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A vizinhança e o mathema dos quatro discursos

José Luís Longo
Psicólogo
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Endereço eletrônico: josellongo@yahoo.com.br

 

Marta Regina de Leão D’Agord
Psicóloga
Psicanalista
Doutora em Psicologia
Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Endereço Eletrônico: mdagord@terra.com.br


Resumo


O artigo faz uma discussão sobre o mathema dos quatro discursos de Lacan, desde o ponto de vista de sua formulação e operação. Ao considerar os quatro discursos situados no projeto de ciência que Lacan pretendia à psicanálise, tem-se como objetivo abordar o mathema dos discursos por sua estrutura, ou seja, pelas leis que organizam a sua operação. Partindo da função fundamental do sujeito lacaniano, , chega-se aos elementos que compõem a estrutura matriz do mathema, o discurso do mestre, sendo essa uma estrutura que gira sobre outra estrutura, a dos lugares fixos do tetrápode. A seguir, num diálogo com a matemática (grupo de Klein) e a topologia (teoria dos grafos), analisa-se a operação um quarto de giro do mathema dos discursos. Conclui-se que a estrutura dos quatro discursos é topológica, homóloga a um grafo, sendo sua operação orientada.

Palavras-chave: psicanálise, quatro discursos, mathema, topologia, grupo de Klein
 

The neighbourhood and the mathema of four discourses

The article discusses Lacan´s four discourses mathema, by the point of view of its formulation and operation. Taking the four discourses into the science project Lacan intended for psychoanalysis, the aim is to make an approach to discourse’s mathema by its structure, in other words, by the laws which organize its operation. Starting from the fundamental function of lacanian´s subject, , the elements which compose the matrix structure of master´s discourse´s mathema are reached. This structure spins over another structure, the one of the tetrapodes fixed positions. Then, in a dialogue with maths (Klein group) and topology (graphs theory), the quarter spin operation of discourse´s mathema is analysed. The conclusion is that the four discourse’s structure is topological, homologous to a graph, whose operation is oriented.

Key words: psychoanalysis, four discourses, mathema, topology, Klein group.

 

Le voisinage et le mathéme des quatre discours

Cet article traite du mathème des quatre discours de Lacan a travers l’analyse de sa formulation et de son opération. Par la considération des quatre discours situés dans le projet scientifique de lacan pour la psychanalyse, nous envisageons approcher le mathème des discours par sa structure, c’est à dire, par les lois qui organisent son opération. En partant de la fonction fondamentale du sujet lacanien, , on arrive aux élélents qui composent la matrice du mathème, le discours du maitre, structure qui tourne par dessus une autre structure, celle des emplacements fixés du tétrapode. Ensuite, dans un dialogue avec les mathématiques (groupe de Klein) et la topologie (théorie des graphes) on analysera l’opération de quart de tour du matheme des discours. En conclusion, la structure des quatre discours est topologique, homologue a un graphe, et son opération est orientée.

Mot clés : psychanalyse, quatre discours, mathème, topologie, groupe de Klein

 


Introdução

A descoberta freudiana foi antes a função do inconsciente do que o inconsciente. Ora, função é um conceito matemático que designa uma operação de um elemento sobre outro elemento qualquer. Entre dois elementos está uma operação de transformação, tal como um significante em relação a outro significante faz operar um saber no qual está implicado um sujeito.

Se Freud dialogava com a neurologia, era porque encontrava na articulação e na trama neuronal um suporte, uma ferramenta. Caberá a Lacan encontrar outra ferramenta, a articulação significante. Os quatro discursos são uma das realizações mais acabadas que o uso da ferramenta articulação significante permitiu a Lacan: um “discurso sem fala” (un discours sans parole) ou mathema, isto é, o que é passível de transmissão escrita ou o que pode ser universalmente lido.

