (Moretto, 2001); ou ainda dispositivos –entrevistas de passagem- que pretendem intervir no tempo de tratamento e na contingência de mudança de profissionais no cenário da saúde, como forma de viabilização à clínica psicanalítica (Bueno e Pereira, 2002).

Com efeito, o campo de investigação desses trabalhos circunscreve-se à entrada da psicanálise no cenário institucional. São abordadas as particularidades que o cenário impõe e as propostas de solução para a efetivação de uma oferta de tratamento psicanalítico, no sentido de se criar condições ao tratamento de uma variação clínica que não podem prescindir de um reconhecimento no contexto da metapsicologia psicanalítica.

Ou seja, as condições de aplicação do método em novos contextos e os dispositivos para tal efetivação, bem como as inovações que a clínica solicita a metapsicologia, não devem alterar os princípios que regem a prática analítica na direção do que se espera de um tratamento.

Tal diferença no exercício da clínica, acrescida da condição de inserção no cenário institucional, o qual preconiza o uso de resultados tanto na organização do Serviço, quanto na política de contratação, solicita ao campo analítico um posicionamento. Ainda que não se possa utilizar os parâmetros estatísticos na avaliação de uma experiência com o dispositivo analítico, como já assinalado por Freud, a inserção institucional solicita alguma formalização dos efeitos de uma experiência com a psicanálise, se essa pretende se manter na instituição.

De outra forma, a posição de exceção no que tange a esse elemento –avaliação de resultados- pode produzir um desserviço à clínica psicanalítica ao restringir seu campo de intervenção. A partirda especificidade da clínica psicanalítica, uma posição de implicação com as diretrizes institucionais, ao contrário, convida à produção de dispositivos que possam formalizar a diferença do campo analítico às terapêuticas que respondem a modalidade avaliativa problema-solução. Tal perspectiva se alinha ao que Lacan interroga sobre a psicanálise:

“O que é uma práxis? Parece-me duvidoso que este termo possa ser considerado como impróprio no que concerne à psicanálise. É o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja, que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico. Que nisso ele encontre menos ou mais imaginário tem aqui valor apenas secundário”(Lacan, 1964, p.14).

 






II.3 - Sobre o que se espera de um tratamento


No mesmo seminário, Lacan resgata uma resposta de Picasso, quando indagado sobre os motivos de sua produção artística, no sentido de onde buscava inspiração. Lacan toma emprestada a resposta do pintor para qualificar sua prática enquanto analista, “eu não procuro, acho” (Lacan, 1964, p.14). Tal qual o pintor, o “acho” situa-se num encontro, não com algo esquecido, atrás, mas com um inusitado, novo, nomeado por Lacan de encontro com o real.

Encontro que se recobre, no instante posterior, de um simbólico: Picasso com sua produção artística, o neurótico com sua mesmice sintomática, o sujeito em análise, se diferencia com a produção de um significante e/ou de um ato, inaugural, no sentido de um antes e um depois. Quando um analista oferta o dispositivo da palavra e, através da transferência, promove a abertura do inconsciente, perpassando por todas as vicissitudes que tal trabalho impõe, espera causar no paciente uma outra forma de se haver com o real, da incompletude, da não-garantia, da frustração, da morte (Lacan,1964).

Com o tratamento pretende-se uma experiência subjetiva que cause um re-posicionamento no paciente frente à desordem de que se queixa; provenha essa das vicissitudes da existência, do próprio pensamento ou como conseqüência das dificuldades do sujeito em explorar a relação com o Outro. Espera-se uma nova orientação às decisões, aos atos e aos pensamentos, antes fixados em identificações mortificantes; portanto uma responsabilidade inédita, responsabilidade pelo modo de sofrer e de amar.

Para tanto, a operação com o sintoma é o campo do trabalho. Trabalho que Freud, no início de seu ensino, já delineava como complexo na medida em que não se restringia a uma suficiência de saber. Ou seja, a apreensão da doutrina freudiana pelos médicos e psiquiatras da época não era acompanhada pela aceitação do procedimento, cujo reconhecimento ainda não havia se estabelecido (Freud, 1905).

Como conseqüência dessa apropriação separada, encontramos incidências da teoria psicanalítica em diversos procedimentos clínicos que, inclusive, evidenciam contradições significativas aos fundamentos psicanalíticos como, por exemplo, a psicoterapia de orientação psicanalítica.

