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A droga ou a vida

Analícea Calmon

Psicóloga
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Coordenadora do núcleo de investigação Psicanálise e Criança – Carrossel – do Instituto de Psicanálise da Bahia
Doutora em Teoria Psicanalítica / UFRJ
analicea@bol.com.br

 

Resumo

Entendemos que só é possível abordar o objeto droga no campo da psicanálise aceitando a sua (des)inserção no âmbito da relação conflituosa do sujeito com a realidade. Para Lacan, as relações que acontecem entre o simbólico e o imaginário, definidas como realidade, fundamentam o que a experiência psicanalítica chamou de laços, os quais promovem inserções e situam o sujeito como resposta do real. Um adolescente, que se enuncia como dependente químico em depressão, relata, sob transferência, um impasse entre duas aparentes relações de parceria: uma com a droga e outra com a vida. A posição de objeto, em alguns momentos assumida por este sujeito, bem como a sua relação com o objeto droga, serão examinadas e discutidas neste artigo, o que evidencia a possibilidade de uma aproximação da toxicomania com um trabalho que visa fazer chegar o bem-dizer ali onde impera o empuxo ao gozo.

Palavras-chave: psicanálise, droga, sujeito, objeto, ato, laço social.

 

Drugs or life

We take for granted that the only possible approach to the drug object in the field of psychoanalysis is by accepting its (dis)insertion in the scope of the conflicted relationship between subject and reality. According to Lacan, the relationships operating between the symbolic and the imaginary, defined as reality, establish what the psychoanalytical experience calls ties, which promotes insertions and places the subject as a response to the reality. A teenager, who defines himself as a depressed drug addict, described, under transference, an impass between two apparent partnership relations: one with the drug itself; the other one with life. The object’s standpoint, which in certain moments is assumed by this subject, as well as his relationship with the object drug, will be examined and discussed in this article, which brings about the possibility of leading the drug addiction problem closer to a task that aims to deliver the well-saying, right there where the drive for satisfaction reigns.

Key words: psychoanalysis, drug, subject, object, act, social tie.

 

La drogue ou la vie

Nous avons établi qu’il n’est possible d’approcher l’objet drogue  dans le champ psychanalytique qu’en acceptant sa (dés)insertion du contexte de la relation tourmentée du sujet avec  la réalité. Pour Lacan, les relations qui ont lieu entre le symbolique et l’imaginaire, réalité par convention, ont fondé ce que l’expérience psychanalytique a nommé liens, qui donnent lieu a des insertions et situent le sujet en tant que réponse du réel. Un adolescent qui s’annonce comme un toxicomane en dépression rapporte, sous l’effet du transfert, une impasse dans la relation entre ses deux partenaires possibles: la drogue ou la vie. La position d’objet prise en certains moments par ce sujet, autant que sa relation avec l’objet drogue seront examinées et discutées dans ce texte, mettant en évidence la possibilité d’une approche de la toxicomanie a un travail qui vise apporter le bien-dire là ou règne la pousse a la jouissance.

Mot clés: psychanalyse, drogue, sujet, objet, acte, lien social.

 



Para tratar da questão do ato no campo da psicanálise torna-se imprescindível iniciar com uma menção a seu termo na língua latina, agieren, proposto por Freud como ponto de partida para todas as modalidades de ato pensadas desde o início de sua elaboração. A palavra latina, que em nossa língua se traduz por agir, foi proposta para caracterizar o fato através do qual o sujeito experimenta as suas fantasias e desejos recalcados com um sentimento de atualidade tanto mais vivo quanto desconheça sua origem e seu caráter repetitivo. Esta foi a perspectiva que originou o conceito de atuação, formulado a partir da expressão acting out, de origem inglesa, pelo que se justifica esta menção especial, considerando que o que levou Freud a introduzir o conceito de ato no campo da linguagem foi justamente a incidência clínica da repetição, sob a forma de atuação, na transferência. Isto se deveu ao fato dele ter percebido, no cotidiano de sua clínica, atitudes ou enunciados repetitivos de seus pacientes, em lugar de recordações através da fala.

Duas tentativas de suicídio, relatadas sob transferência, nos remetem a uma revisita ao conceito de ato e suas respectivas modalidades no campo da psicanálise. Para tanto, será utilizada como referência a oscilação entre as posições de sujeito e objeto em um adolescente que, na primeira entrevista, se enuncia como um dependente químico em depressão. Se consideramos a toxicomania como uma das novas formas do sintoma, vemos através desse exemplo que esta não está fora do consultório de um analista, o que possibilita pensá-la como um efeito de discurso.