Um discurso sem fala corresponde ao nível mais radical da articulação significante, cuja estrutura lógica mínima (sintaxe) é constituída por:

  1. Diferença: nada fundamenta a função do significante senão ele ser uma diferença absoluta;

  2. Repetição: os significantes funcionam numa articulação repetitiva.

É articulando a sintaxe da estrutura do significante com a série de Fibonacci, na qual a reunião de dois termos precedentes constitui o terceiro, que Lacan se propõe a interrogar a função do inconsciente. Se há função, há uma operação, uma transformação de uma verdade que não sabe de si (sintoma), à verdade com um saber a mais (o efeito do discurso analítico). Pois é a partir do que foi tomado do Outro que está a verdade.

O que é saber? Saber não é o que se aprende, mas o que se produz como um clarão. Essa expressão é assim exemplificada por Lacan: “quando alguém lhes apresenta coisas que são significantes e isso não lhes diz nada e vem um momento em que vocês se libertam, e de repente aquilo quer dizer alguma coisa” (Lacan, 1968-69, p.196).
O efeito de transformação por operação da função do inconsciente é a mudança de posição do saber: de saber com a verdade em relação a qual ele falta como saber à verdade como saber a mais.

É assim que Lacan inicia a formalização dos quatro discursos com cinco posições, a quinta é o efeito, a nomeação do discurso, no caso, o discurso analítico como a verdade com saber a mais. E aqui já pressupõe o trabalho penoso de análise. Por isso o título do Seminário 16: de um Outro ao outro (Lacan, 1968-1969), isto é, da posição de alienação em que se encontrava o saber, à posição de verdade com um saber a mais.

Lacan, por diversas vezes em sua obra, fala da experiência analítica como um recurso fundamental para seu processo de elaboração, descoberta, invenção. Dessa experiência, ele não estava isento:

“Pelo efeito de fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achará seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável metonímia da fala. O efeito de linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da experiência analítica, de que o sujeito só é sujeito por ser assujeitamento ao campo do Outro, o sujeito provém de seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro” (Lacan, 1964, p. 178).

 







O que temos então na experiência analítica é o encontro com essa divisão, a sujeição ao campo do Outro. É na experiência de análise que se pode passar ao discurso do psicanalista, um discurso onde, no lugar da verdade, está o saber, ou, mais precisamente, um saber. O artigo indefinido diz respeito à abertura de sentido: não encontramos o sentido, mas produzimos um, que, por algum tempo, tem efeito de verdade.

Lacan (1964) explica que a fundação do sujeito se dá por uma operação de união, que ele prefere chamar por um nome mais sugestivo: alienação. Trata-se da alienação do ser, ou, mais precisamente, do falasser1, ao Outro.

“A alienação consiste nesse vel que – se a palavra ­condenado não suscita objeções da parte de vocês, eu a retomo – condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise” (Lacan, 1964, p. 199).

 

 

 



Portanto, é com a alienação ao Outro que se torna possível o saber. No discurso do psicanalista, essa alienação é saber, qualquer verdade não é mais que efeito, ou seja, não está garantida por um lastro de realidade que possa ser desvelado com o processo de análise. Lacan desamarra o par significante/significado, ou seja, não há nada embaixo da palavra. É com essa radical falta de lastro da realidade que Lacan articula ciência e psicanálise. Sobre isso, Iannini (2007) esclarece que: “A pergunta propriamente lacaniana não é 'que condições a psicanálise deve satisfazer para se transformar numa ciência?', mas, ao contrário, 'o que é uma ciência que inclua a psicanálise?'” (Iannini, 2007, p.74). Lacan claramente descarta que a psicanálise poderia estar na ciência empírica:

“Essa noção [de ciência verdadeira] se degradou, como se sabe, na inversão positivista que, colocando as ciências do homem no coroamento do edifício das ciências experimentais, na verdade as subordinou a estas. Essa noção provém de uma visão errônea da história da ciência, baseada no prestígio de um desenvolvimento especializado dos experimentos” (Lacan, 1998a, p. 285).







