O conteúdo desta página requer uma versão mais recente do Adobe Flash Player.

Obter Adobe Flash player

O conteúdo desta página requer uma versão mais recente do Adobe Flash Player.

Obter Adobe Flash player

O conteúdo desta página requer uma versão mais recente do Adobe Flash Player.

Obter Adobe Flash player

 

Da inserção em saúde mental

Antonio Teixeira (Relator)1

Médico psiquiatra
Psicanalista
Mestre em Filosofia contemporânea / UFMG
Doutor em Psicanálise / Paris VIII
Professor associado FAFICH-UFMG
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
Autor de A Soberania do Inútil (São Paulo: Anna Blume, 2007)
e-mail: amrteixeira@uol.com.br

 

Resumo

O trabalho aborda criticamente os mecanismos de inclusão propostos pelos dispositivos de saúde mental, que trazem soluções previamente definidas ao paciente. Visa-se estabelecer, com o termo inserção, uma relação orientada pelos meios possíveis de negociação do sujeito com Outro social, em cujo saldo se manifesta não apenas uma transformação do modo anterior de vínculo do paciente, como também uma modificação essencial da parte do Outro com o qual o sujeito vem compor, ilustrada na discussão de dois casos clínicos.

Palavras chave:
Outro, inserção, saúde mental, psicanálise lacaniana.

 

Insertion in mental health

The work is a critical approach of the including mechanisms offered by mental health dispositives, which seek to provide defined solutions to the patient. Our aim is to establish as insertion a relationship oriented by the possible ways of dealing with the social Other, whose balance is reflected not only by a transformation of the previous mode of attachment of the patient, but also a essential modification regarding the Other with which the subject composes, as noted in the discussion of two clinical cases.

Key words:
Other, insertion, mental health, lacanian psychoanalysis.

 

L’insertion dans la santé mentale

Ce travail fait une approche critique des méchanismes d’inclusion proposés par les dispositifs de santé mentale, qui apportent au patient des solutions définies au préalable. On vise établir, avec le terme de l’insertion, une relation orientée par les moyens possibles de négociation du sujet avec l’Autre social dans laquelle se manifeste non seulement une transformation du mode par lequel le pacient établissait des liens auparavant, masi aussi comme un changement essentiel de la part de l’ Autre avec lequel le sujet vient s’entendre, illustrée dans la discussion de deux cas clinniques.

Mot clés
: Autre, insertion, santé mentale, psychanalyse lacanienne.

 


“Why, look you now, how unworthy a thing you make of me? You would play upon me; you would seem to know my stops; you would pluck out the heart of my mystery; you would sound me from my lowest note tho the top of my compass; and there is much musick, you make it speak. Sblood, do you think, I am easier to be played on than a pipe? Call me what instrument you will, though you can fet me, you cannot play upon me.”

Hamlet, act III, scene 2


Pois veja só que coisa mais insignificante você me considera! Em mim você quer tocar; pretende conhecer demais os meus registros; pensa poder dedilhar o coração do meu mistério. Há muita música, uma voz excelente, neste pequeno instrumento, e você é incapaz de fazê-lo falar. Pelo sangue de Cristo!, acha que eu sou mais fácil de tocar do que uma flauta? Pode me chamar do instrumento que quiser – pode me dedilhar quanto quiser, que não vai me arrancar o menor som...


Hamlet, Ato III, Cena 2


Ao comentar, a propósito do nascimento do asilo, o célebre gesto em que Pinel desacorrentava os loucos, Foucault não se privaria de nos indicar, sob esse simulacro de libertação, o movimento que faria da alienação mental objeto de um programa estatal de controle através de sua inclusão. Se a cura do louco, para Pinel, consistia na sua estabilização em um tipo social aprovado e reconhecido, era porque a perspectiva de sua conformação se encontrava no horizonte do tratamento. No lugar, portanto, da exclusão gerada no início da era clássica, que visava o confinamento indiferenciado daqueles que se desviavam da norma social, o sequestro do século XIX almejaria à normalização dos indivíduos pela inclusão nos grupos, formando-se assim uma rede institucional de controle intra-estatal (Foucault, 1972, p. 113). Se este século assistiu ao surgimento das ciências do homem, foi na medida em que nele se gerou um saber – ou um poder epistemológico, para utilizar o termo de Foucault - mediante a prática de observação, de registro e de comparação dos comportamentos humanos que objetivava, em última instância, à classificação dos indivíduos nos grupos sociais definidos pelo Estado (Idem, p. 125).