A posição de objeto, em alguns momentos assumida por este adolescente, será examinada e discutida neste artigo, bem como sua relação com o objeto droga, considerando que “a natureza plástica da relação do homem com os objetos de satisfação, [...] abre, sem dúvida, a possibilidade de uma aproximação analítica da toxicomania”. (Santiago, 2001, p. 29). Essa consideração parece útil para examinar as modalidades do ato que aqui nos interessam e suas respectivas repercussões em um trabalho clínico que visa fazer chegar o bem-dizer ali onde impera o empuxo ao gozo.

Sabemos que, no trabalho de transferência, a atuação é sempre sinal de que a condução do tratamento está sob impasse, o que evidencia um momento bastante delicado, já que esta substituição da palavra pelo ato revela uma “transferência selvagem” na medida em que toma o lugar de uma representação simbólica.

Nos dicionários da língua portuguesa, “impasse” significa uma situação difícil, da qual parece impossível haver uma saída favorável. É justamente isso que acontece no momento em que o discurso de um sujeito em análise se interrompe dando lugar a algum tipo de atuação, o que exige do analista uma intervenção conveniente.

No campo da psicanálise a palavra impasse é amplamente explorada. Por um lado porque se opõe ao passe, representando um obstáculo na direção do tratamento. Por outro lado, tal como vemos no Seminário 20, Lacan utiliza a expressão “impasse da formalização” para designar o único modo possível de inscrição do real (Lacan, 1972-73, p. 125).

Para falar de inscrição do real, Lacan emprega, no Seminário 19: ...ou pior,o modelo do discurso cujo conceito começou a ser desenvolvido em seu escrito de 1965, “A ciência e a verdade”, e depois em 1969, no Seminário 17: o avesso da psicanálise. Lacan formaliza matematicamente a conjugação dos quatro discursos (o do mestre, o da histérica, o da universidade e o do analista) ao modelo dos quantificadores lógicos que será usado no ano seguinte para falar da sexuação. Com estes instrumentos, Lacan nos ensina que o acesso ao real é o simbólico. Alguns argumentos a este respeito podem ser destacados na Lição 6 do Seminário 19. Um deles é que “nada toma sentido senão pelas relações de um discurso com um outro discurso” (1971-72, p. 76) porque “é proprio de um novo discurso renovar o que se perde no redemoinho dos discursos antigos, justamente o sentido” (idem, p. 79). Estas citações denotam um modo de dizer que os discursos fazem laço.

O discurso destacado entre os que foram citados, para tratar aquí da relação do simbólico com o real, é o do analista, no qual este, em posição de semblante de objeto (a), ocupa o lugar de agente e se dirige a um sujeito ($) que, estando em lugar do outro que trabalha, produz significantes (S1) para com estes construir um saber (S2) no lugar da verdade. E “quando um discurso como o discurso analítico emerge”, diz Lacan, o que ele propõe aos analistas “é ter pulso forte para sustentar o complô da verdade” (1971-72, p. 80). Porém os complôs da verdade, continua Lacan, não levam a nada. E não é por acaso que ele diz isso, pois ao mesmo tempo que fala das relações dos discursos, observa que existem coisas que constituem “o limite do que pode resistir ao avanço da articulação de um discurso” (idem, p. 81). A isso, que podemos entender como impasse de formalização, ele chamou de real e concluiu que todas essas relações e articulações de que falou, que acontecem no registro simbólico, são consideradas efeitos do real.

Este é o fundamento do que a experiência psicanalítica descobre no sentido das relações que chamou de laços, as quais promovem inserções e situam o sujeito como resposta do real. Foi dessa experiência que extraímos um impasse entre duas aparentes relações de parceria: uma com o objeto droga, que nada mais é que a resposta do consumo, e a outra com a existência, que não é outra coisa senão a consideração do sujeito como ser no nível de um furo. Digo aparentes parcerias porque o ato de se drogar, verdadeiramente, corresponde mais à solidão do que propriamente a uma parceria. De qualquer forma, quando o adolescente de quem estamos falando, percebe a incompatibilidade entre as “parcerias”, busca uma análise. Sabe-se que a relação com o objeto droga, por si só, implica uma gama de problemas que se refletem em nosso campo de trabalho, tanto do ponto de vista da insuficiência conceitual, quanto do ponto de vista do desafio operacional.