Portanto, em psicanálise, não é possível uma experimentação, como nas ciências empíricas, na realidade, que garanta ou retifique a teoria. Justamente porque a experiência que conta na psicanálise é a experiência analítica, a qual, por sua vez, não oferece garantias da realidade, ou seja, por debaixo da fala não há nada.

No Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964), há uma pergunta de F. Wahl: “A topologia, para o senhor [para Lacan], é um método de descoberta ou de exposição?” (Lacan, 1964, p. 89). Lacan responde: “É o referenciamento da topologia própria à nossa experiência de analista que pode ser retomada depois na perspectiva metafísica” (Lacan, 1964, p. 89). Na tradução para o português, o termo referenciamento, crucial para entender esta passagem, torna a resposta vaga, não explicitando o posicionamento de Lacan frente ao questionamento de Wahl. Por isso, recorremos à mesma passagem, na edição francesa: “C'est le repérage de la topologie propre  à notre expérience d’analyste.” (1973, p. 84). De nossa livre tradução a essa passagem: de repérage, temos que Lacan responde que ele usa a topologia como uma demarcação da própria experiência, ou seja, é a topologia que demarca a experiência, e não a experiência que demarca a topologia. Mas essa topologia é própria à experiência psicanalítica. Triska, sobre essa passagem da obra de Lacan, diz:


“O manejo da topologia (cortar, desenhar, colar) pode ser um método de exposição, mas, para Lacan tal abstração serve principalmente de método de pesquisa, de exploração do Real do psiquismo. Lidar com a topologia das superfícies, segundo as convenções estabelecidas pela mesma, é um contato com o próprio Real; não uma teoria sobre o Real, mas seu próprio tecido estrutural. [...] A referência topológica não será compreendida como metafórica. Isso pode ser entendido se concordarmos que a topologia de Lacan não serve para significar uma outra coisa” (Triska, 2010, p. 53).










O que fica claro é que a descoberta se dá ao fazer operar as regras da topologia. Assim, se Lacan descarta a ciência empírica para um diálogo com a psicanálise, ele recorre à lógica e à matemática como campos nos quais a psicanálise faz suas descobertas. É dessa forma que Lacan (1969-70), posiciona-se frente à escrita dos discursos:
“Nesse nível de estrutura significante, só temos que conhecer a maneira pela qual isso [o mathema dos discursos] opera. Assim, temos a liberdade de ver no que dá isso se escrevermos as coisas dando a todo o sistema um quarto de giro.” (Lacan, 1969-70, p. 12).

Lacan, conhecendo como opera, faz operar – no caso dos discursos, a operação é o quarto de giro – para descobrir como fica após a operação; ou seja, no nível de estrutura significante é operar a própria estrutura que viabiliza “ver no que dá”. Considerando isso, este trabalho se propõe a um estudo sobre o mathema dos discursos, buscando entender as regras que organizam o seu funcionamento, a fim de, a partir disso, poder operá-lo.



A estrutura dos discursos


No Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan apresenta a estrutura dos quatro discursos. Essa estrutura conta com quatro lugares (agente, verdade, trabalho e produção), e por isso Lacan a chama de quadrípode. A disposição desses lugares é a seguinte (Lacan, 1969-70, p. 179):

Durante o Seminário Je parle aux murs, Lacan (1971-72) retomou a estrutura dos discursos, destacando que cada um desses lugares é fixo porque é um vértice. Lacan distribui, nestes quatro lugares, quatro elementos, S1 (significante mestre), S2 (saber), a (objeto a ou mais-de-gozar) e $ (sujeito dividido).  Os quatro elementos têm uma ordenação que não varia, equivalente à permutação circular na teoria dos grupos (Darmon, 2008). Dada a estrutura de quatro lugares fixos, sobre os quais se permutam circularmente os quatro elementos, Lacan escreve os quatro discursos: o do mestre, da histérica, do analista e do universitário (Lacan, 1969-70, p. 72):