Se a possibilidade, portanto, de se engendrar uma organização classificatória da loucura derivou da forma de sua inclusão no regime asilar, o poder médico que a delimitaria se valeu, nesse momento, de sua autoridade ao estabelecer tais tipificações. O poder médico limita a loucura não porque a conhece, mas porque a domina (Foucault, 1972, p. 497). Isso não impediu, todavia, que a figura de uma objetividade nascente, na percepção da loucura, no asilo viesse a ser determinada. Pois sejam quais tenham sido os seus propósitos, o fato é que o dispositivo asilar gerado nas sociedades disciplinares do século XIX foi palco, pela primeira vez, de uma experiência controlada da doença mental, a qual deu lugar à constituição de um saber cujo objeto seriam os tipos clínicos que ali passaram a ser definidos.

Quando falamos, por conseguinte, de inclusão do assim chamado doente mental, temos em mente o corolário atual desse processo de localização do enfermo num tipo clínico através do qual o saber terapêutico, a serviço do Estado ou de outro tipo de poder, pode exercer sobre ele algum tipo de controle. Totalmente diverso, em nosso entender, vem a ser o processo de inserção, cuja semântica a experiência, que hoje exercemos, da psicanálise aplicada nas instituições, permite-nos finalmente habilitar: a inserção, diferentemente da inclusão, é um termo que passa a significar, a nossos olhos, um vínculo absolutamente distinto desse modo de relação ao Outro calcado nos mecanismos de submissão ao poder. Sua visada implica antes, por essência, uma relação definida pelos meios possíveis de negociação do sujeito com o Outro, em cujo saldo se manifesta não apenas uma transformação do modo anterior de vínculo, como também uma modificação essencial tanto da parte do sujeito quanto da parte do Outro com o qual esse sujeito vem compor.

Propomos, então, apresentar a conversação de dois casos clínicos que nos parecem paradigmáticos para ilustrar essa diferença entre a inclusão normativa e a inserção calcada na construção do caso clínico. O primeiro caso é o de um paciente a que chamaremos de Gabriel, nascido em junho de 1990 e que já veio ao mundo marcado, se podemos dizer assim, por uma desinserção traumática. Nasceu de um parto demorado, complicado por um quadro de hipóxia que obrigou a sua retirada com o fórceps, cujas seqüelas logo se fizeram notar: segundo a mãe, era uma criança diferente das demais, chorava muito, não firmava o pescoço e levou longo tempo para andar e para falar. O pai, por não aceitar seu problema, isentava-se de ir procurar-lhe um tratamento. Somente aos quatro anos de idade começou a frequentar uma instituição especializada para crianças excepcionais (APAE), aonde permaneceu até os quatorze anos. A equipe responsável relatava comportamento constante de fuga e atitudes de solilóquio; consta que nessa ocasião fazia uso de medicação neuroléptica (haloperidol, clorpromazina) e timo-reguladora (carbamazepina).

Em 2004, quando Gabriel tinha quatorze anos, seus pais se separaram e o irmão que o acompanhava nas atividades da vida diária mudou-se de cidade para trabalhar. Houve um agravamento nítido das condutas de fuga e de agressão a terceiros, o que tornou difícil sua permanência na APAE. Ele ficaria então, a partir de 2005, sob os cuidados da mãe, por sua vez acometida de esclerose múltipla e que, sem meios para lidar com seu comportamento, mantinha-o trancado dentro de casa.

Após um breve período, Gabriel compareceria ao Centro de Saúde Mental de sua cidade, manifestando intensa raiva de sua mãe, que o mantinha em cativeiro, chegando mesmo a agredi-la com uma faca. Chegou escoltado por policiais, extremamente agressivo e agitado, sendo necessário seis homens para contê-lo, mesmo sob sedação medicamentosa. Nesse momento, dizia ouvir a voz de um padre que lhe dava ordens verbais. Apesar de todos os esforços para mantê-lo em acompanhamento no Centro de Saúde Mental, a família solicitava sua internação psiquiátrica, alegando o risco de seu comportamento violento. Seu comportamento de fugas e agressões exigia a presença constante de um ou dois funcionários por perto. Os funcionários se revezavam na tentativa de propor estratégias e atividades para Gabriel ali permanecer, realizavam-se visitas domiciliares freqüentes, mas nada sortia efeito.

Finalmente, em janeiro de 2006, após agredir o pai, a família exigiu sua internação no hospital psiquiátrico. O pai, tomado de cólera, nessa ocasião, afirmava que “não aceitaria outra solução”. Gabriel foi então internado num hospital psiquiátrico, ali permanecendo durante dois meses sem que nenhuma evolução favorável se apresentasse. Chegou ao Centro de Saúde Mental após a alta, muito sedado e machucado, com marcas de contenção nos pulsos e tornozelos, várias queimaduras de cigarro, quebrando todos os vidros que encontrava pela frente e agredindo funcionários com os quais tinha estabelecido um vínculo mais próximo. Derrubava ou tentava enforcar o técnico de referência, não permanecia nas consultas médicas, agitava e tentava pular em cima do médico, não aceitava a mediação pela fala e tentava impor suas demandas com a força. Somente após isso sua família percebeu que a exclusão de Gabriel, via inclusão hospitalar, não seria a solução final esperada e passou a aceitar o tratamento em serviço aberto.