Em primeiro lugar é necessário considerar que, quando se fala dos objetos a na experiência analítica, se está tratando da presença do corpo no discurso do analisando. Isto não é diferente quando se trata do objeto droga, ainda que este seja extraído da cena do mundo. Se no campo da psicanálise a toxicomanía é considerada um efeito do discurso é porque a relação do sujeito com o consumo não tem o consumo como causa. A causa seria uma incógnita, sendo a droga uma resposta a esse lugar enigmático. Por estas razões se torna impossível conceber a droga como um mero objeto da realidade externa. Para argumentar este ponto de vista, podemos nos servir de uma citação de Lacan no Seminário 7, que é a seguinte:

“Temos aqui, da mesma forma, a noção de uma profunda subjetivação do mundo exterior – alguma coisa tria, criva de tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos em estado natural, espontâneo, de uma forma profundamente escolhida. O homem lida com peças escolhidas da realidade” (Lacan, 1959-60, p. 63).






Esta citação se complementa com o enunciado: “a droga do toxicômano atesta uma profunda subjetivação, já que sua realidade não é captada na manifestação espontânea de um objeto de necessidade mas sim na forma de uma escolha forçada” (Santiago, 2001, p. 27).

Este forçamento não é senão a troca de um regime de satisfação pulsional por um objeto real. Aquí está, portanto, o corpo, como uma espécie de objeto a, como lugar de incorporação desses objetos extraídos da cena do mundo. Estas considerações nos permitem entender um comentário de Miller (2005) sobre o Seminário 10, de Lacan, no qual está colocado que o objeto da angústia que se presentifica está identificado com órgãos do sujeito aparecendo como uma extração corporal na forma de substâncias episódicas. Estas substâncias episódicas são irredutíveis à simbolização, evidenciando assim o fracasso da metáfora paterna e receberam de Lacan a designação de aparelhos de gozo, que podemos compreender como produtos que se fazem de semblantes do objeto que falta e que são ao mesmo tempo produtores de gozo. Nesse sentido, são pouco suscetíveis de provocar uma demanda de tratamento, já que em princípio segregam o inconsciente.

Sempre que se escreve sobre psicanálise está posto que é necessário que haja angústia para que um movimento de demanda seja feito. Apesar do objeto droga não ser um objeto angustiante, conforme demonstram os argumentos colocados pelo adolescente, a presença da angústia se fez notar, considerando que ele não foi ao consultório levado pela familia, como acontece em muitos casos dessa natureza. Foi “pelos próprios pés” e, além disso, seus pais, a princípio, não souberam de sua iniciativa. Reconheceu que a experiência desregrada com a droga fez com que perdesse a noiva. Nessa época estava, pelo mesmo motivo, a ponto de perder o ano letivo. Nestas circunstâncias se contextualiza o movimento de “ida com os próprios pés”. Luis, como vou chamá-lo, estudava numa faculdade particular e tinha direito a uma bolsa de estudos. A iminência de perder o ano estava vinculada à iminência de perder a bolsa, pois a reprovação o deixaria sem o direito concedido, além de chegar ao conhecimento dos pais o fato dele ser um usuário de drogas. Desse modo, ao buscar uma análise, ele também vislumbrava que a analista pudesse lhe conceder um atestado de que ele estava frequentando reuniões de N.A. (Narcóticos Anônimos) à noite, como parte de seu tratamento, o que lhe impedia de frequentar as aulas, que eram noturnas. Este atestado seria levado ao reitor da universidade e valeria, segundo suas conjecturas, como argumento para reverter o processo de eliminação da bolsa estudantil, o que, consequentemente, preservaria seus pais. Naturalmente, o pedido não foi atendido.

Continuando seu discurso, Luis relatou que devido a tantas perdas como consequência do uso compulsivo de álcool, maconha e cocaína, optou por sair da cena da vida através de um plano de suicídio que falhou.

“O que foi que falhou?”, interrogou a analista.

“A mangueira se desprendeu do tubo, impedindo a passagem de monóxido de carbono”, respondeu o jovem, que logo a seguir passou a relatar o plano: colocou uma mangueira em um terminal do carro do pai, por onde sai monóxido de carbono. Entrou no carro e fechou os vidros, só deixando um pedacinho aberto, por onde introduziu a outra extremidade da mangueira. Ingeriu uma quantidade de comprimidos e se fechou no carro, o que deveria lhe causar asfixia e fazer explodir o carro.