Lacan descreve assim essa estrutura:

“A cadeia, a sucessão de letras dessa álgebra, não pode ser desarrumada, ao nos dedicarmos à operação de quarto de giro, iremos obter quatro estruturas, não mais, das quais a primeira lhes mostra de algum modo o ponto de partida. [...] um aparelho que [...] está inscrito naquilo que funciona como a realidade do discurso que já está no mundo e que o sustenta, pelo menos aquele que conhecemos. Não apenas já está inscrito, como faz parte de seus pilares. O que importa é a inscrição da cadeia simbólica, isto basta para que algo das relações constantes se manifeste” (Lacan, 1969-70, p. 13).










É da realidade do discurso que já está no mundo que Lacan constrói seus discursos, e nessa realidade há um vértice divergente onde está situada a verdade. Eidelsztein nos oferece a seguinte análise dessa questão:

“Primeramente, si se acepta que la verdad es una dimensión introducida en lo real por  la palabra, hay que aceptar que toda palabra verdadera es mentirosa debido a que siendo que ella parece referirse a lo real, no hace otra cosa que oponerse y entramarse con otras palabras. Secundariamente, toda palabra es mentirosa en tanto que toda palabra verdadera, para postularse como verdadera, debe decir de sí misma que no es mentirosa, lo mismo que toda palabra mentirosa. [...] Éste es el problema: como la verdad es una dimensión introducida en lo real por la palabra, es la palabra misma que debe garantizar la verdad [...]. Con lo cual no hay palabra que pueda evitar los efectos de la falta de verdad de la verdad” (Eidelsztein, 2008, p. 34). 












Assim, o que ocorre é que S1 está sempre entre S2 e $; S2 está sempre entre S1 e a; a está sempre entre S2 e $; essa ordem, como diz Lacan, não se altera. Temos, então, uma segunda estrutura, a de quatro letras, que “gira” sobre a primeira, de quatro lugares. Essa estrutura fixa já estava no esquema Z:


Nesse esquema, Lacan (1998b) propõe uma forma de relação do sujeito com a ordem simbólica e com o imaginário. S se dirige a a, imaginando estar em a’, contando com a alteridade radical do tesouro dos significantes. O que se passa é que na constituição de um falasser, um Outro ocupa o lugar de A.

O sujeito lacaniano, $, fica entre S, a, a’ e A. É esse sujeito que fica entre e que está alienado ao Outro que ocupa o lugar de A que salientamos aqui a fim de entender o mathema dos quatro discursos. É importante considerar a diferença entre “alienado a um Outro” e “alienado ao Outro”.  No caso de “um Outro”, está em jogo um significante S2 que representa o Outro para um S1. No caso de “o Outro”, trata-se do Outro como tesouro de significantes

Retomando os discursos. Encontramos, no andar superior do mathema do discurso do mestre, a relação . Essa relação Lacan refere como:

“relação fundamental, aquela que defini como sendo a de um significante com um outro significante. Donde resulta a emergência disso que chamamos sujeito – em virtude do significante que, no caso, funciona como representando esse sujeito junto a um outro significante” (Lacan, 1969-70, p. 11).








Portanto, há que se considerar que a escrita dos mathemas dos discursos parte desta relação fundamental , que a relação da emergência de um sujeito, como mostra o esquema Z, requer um Outro que ocupe o lugar de A, e a esse Outro se está alienado.