A especificidade da clínica psicanalítica, enquanto método de tratamento, está na operação com a trama sintomática, operação que não é simples de se estabelecer. Como destaca Freud: ”o instrumento anímico não é assim tão fácil de tocar” (Freud, 1905, p.245). Trata-se, portanto, de um trabalho que possa tocá-lo ou, mais precisamente a partir dos avanços de Lacan, que possa produzir a música que é possível ao instrumento tocar.

Nessa perspectiva, o avanço da orientação lacaniana sobre a concepção de sintoma possibilita a entrada da clínica lacaniana nas instituições, em que o exercício da psicanálise aplicada – com seus dispositivos - faz-se sob a égide dos princípios que regem a prática analítica, e sempre a partir de uma reflexão consistente sobre as condições de sua aplicação (Miller, 2001).

III - À guisa de conclusão: psicanálise e instituição

Considerando os desdobramentos da clínica psicanalítica para a instituição e as consequências dos dispositivos de tratamento ordenados pelos princípios reguladores da instituição à clínica psicanalítica, pergunto: como pode um analista, a partir da especificidade de sua clínica, contribuir no tratamento de pacientes que fazem uso dos dispositivos institucionais? E, ainda: a psicanálise praticada na instituição pode acrescentar algo à clínica psicanalítica?

Com a psicanálise, sob a perspectiva do inconsciente interpretável, o tratamento pode ser formalizado da seguinte forma: a ordem edípica, ao instalar o recurso simbólico permite ao analista, a partir da transferência, operar com o sujeito suposto saber e com a interpretação, a fim de se obter uma elaboração de saber que produza uma transformação dos sintomas e, como efeito sobre o real –o indizível-, uma modificação do gozo na direção de um resto que aglutina o singular de cada um.

Tal tratamento oferecido pela palavra converte a queixa numa demanda, enlaçando o indizível e dirigindo ao Outro a palavra que falta. Para tanto, requer a inscrição do Nome-do-pai enquanto um aparelho que permite recuperar o princípio do prazer, ou seja, um dispositivo que concerne à redução do gozo, a adequação e vinculação do significante e do significado (Palomera, 2010).

Um dispositivo que opera sob a incidência da palavra do Outro na direção de um descolamento da condição de assujeitamento ao Outro. Com Freud, a operação com a palavra é o dispositivo para o tratamento psíquico de todo neurótico. Entretanto, é um dispositivo que adquire consistência a partir da especificidade de uma fala que transmite o inusitado da experiência subjetiva singular, portanto não é uma operação com qualquer palavra, mas com aquela que porta a surpresa, o inesperado de um dizer sobre si. Ou seja, o dispositivo é universal, porém proveniente do particular, sublinhando-se sua incidência sobre o singular que aposta numa produção de efeitos sobre a satisfação pulsional.

Já na perspectiva dos dispositivos institucionais, uma das características do trabalho clínico ofertado em instituições públicas de saúde concerne à multiplicidade de dispositivos de tratamento(oficinas; atividades recreativas e laborais; grupos de acolhimento) ancorados numa perspectiva de cunho psicopedagógico.

A aplicação desses dispositivos não solicita especificidade do profissional, ou seja, as modalidades são ofertadas pelo conjunto de profissionais que compõem o Serviço de Saúde. Enquanto procedimento há um cardápio de opções a ser distribuído segundo a decisão da equipe, considerando a condição clínica do paciente, seus interesses e a disponibilidade de vagas dos dispositivos. Portanto, dispositivos construídos em anterioridade e “para todos”, cuja procedência está num universal que se dirige a uma experiência particular, no sentido da apropriação/uso do dispositivo.

Nessa vertente, os dispositivos pretendem oferecer um espaço para o sujeito se organizar psíquica e socialmente.O horizonte do trabalho é o desenvolvimento de habilidades e atitudes pertinentes ao estabelecimento de relacionamentos e de uma inserção laboral.

Com efeito, guardadas as diferenças entre a abordagem institucional e o dispositivo psicanalítico para o tratamento daquilo que não funciona na vida de um sujeito, ambos têm um acento importante no valor atribuído ao Outro como veículo do tratamento. Assim, as experiências com oficinas ou grupos terapêuticos, ao trazerem à cena um Outro que aprova (ou desaprova); ao buscarem a restituição das funções de síntese, organização e produção pela via da inflação dos aspectos identificatórios, ancorando-se em preceitos e modelos, trazem à cena da vida elementos “concretos” que acabam por acionar aspectos pulsionais.Esses se mostram relevantes ao trabalho do analista que, ao seguir a direção contrária, de desconstrução, subtração, promove uma outra condição à experiência com os dispositivos. Assim, a clínica psicanalítica pode beneficiar o sujeito neurótico ao servir-se dos dispositivos institucionais, e, também, pode ser beneficiada pelas experiências do sujeito com os artifícios institucionais.