Se o plano falhou porque a mangueira se desprendeu é sinal de que não estava bem presa. Portanto, a falha já estava instalada, mesmo antes desse plano do ato suicida. Segundo suas palavras, o plano falhou porque a mangueira se desprendeu. Segundo Lacan, “só existe causa para o que manca” (Lacan, 1964, p. 27) e, entre a causa e o que ela afeta, há sempre uma hiância por onde a neurose se conforma ao real. Essa hiância é o que Freud, em 1900, descobriu na produção onírica e chamou de umbigo dos sonhos. O que chama a atenção nos sonhos, assim como nas demais formações do inconsciente, é o modo de tropeço como aparecem, o que fez com que Freud desde o início percebesse que ali havia outra coisa que queria se realizar. No Seminário 11, Lacan, seguindo essa perspectiva freudiana, responde a uma pergunta de Miller afirmando que o inconsciente não é ôntico e sim ético. A ontologia, como sabemos, é um ramo da filosofía que se ocupa das questões do ser e, para Lacan, o inconsciente não é da ordem do ser e sim do querer ser. Neste sentido está unido ao desejo, que é o paradigma da ética da psicanálise. É desta forma que o inconsciente pode ser entendido como ético, dotado de um querer ser e que opera na dimensão do não realizado.

Regidos por esta lógica, podemos ler a falha do plano suicida em nosso jovem, considerando a surpresa com a qual ele próprio se sente atravessado, principalmente por não conseguir discernir se o que aconteceu estaria mais além ou mais aquém de suas expectativas. Se trata de uma descontinuidade no nível do gozo, na qual alguma coisa se manifesta como vacilação impedindo o total declínio da função paterna, conforme Lacan no Seminário 17. A respeito do inconsciente, continua Lacan no Seminário 11, se trata do “sujeito enquanto alienado na sua história, no nível em que a síncope do discurso se conjuga com seu desejo” (1964, p. 31). Este é o campo no qual Lacan insere sua reflexão sobre o ato, a qual expõe em seu 15º seminario – O ato psicanalítico – considerando que o peso do ato é determinante para o estatuto do inconsciente que, segundo seu ângulo de abordagem, não é um estatuto existente desde sempre. Concordando com Freud, Lacan nos diz que não é possível falar de uma relação imediata com a realidade objetiva e exterior quando o que está em jogo nessa relação é o sujeito do inconsciente.

Em psicanálise, diz Graciela Brodsky ao comentar o ato analítico e sua relação com o inconsciente, “tudo depende de uma questão de perspectiva, vale dizer, trabalhamos com um objeto cujo estatuto muda conforme o modo que o olhamos” (2004, p. 34). A partir disso entendemos que só é possível abordar o objeto droga no campo da psicanálise aceitando a sua (des)inserção no âmbito dessa construção axiomática acerca da relação conflituosa do sujeito com a realidade.

Com relação ao ato de se drogar, por exemplo, o que está em causa, então, é a relação com o impossível, pois é da marca real do impossível que os objetos padecem, o que foi observado por Freud desde o inicio de sua obra, quando enunciou que a satisfação é sempre de natureza alucinatória. Recordando um trecho da tese de doutorado de Jésus Santiago: “esse artefato atua segundo o registro preciso de um símbolo” que tem apenas um objetivo: dar sentido à falha do pai, o que constitui “o verdadeiro não dito do ato toxicomaníaco” (Santiago, 2001, p. 175), já que para a psicanálise não há droga na natureza. Está aí colocada outra modalidade de ato para ser pensada no campo da psicanálise e que suscita a seguinte interrogação: de que espécie é então este ato, dito suicida, planejado por Luis? Uma atuação ou uma passagem ao ato? O que tem sido possível articular da teoria com o caso, faz pensar o plano suicida muito mais como uma encenação da fantasia, que está  na vertente da atuação, do que como uma passagem ao ato. E se quiséssemos pensá-lo como um ato toxicomaníaco, em que vertente o inseriríamos? Em primeiro lugar, seja qual for a modalidade, é preciso pensá-lo numa vertente mais além dos efeitos da significação, ou seja, no campo do gozo.