O que temos então é que a incidência de S1 em S2 funda o sujeito. É importante ressaltar que S2 é o significante que representa frente a S1 a bateria de significantes, S2, S3, S4, Sn. A ordenação que encontramos na representação de S2, a saber, 2, 3, 4, n, mais do que indicar que há mais coisas além de S2, mostra que existe uma ordenação na bateria de significantes. Ou seja, apresenta-se assim porque há, no campo do Outro, um ordenamento.  Lacan coloca o campo do Outro como homólogo ao mercado, este último concernido à teoria da mais-valia de Marx: “É preciso supor que no campo do Outro existe o mercado, que totaliza os méritos, os valores, que garante a organização das escolhas, das preferências, e que implica uma estrutura ordinal, ou até cardinal.” (Lacan, 1968-69, p. 18).

Se considerarmos isso, ao dizer que S1 incide em S2, fundando o sujeito, é dito também que S1 necessariamente incide em uma estrutura, e, por isso, por ser estrutura, tem suas regras às quais não é possível escapar. Ou seja, “o pensamento não é regulável a meu bel-prazer, acrescentemos ou não o infelizmente. Ele é regulado.” (Lacan, 1968-69, p. 13). Por esse ponto de vista, do sujeito estar na relação fundamental , ou seja, estruturado, Lacan chama a atenção para o fato de não existir, nesse nível, o que chamamos de transgressão:

“O que a análise mostra [...] é precisamente isto, não se transgride nada. Entrar de fininho não é transgredir. Ver uma porta entreaberta não é transpô-la. [...] não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do gozo – um bônus” (Lacan, 1969-70, p. 18)

 





O S1 incidir no campo do Outro, na bateria de significantes, é o que inaugura o sujeito nessas regras, nessa estrutura que é o saber, e com isso podemos considerar que desde o início está dada uma perda: é impossível fugir dessa regulação, de estar alienado a algo que não é ele mesmo, ao saber no campo do Outro. Lacan (1968-69), recorrendo à homologia da mais-valia, diz que nas leis do mercado, o sujeito do valor de troca é representado perante o sujeito do valor de uso, e que nessa brecha, estaria o que Marx chama de mais-valia, uma diferença que não se pode mais ser resgatada do mercado, uma perda. Na interpretação de Lacan: “Existe um valor não remunerado naquilo que aparece como fruto do trabalho, porque o preço verdadeiro desse fruto está em seu valor de uso. Esse trabalho não remunerado, embora pago de maneira justa em relação à consistência do mercado no funcionamento do sujeito capitalista, é a mais-valia.” (Lacan, 1968-1969, p. 37).

O correlato disso, no nível do sujeito na psicanálise, consiste em que, ao incidir S1 em S2:

“[o sujeito] Já não é idêntico a si mesmo, daí por diante, o sujeito não goza mais. Perde-se alguma coisa que se chama o mais-de-gozar. Ele é estritamente correlato à entrada em jogo do que determina, a partir de então, tudo o que acontece com o pensamento” (Lacan, 1968-69, p. 21).

 




Lacan é explícito quanto ao caráter determinado do pensamento, que nessa determinação perde-se algo que não mais pode ser resgatado. No entanto, há que se relativizar que o sujeito deixe de gozar a partir do instante em que essa relação fundamental se estabelece. É impossível que ao se dar o o sujeito deixe de gozar, simplesmente porque não há sujeito antes disso. Em Ulisses, de James Joyce, o personagem Stephen Dedalus faz uma observação sobre Adão: “Antes da queda, Adão trepava, mas não gozava” (Joyce, 1983, pág. 60). Joyce remete à vida no paraíso, em que o mais-de-gozar não operaria, e, portanto, nada seria perdido. Evidentemente, não passa de um tempo mítico. Assim é o tempo de antes de , mítico. A perda – o mais-de-gozar –, o sujeito ($) e a incidência de S1 em S2 () são sincrônicos, ou seja, o paraíso surge quando o sujeito já está fora dele. 

Magno (2007) recorre à expressão na língua francesa: plus de jouir, que comportaria duas traduções em certo sentido antagônicas: gozar a mais ou falta a gozar: temos o objeto paradoxal, porque causa o desejo, pede gozo a mais e, como cadente, é gozo a menos: exatamente o a diferente de si mesmo.