Entretanto o dispositivo de abordagem ao sintoma ancorado no Outro encontra seu limite no que Freud formaliza como o masoquismo primordial e a pulsão de morte, isto é, um circuito não subsumido ao Outro, sem sentido e não simbolizável. Como conseqüência, aparece em Freud uma disjunção entre o inconsciente e a pulsão, entre o descobrimento do sentido que desfaz o sintoma e a permanência do gozo que o mantém (Kruger, 1998). O avanço de Lacan está em incluir a determinação significante em um circuito mais vasto, onde o gozo e a castração se encontrem implicados (Gorostiza,1998).

Tal constatação, sobretudo clínica, em função da fixidez, padecimento, resistência e inércia do sintoma, traz à cena a relação do sujeito com o gozo, em que o sintoma ascende como um modo de gozo, para além do princípio do prazer, ou da condição de engendrar-se a uma significação operante no sintoma, de engendrar-se ao campo do Outro. Como resultante, aparece um movimento autoerótico, onde o sujeito prescinde do Outro, estabelecendo-se um modo de gozo autístico.

Esse funcionamento denuncia a ausência da metáfora como instrumento que barra o gozo. Assim, o limite a utilização do pensamento e do A, como vias à consistência, convoca o corpo como instrumento na obtenção de uma consistência. Por conseguinte, a identificação não se dá com o A – como na neurose- levando o sujeito a gozar com outro corpo, mas com o corpo próprio, em que se destaca uma manifestação errática no corpo, pois a única consistência do falasser –inconsciente real - é o corpo.

Com efeito, o tratamento analítico, nessa perspectiva, propõe-se a um saber-fazer com o próprio corpo e com a incidência do circuito do gozo na vida do sujeito. Ou seja, um deslocamento dos dispositivos fundantes, mas não dos princípios. Como conseqüência da operação com o próprio gozo, o sujeito pode servir-se do laço social.
Eis o campo da pulsão – inconsciente real - constituído em anterioridade ao campo que solicita interpretação, de onde deriva a impossibilidade da pulsão se dizer. Portanto, a re-orientação da clínica do real concerne na sua diferença a uma clínica que busca o sentido, o verdadeiro.

Com Lacan só é verdadeiro o que tem um sentido, sendo que o verdadeiro sobre o real é que o real não tem sentido algum e se encontra nos emaranhados do verdadeiro (Lacan, 1975,p.83). Do lado da verdade tem-se o prazer, diferentemente do lado do real que comporta o masoquismo, tomado como o ápice do gozo dado pelo real (Lacan, 1975, p.76).

Desse modo, se no tratamento freudiano o paciente era despertado por um saber que promovia prazer; com Lacan o que se espera é a modificação da relação do sujeito com seu gozo, com uma subtração de saber em prol de uma responsabilização. A ética da responsabilidade concerne aos efeitos, às consequências de um ato ou pensamento, pressupondo uma aposta e uma responsabilidade pelos riscos.

Esse avanço estabelece, por um lado, um campo clínico para a psicanálise nas instituições. Principalmente quando consideramos as dificuldades no tratamento das configurações clínicas mergulhadas na incidência da pulsão de morte, isto é, configurações que não apresentam recursos psíquicos para o aproveitamento imediato dos dispositivos institucionais. Mas, por outro lado, estabelece um campo delicado de interlocução com as modalidades de intervenção sustentadas no saber e na verdade.

Tomando a primeira direção, se o sentido não se constitui como um dispositivo ese o pensamento rateia frente ao real do gozo, podemos dizer que a psicanálise encontra elementos importantes para justificar os limites contundentes dos dispositivos institucionais, apoiados na lógica do sentido. Limites aplicáveis ao tratamento das patologias do real, quando a finalidade é ordenar o caos em que o sujeito se encontra, a partir de dispositivos que acionam o pensamento pela viado bem que é regido pelo coletivo.

Do mesmo modo que o dispositivo de palavra, estabelecido por Freud, não opera com a maioria dos pacientes recebidos nos diferentes Serviços de Saúde – toxicômanos, anoréxicos, melancólicos, psicossomáticos -, posto que esses não contam com o aparelhamento “decidido” do dispositivo do Nome-do-Pai ao manejo do gozo e do Outro.