Diante do exposto a respeito da idéia de atuação, é possível perceber que a mesma está mais próxima de Freud e dos pós-freudianos, ao menos em sua origem conceitual, e implica um proceso de substituição repetitiva daquilo que não pode ser dito. Então, para pensar nestas versões do ato no campo da psicanálise de orientação lacaniana, cabe introduzir a concepção de ato verdadeiramente proposta por Lacan que é aquela que tem sentido de corte e que se situa em um território que permite distinguir, em uma lógica temporal, um antes e um depois, considerando uma mudança de posição do sujeito.

Uma reflexão ética sobre o que se pode entender por “ato toxicomaníaco”, é feita, menos com um objetivo conceitual e mais como uma visada operatória. Sem dúvida cabe dizer que a expressão está colocada entre aspas porque não temos a comodidade de outorgar-lhe um estatuto conceitual. De toda forma, é possível pensá-lo como uma modalidade ou versão do ato utilizada para apreender determinada realidade e é assim que Lacan, no Seminario 11, nos traz a idéia de conceito. Façamos, então, uma pequena caminhada nessa trilha. Tomando como ponto de partida os textos de Freud, percebemos que neles o método de intoxicação surge como resultado de uma supressão do dispêndio psíquico causada pelo relaxamento das pressões da repressão. Para Lacan a realidade do desaparecimento, da supressão, indica uma passagem por baixo do discurso em pauta. Para formular esse modo de conceber, ele se vale do exemplo freudiano de Signorelli onde, num episódio de esquecimento, o inconsciente se manifesta como aquilo que vacila em um corte do discurso “em que o sujeito se saca em algum ponto inesperado”. (Lacan, 1964, p. 32) É na origem desse princípio axiomático que se pode pensar no uso da droga como uma construção substitutuva, que não tem nada a ver com a represssão ou recalque e sim com uma defesa contra o gozo.

Assim, o ato toxicomaníaco pode ser entendido como “uma tentativa de lidar com os efeitos insuportáveis do retorno do recalcado por uma via distinta daquela do sintoma” (Santiago, 2001, p. 12). O sujeito se vale de um objeto que, com base no desenvolvimento teórico de Lacan, é possível equivaler ao gadget3, que é, justamente, o objeto droga, que vai funcionar como uma prótese reparadora dos efeitos do gozo. O propósito explorado nessa circunstância é, então, o da natureza da relação do sujeito com o objeto, em um sentido lato e em um sentido estrito, o da relação do adolescente com o objeto droga.

A equivalência entre a droga e o gadget pode ser obtida recorrendo aos discursos propostos por Lacan através dos quais se pode entender o valor de gozo impregnado em tais objetos. A toxicomania, por este prisma, pode ser considerada efeito de discurso, enquanto que a droga é vista como um modo de tratamento do gozo com relação ao corpo. Na condição de efeito de discurso é possível falar da toxicomania como uma nova forma de sintoma e desse modo fazer certo paralelo com a atuação, entendendo-a como uma conduta assumida pelo sujeito e dirigida a alguém para ser decifrada. Pode acontecer tanto no dispositivo analítico quanto fora dele, tal como Freud exemplificou muito bem no relato em que uma de suas pacientes, aos dezoito anos, passeava abraçada com uma dama, de quem se dizia enamorada, expondo-se ao olhar do pai, como afronta. Temos aí uma forma de submissão, como objeto, ao olhar do Outro, assinalando um falso real no lugar do impossível de dizer, ou seja, quando o real emerge o sujeito é empuxado ao ato porque o real não se articula totalmente no simbólico. Nosso jovem, de certa forma, também se expõe ao olhar do pai, quando pretende apresentar-lhe seu carro explodido.

Sabemos que o paradigma da atuação é o da entrada em cena, o que se opõe ao paradigma de outra versão do ato, a passagem ao ato, que é a saída de cena. A expressão “passagem ao ato” vem do campo da psiquiatria e sua inserção no campo da psicanálise mantém suas referências de origem: suicidio e homicídio.

Encontramos um bom exemplo de passagem ao ato em Freud, na continuação da história citada anteriormente, quando a joven de dezoito anos, ao desafiar o pai, não suportou a intensidade da angústia proveniente da divisão subjetiva provocada por seu olhar, ao mesmo tempo que ouviu da dama, com quem passeava, o propósito de separar-se dela. Como efeito desse real emergente, se jogou nos trilhos ferroviários com a intenção de, deixando-se esmagar pelas rodas do trem, sair de cena.