Há, portanto, algo que está perdido, o gozo completo do paraíso mítico, mas justamente por poder perdê-lo se ganha o gozo parcial, ainda que falte a gozar, o que Magno chama de bônus:

“Uma vez que falta-a-gozar, é preciso um movimento, pois não há trabalho a não ser na ordem significante em função do mais-gozar. A natureza não trabalha, ela é. Nós não somos, faltamos a ser. Então há mais trabalho, mais movimentos nas cadeias significantes, em função do mais-gozar: querer gozar mais e ficar na falta a gozar. Esta é a mais-valia de Marx.” (Magno, 2007, p. 87)








A operação implica uma diferença entre o sujeito e seu representante, S1, uma vez que é impossível ao sujeito estar reunido naquilo que lhe representa, o significante. Nesse sentido, Lacan (1968-69), na lição Da mais-valia ao mais-de-gozar, menciona o mito do eu falo. É mitológico não por conta do falo, mas pelo eu. Gilson (1994) faz uma relação de equivalência entre (1) a irrecuperabilidade do sentido como um irrecuperável do gozo e (2) um saber que me escapa, um saber do Inconsciente.

O tropeço, o irrecuperável do gozo, não concerne ao mitológico eu falo, porque nele quem fala não é o eu, que, acreditando no mito, tenta dominar aquilo que fala. Esse eu, segundo Lacan encontra consistência no Outro, o campo de S2: “Que é o Outro? É o campo da verdade que defini como sendo o lugar em que o discurso do sujeito ganharia consistência, e onde ele se coloca para se oferecer a ser ou não refutado” (Lacan, 1968-69, p. 24).

Essa verdade é a verdade do sentido, aquela que tenta garantir o sentido do enunciado. Não passa de uma tentativa de fazer-se um, ou seja, de tentar circunscrever o sujeito – que é sempre entre dois – ao significante mestre. Apesar de ingênua, essa tentativa de consistência do eu é, segundo Lacan, necessária:

“O que ocorre é que é preciso que alguma coisa anuncie o sujeito antes de ele se agarrar ao um Outro. Essa alguma coisa está aí na condição mais simples, a do mesmo um unário a que, na hipótese estrita, reduzimos aquilo a que ele pode se agarrar no campo do Outro” (Lacan, 1968-69, p. 351).

 




Por essa necessidade Lacan inicia o mathema dos discursos com o discurso do mestre, em que parte da relação fundamental , na qual opera necessariamente o mais-de-gozar, e também na qual é impossível ao sujeito deixar de estar dividido.

Lacan, portanto, parte do discurso do mestre porque nele está escrita a relação fundamental
() da qual o sujeito ($) e mais-de-gozar (a) são efeitos.

Podemos considerar então o discurso do mestre como a matriz dos discursos. Se considerarmos que é isso que está na lógica que organiza a segunda estrutura (a estrutura dos elementos que gira sobre a estrutura fixa dos lugares), podemos inferir que não é possível uma alteração na ordem dos elementos; não seria possível, por exemplo, que no andar superior estivesse uma relação , tampouco que S1 e S2 não estivessem em vizinhança, simplesmente porque o sujeito é fundado por .