Conseguiu-se então contratar, com apoio da prefeitura, um acompanhante terapêutico para Gabriel. Este passou a acompanhá-lo nas diversas atividades do projeto terapêutico, embora Gabriel continuasse agressivo e manifestando comportamento de fuga. Acolhendo as queixas da mãe, debilitada por sua doença e sem condições de zelar por Gabriel, o conselho Tutelar interveio solicitando uma maior participação do pai no processo. Uma modificação então se produziu: Gabriel passou a circular nos diversos espaços do serviço e a negociar com os membros da equipe, formulando outras demandas. Percebendo-se acolhido, passou a também acolher e a ficar mais tranquilo. Na semana do dia 18 de maio, data em que comemora o movimento de luta antimanicomial, por ocasião de uma visita ao fórum, Gabriel fez uma demanda pessoal ao juiz da cidade, solicitando que, em nome da lei, ele interviesse proibindo seu pai de agredir sua mãe. Sua fala foi validada e sua demanda recebeu a atenção devida do juiz.

Impossível não perceber, nos efeitos dessa condução clínica, que o processo de inserção de Gabriel se encontra necessariamente atravessado por uma modificação essencial do encaixe que ele mantinha, em sua relação com o Outro. Foi preciso esperar a falência da inclusão hospitalar, que na verdade respondia à demanda de exclusão, por parte de sua família, que dele queria distância, para que o processo de sua possível inserção no tecido social pudesse finalmente se produzir. No lugar, portanto, em que a inclusão se produzia na forma de um saber terapêutico imposto desde o hospital, como sítio privilegiado de uma experiência controlada da loucura, o processo de inserção abre caminho à tentativa de se produzir novos encaixes do sujeito com o Outro, sem a garantia de um saber a priori. A figura de autoridade do médico psiquiatra, representante do saber disciplinar imposto ao doente mental via inclusão asilar, cede lugar à presença do acompanhante terapêutico, que parece de fato criar uma possibilidade de inserção para Gabriel. Alheio aos protocolos ou guidelines pelos quais suspira o poder médico em sua vontade de tratar a loucura no enquadre de uma experiência controlada, o acompanhante terapêutico, ao exercer no melhor sentido o ofício de secretariar o alienado, dá início ao processo de inserção de Gabriel, à medida que se encontra às voltas com os constantes e imprevisíveis processos de negociação do paciente com a realidade.

Mas esse processo de inserção em nada se confunde com a tática histérica do assistencialismo que, de certo modo, dá permanência ao discurso de inclusão representado pelo mestre contra o qual ela protesta, geralmente encarnado no poder médico presente nas práticas de controle disciplinar. O assistencialismo histérico, que proclama a igualdade dos sujeitos contra a autoridade hierárquica do saber médico, nas instituições de saúde mental, termina quase sempre caindo nos embaraços inevitáveis das relações especulares. Ao se afirmar em posição de igualdade para com o paciente, numa posição de identificação especular com o doente mental como figura do Outro carente, o assistencialista histérico impossibilita o processo de inserção, na medida em que se torna parceiro de um encaixe sintomático que somente se desfaz no momento da exaustão; eis que, então, se vê reconvocada, no seu mesmíssimo lugar de exceção, a figura de autoridade do mestre contra o qual inicialmente se insurgiu. Senão vejamos, mediante o que foi extraído numa conversação clínica, os impasses que essa parceria produz.

Referimo-nos ao caso de Eliseu, cuja conversação foi solicitada em razão dos problemas gerados pela relação entre esse paciente e o corpo técnico que dele se ocupava. De acordo com informações extraídas de um relatório datado de 2002, Eliseu, que naquele momento contava com 30 anos de idade, era descrito como um homem solteiro com curso primário incompleto, que ganhava a vida como servente de pedreiro. Sendo filho caçula de uma família cujo pai, que sofria de hanseníase, já havia falecido, residia então com sua mãe. Seus pais, segundo as palavras do paciente, “batiam gato”, expressão que designa a atitude do sujeito pedinte, geralmente atribuída aos pacientes hansenianos. Por ser a mãe uma alcoolista crônica que vivia caída pelas ruas, Eliseu foi criado pelas irmãs, que deles se ocuparam até irem morar com os tios, que o rejeitavam por ser “preto e feio”, segundo seu relato. Foi um momento devastador para ele, que marcou sua condição de sujeito abandonado.