Com base nestas considerações, se pretende discutir em que posição Luis se situa quando resolve planejar sua saída de cena através de dois atos suicidas. O primeiro, já relatado e o segundo, ocorrido no intervalo entre a quarta e a quinta entrevista, portanto, sob transferência. Nessa oportunidade Luis chega ao consultorio dizendo: “Hoje, quase que você não ia me ver; em meu lugar, receberia um envelope com dinheiro”; ou seja, um objeto. Mas quem vem é o sujeito e relata que, ao mesmo tempo em que iniciava o trabalho analítico, planejava outro suicídio e desta vez, com uma arma que havia encomendado. Porém, antes de consumar o ato, chamou um amigo para conversar e algo que escutou deste amigo o fez recuar de seu propósito.

A essa altura já havia ocorrido uma prisão por flagrante de porte de maconha, o que resultou na revelação a seus pais de seu vício, até então ignorado por eles. Tal ignorância nos chama atenção, visto que, segundo o relato de Luís, seus pais lhe permitiam o uso do álcool desde os 10 anos de idade. Diante desses fatos podemos fazer certa equivalência dos atos de Luis com as duas passagens do clássico caso freudiano da jovem homosexual. O primeiro ato foi o de se deixar ser preso por porte de drogas, o que o submeteria à condição de toxicômano perante os pais. O segundo foi justamente o de tentar, com a ajuda de uma arma, sair da cena em função da angústia possivelmente causada pela legitimidade, diante do Outro, desta posição revelada. Mais um projeto fracassado… E desta vez podemos pressupor que o que fez fracassar o projeto do ato suicida foi a confiança na palavra, sinalizando a transferência.

O fato é que em nenhuma das duas tentativas Luis saiu de cena. Nas primeiras entrevistas dizia haver chegado à conclusão de que sua opção pela droga o faria perder a vida. Mais uma vez lembrando Jésus Santiago (2001), uma constatação da lei do pai estaria sendo paga pelo sujeito com a ruína de seu próprio corpo. Luis dizia haver resolvido optar pela vida em detrimento da droga, passando por fortes crises de abstinência. É justamente nesse período que, oscilando entre as posições de objeto e sujeito, decide largar as duas parcerias, planejando a segunda tentativa na qual, como vimos, “o tiro saiu pela culatra”.

Esse percurso aponta, não simplesmente para uma distinção conceitual entre atuação e passagem ao ato, mas principalmente para uma distinção entre o “ato do toxicomaníaco” e a “passagem ao ato”, incluindo também uma menção ao sintoma, tanto na vertente do retorno do recalcado quanto na de representante do objeto pulsional, conforme Freud. Podemos concluir que o que faz irrupção aí é um “fazer” que não deve ser confundido com uma “passagem ao ato” e, podemos dizer também, com o sintoma. Esse fazer, como vimos, comporta uma série de funções que podem significar respostas a uma causa enigmática. Uma delas, que é a que o caso de Luis parece apontar, é a de reinventar, sob transferência, a função do pai.


Notas

  1. Artigo publicado originalmente sob o título “La droga o la vida”, na revista Psicoanalisis con Adolescentes, compilada por Johnny Gavlovski E. e Raquel Cors Ulloa, da coleção Mundo Psicoanalítico. Venezuela: Editorial Pomaire, 2008. Traduzido e revisado pela autora.

  2. O tema desse artigo se articula à pesquisa de doutorado no PPGTP, em curso na época, intitulada “Intervenções do analista: do descbrimento à invenção”, orientada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e defendida em 2009. A pesquisa foi incentivada financeiramente por uma bolsa concedida pelo Programa Institucional de Capacitação Docente da Universidade Federal da Bahia - UFBA.

  3. Gadget: palavra da língua inglesa que significa equipamento que tem uma função específica, prática e útil no cotidiano. São comumente chamados gadgets dispositivos eletrônicos portáteis. Lacan, no Seminário 20, qualificou de gadgets os instrumentos engendrados pelo discurso da ciência, referindo-se a eles como objetos de consumo produzidos e ofertados pela lógica capitalista, como objetos de gozo.

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Citacão/Citation: CALMON, A. A droga ou a vida. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
09/01/2010 / 01/09/2010.

Aceito/Accepted:
15/04/2010 / 04/15/2010.

Copyright:
© 2011 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.