Acompanhando o desenrolar da formulação do mathema por Lacan, encontramos que é dessa matriz, S1 incidindo em S2, tendo como efeito $ e a – que se forma a estrutura de elementos que por sua vez gira sobre uma outra estrutura, a dos lugares fixos – que Lacan formula os lugares do tetrápode. Portanto, Lacan vai dos elementos aos lugares, não dos lugares aos elementos. Isso situa a estrutura dos elementos como uma função que resulta na outra estrutura, a dos quatro lugares: agente, verdade, trabalho e produção. Os lugares são, então, decorrências da forma como opera a estrutura de elementos no discurso do mestre: uma tentativa de reunir-se no significante que lhe representa (S1), ou seja, de garantir o sentido do enunciado, uma fala sem lapsos, ou, como brinca Lacan (2008): “um corpo que obedece” (p. 354). Essa tentativa é de ocultar a verdade, que na verdade o corpo não obedece, e que a fala tem percalços, ou seja, que não é possível circunscrever o sujeito ao seu significante-mestre, ele está dividido entre S1 e S2. O lugar da verdade, então é o lugar do elemento $. O saber, no campo do Outro, estruturado que é, tem suas regras, sendo impossível o gozo sem que se produza o mais-de-gozar – que é ao mesmo tempo falta-a-gozar e gozar-a-mais. Daí o lugar de produção. S2 trabalha, a serviço de S1, é pelo saber que se tenta a primazia do sentido do enunciado, dando consistência ao eu falo; disso depreende-se o lugar de trabalho – aquele que trabalha –, e do agente – aquele que agencia quem trabalha.

O giro dos elementos – um transformação topológica

Considerando que 1) no mathema dos discursos há uma estrutura fixa, a dos lugares, sobre a qual gira uma segunda estrutura, a dos elementos, e 2) considerando também que o discurso do mestre é de onde se parte para os demais discursos, pode haver um giro levógiro, à esquerda, ou um giro dextrógiro, à direita. Se os elementos forem girados em um quarto de volta, no sentido dextrógiro, passa-se do discurso do mestre ao discurso da histérica. Se for realizada novamente essa operação, passa-se do discurso da histérica ao discurso do analista. No entanto, se do discurso do mestre, o giro dos elementos for levógiro, passa-se ao discurso universitário.

A passagem de um discurso ao outro, no sentido levógiro ou dextrógiro, é referida por Lacan em diversos momentos de sua obra como “giro”. No entanto, o mathema dos discursos deixa claro que não há de fato um movimento que inicia em um ponto, percorre uma distância e termina em outro ponto, tal como os ponteiros de um relógio analógico.

Lacan apresenta o grupo de Klein partindo de três operações, a, b e c. O que Lacan (1966-67) diz sobre essas operações, é que elas são involutivas, ou seja, que se operar a duas vezes se tem ao final o estado inicial, o mesmo valendo para b e c. Assim, aa=0, bb=0, cc=0. Além disso, as operações também se caracterizam por ab=c, ac=b e bc=a. Se considerarmos o grupo de Klein como operações sobre os objetos, podemos usar como imagem duas formas (quadrado e círculo) e duas cores (preto e branco) como objetos sobre os quais operar a, b e c. As operações, nesse caso, seriam a=troca forma, b=troca a cor e c=troca cor e forma. Daí o que temos é a seguinte situação:

Figura 1: operações do grupo de Klein em cor e forma


As operações a, b, c não fazem uma transformação gradual; o quadrado branco operado com b não fica preto aos poucos até que chegue a ser completamente preto. Ao contrário, a mudança é instantânea. O mesmo ocorre com os discursos: a passagem de um discurso ao outro é discreta, e por isso ao passar de um discurso a outro, não há esmaecimento do discurso que se está abandonando, acompanhado pelo surgimento gradual do discurso ao qual se está passando. Caso se tratasse disso, haveria diferenças quantitativas durante essa passagem, e com isso poderíamos conceber que um discurso fosse mais psicanalítico ou menos psicanalítico. No entanto, pela maneira como opera o mathema, ou se está em um discurso, ou se está em outro, é uma questão qualitativa, não quantitativa. A oposição entre qualitativo e quantitativo tem lugar na obra de Lacan, mais abaixo retomamos este aspecto.