Os dispositivos institucionais com sua efetividade marcadamente reduzida nessas configurações predominando, em muitos casos, o retorno ainda mais contundente do “pior”, isto é, um recrudescimento significativo dos sintomas ao invés da esperada solução, propõe a política de redução de danos em contraponto à política da cura, experimentada como impossível. Assim, nos casos de limite de funcionamento simbólico, torna-se necessário também uma re-orientação clínica na aplicação dos dispositivos institucionais.

Com efeito, a psicanálise assume um lugar relevante na medida em que dispõe de recursos para auxiliar o sujeito na apropriação de seu sintoma, visando um deslocamento do que se converteu em pathológico à sua fonte, pathos, e convidando o sujeito a uma operação cuja aposta, como precisa Vieira, é de que:

“seja possível manter vivo o real, tal como ele se apresenta na experiência analítica, feito da certeza de que há vida, mesmo na ausência de um sentido principal; de que é possível, pelo bom uso do resto, fazer desse gozo opaco que nos funda movimento e abertura ao encontro. É nossa chance de felicidade, disse Lacan (1974), já que, sem ele, a esperança é nada” (Vieira, 2008, p. 140).

 






Desse modo, o discurso analítico inaugura uma nova forma de tratar o pior ou a pulsão de morte, ou o “isso”, ou ainda o fator quantitativo da pulsão, essa coisa tão íntima, todavia descabida, que não cabe no Eu, no Ideal, na lei do Pai (Fingermann, 2003).

O avanço de Lacan a partir de 1970 reduz o sintoma não à elucubração do inconsciente, mas à realidade do inconsciente.Assim, de uma posição indicativa “do que não vai bem”, a concepção sobre o sintoma é re-orientada enquanto “do que permite ao sujeito fazer para a sua satisfação”, isto é, o sinthoma(Lacan,1976, p. 134). Para tanto, um trabalho deve ser efetuado, tarefa singular à qual cabe ao analista ofertar, acompanhar e consentir.

Essa perspectiva clínica ofertada em instituições públicas de saúde pode causar um horror, se consideramos a direção do tratamento dado ao pathos, em que a voz é dada ao singular;e, muitas vezes, além da voz, também o movimento, tumultuando as agendas e os corredores da instituição. Ela também pode criar novas condições que, ao subtraírem a exclusão do singular dos dispositivos institucionais,vêm se somar à efetividade de um tratamento que não mais polarizaria singular e universal. Sua proposta é a de constituir um espaço de experiência e construção do singular, balizado pelos dispositivos psicanalíticos, com os elementos da cultura veiculados pela instituição, numa perspectiva “unisingular”.

O avanço de Lacan, cujo desdobramento clínico surge nos dispositivos de tempo variável de sessão e do ato analítico - como recursos ao tratamento do que “não tem nome, nem nunca terá” -, apontam para a necessidade de uma plasticidade dos dispositivos institucionais, associada a uma inclusão da categoria do possível para cada sujeito.

Tal qual a re-orientação da clínica que não pode se distanciar dos seus fundamentos, a re-orientação dos dispositivos institucionais também não pode prescindir do que é seu fundamento: a lei, a coletividade, a manutenção do agrupamento social. A questão é como criar dispositivos que ofereçam a condição de que o sinthoma, singularidade do sujeito, seja o elemento,- e não o ideal, inoperante, - de inserção no coletivo. Portanto, uma aposta na condição de que os dispositivos institucionais, concomitantes à intervenção analítica com a especificidade que porta seu discurso, possam intervir na direção de uma apropriação da solução singular produzida pelo sujeito.

E, ao operar nessa via, ainda, como precisamente interroga Coelho dos Santos: como levar em conta a singularidade sem reforçar a ideologia dos direitos de ser tratado como exceção? (Coelho dos Santos, 2010), não se deve desviar da questão. Diretriz que concerne tanto a clínica psicanalítica quanto os dispositivos de tratamento ofertados pela instituição, quando consideramos os desdobramentos, para o sujeito e para o coletivo, do estabelecimento do caráter de exceção.

Ao invés de nos debruçarmos sobre os elementos que marcam a distância entre psicanálise e instituição, confluindo para a idéia de psicanálise ou instituição, esse trabalho propõe que se realize um exercício entre psicanálise e instituição. Desta forma, propõe a perspectiva de uma diferença que não se alinha com a exclusão, mas com a operação sobre ela, tal qual a clínica da atualidade nos convoca.

 

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Citacão/Citation: PALMA, C. M. S. A clínica psicanalítica em instituições públicas de saúde. RevistaaSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
28/04/2010 / 04/28/2010.

Aceito/Accepted:
14/07/2010 / 07/14/2010.

Copyright:
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