A imagem que ilustra as operações a, b e c do grupo de Klein alterando cor e/ou forma pode ser sugestiva para uma aproximação com os discursos: além das transformações discretas de um estado a outro, ambos chegam a quatro diferentes possibilidades, e ao serem desenhados, ambos ficam com quatro vértices (vide as figuras 2 e 5). No entanto, não se trata de uma homologia. No grupo de Klein, com uma única operação c se chega ao mesmo estado que se forem realizadas outras duas operações consecutivas, ab. Já no caso do dos discursos, os “giros” são sempre de um quarto de volta, ou seja, do discurso do mestre é impossível chegar com apenas uma transformação ao discurso do analista.

Logo, não há homologia entre o mathema dos quatro discursos e o grupo de Klein. Mas podemos encontrar uma homologia com um grafo orientado. Pois no mathema dos quatro discursos, as transformações são orientadas e o quarto de giro dos elementos sobre a estrutura dos vértices mostra quatro posições qualitativamente diferentes, quatro estados de um grafo, ou homologamente, quatro tempos de um percurso.

Ao optar pela topologia em detrimento do espaço euclidiano, Lacan se insere no âmbito das diferenças qualitativas, em vez das quantitativas. A topologia trabalha com as relações de vizinhança. As diferenças são qualitativas, isto é, aquelas marcadas pelas perdas de continuidade, ou seja, por alterações nas relações de vizinhança. Desconsidera-se a medida e a forma.

Assim, na topologia, um retângulo e uma figura amorfa, como nas figuras a seguir, apesar da diferença de formas e medidas, têm as mesmas propriedades qualitativas do ponto de vista topológico.


Isso ocorre porque o retângulo pode ser transformado na outra figura sem que se produza uma ruptura e sem que se modifique a vizinhança entre todos e quaisquer dos pontos da superfície. Se, em uma transformação, essas características são mantidas diz-se que se trata de uma transformação topológica (Alvarenga, s/d).

Retornando aos discursos. Considerando que 1) o mathema dos discursos não diz respeito a diferenças de forma ou de medidas, mas a diferenças qualitativas; 2) que a estrutura dos elementos (S1, S2, a e $)  tem sua ordem constante, mesmo na transformação de um discurso ao outro, ou seja, que essa estrutura mantém sempre sua relação de vizinhança, podemos afirmar que a maneira como opera o mathema dos discursos é topológica.

Assim, o mathema dos quatro discursos é homólogo a um grafo que está sendo percorrido, e cada discurso é um tempo (momento, estado) de um percurso. Não há uma mudança qualitativa entre os quatro estados, mas cada um deles está inserido em uma mesma estrutura, a estrutura da falta a ser do sujeito, como perda de gozo entre dois significantes.


Notas

  1. O neologismo falasser aparecerá, pela primeira vez, na lição de 17 de dezembro de 1974 do seminário inédito de Lacan RSI e, um ano depois, na conferência na Universidade de Columbia, “Le symptome”, publicada em Scilicet 6/7. Portanto, dez anos depois da concepção da operação de alienação inerente ao sujeito. O uso aqui de um termo que não havia sido cunhado por Lacan até então vem enfatizar que, quando nos referimos a sujeito, se trata de um ser que nasce na linguagem, ou seja, que não pode escapar à condição de não haver uma consistência do ser que não seja a materialidade da linguagem.


Referências bibliográficas

ALVARENGA, L. G. (s/d) Geometria & imagem. Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/11599747/Geometria-Imagem>. Acesso em: 15/07/2011.

DARMON, M. (2008) Ensayos acerca de la topología lacaniana. Buenos Aires: Letra Viva.

EIDELSZTEIN, A. (2008). Las estructuras clínicas a partir de Lacan. v. I. Buenos Aires: Letraviva.

GILSON, J. P. (1994) La topologie de Lacan : une articulation de la cure psychoanalytique. Montreal: Editions Balzac.

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Citacão/Citation:
LONGO, J.L.; D’AGORD, M.R.L. A vizinhança e o matema dos quatro discursos. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
03/04/2010 / 04/03/2010.

Aceito/Accepted:
15/07/2010 / 07/15/2010.

Copyright:
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