Seu primeiro episódio de desencadeamento psicótico ocorreu aos 16 anos de idade, época em que fazia uso abusivo de bebida alcoólica. Tal episódio foi descrito pela mãe como um quadro de intensa agitação, com comportamento delirante, seguido de desmaio. Iniciou seu tratamento psiquiátrico em um dos Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) de seu município em 1997, num momento em que apresentava atitudes de reivindicação constantes referidas a seu pedido de aposentadoria por invalidez, sob efeito de bebidas alcoólicas. Manifestava pensamento delirante de cunho persecutório, assim como comportamento de errância e incúria agravados pela precariedade de sua condição sócio-econômica. Comparecia ao serviço ora conduzido pela mãe, ora pela irmã, ora pela polícia, e às vezes espontaneamente, mas sempre em estado de embriaguez. No ano de 2001, quando foi encaminhado para tratamento intensivo no CAPS de sua cidade, o psiquiatra que sempre o atendia em crise tornou-se seu médico de referência. Foi nesse período que o serviço que o atendia passou a adotar uma estratégia assistencialista, chegando seu psiquiatra a assumir o cargo de curador provisório do paciente, diante da indisponibilidade de um familiar que o fizesse.

Em 2003 lhe foi alugado um quarto através do Serviço, na proximidade do centro de atendimento, com a finalidade de dele fazer uma Residência Terapêutica. A situação se manteve estável por alguns meses, até que ele voltou a se embriagar e a usar drogas, colocando a perder todos os projetos de assistência. O serviço passou, então, a adotar medidas de cunho disciplinar, tais como não autorizar sua entrada quando ele se encontrasse drogado ou alcoolizado, mas todas as medidas fracassavam por sua falta de adesão. O único laço que ele constituía parecia ser com a bebida. Mesmo dispondo de uma residência, continuava a errar pelas ruas, pedindo dinheiro e se expondo ao risco de ser roubado e maltratado. A equipe, levada à exaustão, agora se referia a Eliseu como a um saco sem fundo; suas demandas pareciam não ter fim.

A partir desse momento, colocou-se a necessidade de se organizar uma estrutura de rede, com vistas a distribuir melhor a carga de atendimento. Sua curatela foi então transferida para sua irmã, com quem passou a habitar, o que não deixou de produzir uma certa estabilização. Essa irmã manifestava uma postura maternal que parecia convir a sua atitude de constante demanda, mas em que pese essa relativa melhora, ainda assim Eliseu permanecia em seu comportamento de pedinte errante, sempre à espera de algo que lhe causasse a impressão de estar sendo cuidado.

Verificou-se, assim, na relação em que Eliseu se determina no domínio da linguagem, algo que foi prosaicamente traduzido, em uma das reuniões da equipe, pelo termo “pidão”. Trata-se, efetivamente, de uma relação sem limite, que se estende na lista infinita do ato de demandar, na qual, por sua vez, se transmite uma função inicialmente atribuída a seu pai, portador de hanseníase, que passava sua vida a “bater gato”. “Pedir”, para Eliseu, é um verbo quase intransitivo. Pouco importa o objeto que ele pede, o que conta é conjugar o “pedir”. Não é casual, por conseguinte, que ele ponha a perder tudo que adquiriu com o árduo socorro da equipe, pois é a partir dessa perda que ele retorna ao lugar do sujeito pedinte, único predicado que lhe foi transmitido por seus pais.

Seja qual for, no entanto, o grau de dificuldade que esse caso por si só encerra, interessa-nos ainda considerar em que sentido a posição quase transitivista, assumida pela equipe, veio multiplicar os impasses de sua condução. Ao buscar “compreender” o paciente, para alcançar as motivações de suas dificuldades, no lugar de criar um lugar vazio de compreensão no qual o próprio paciente viria oferecer as suas coordenadas, alguns atores do corpo técnico acabavam adotando uma atitude pautada pela identificação imaginária, muito freqüente na assim chamada perspectiva igualitária que acompanha os mais bem intencionados movimentos de reforma psiquiátrica. Isso desemboca no campo especular da intersubjetividade igualitária em que terapeuta e paciente se vêem atrelados numa relação de parceria simétrica, conforme ficou patente no relato de seu terapeuta: ao se fazer parceiro de um sujeito indefinidamente demandante, ele tornou-se o provedor sem limite de um pedido de auxílio sem ponto de basta. O terapeuta passou, assim, a dar permanência a uma situação da qual virou parte integrante, impedindo-o de romper com o mecanismo que, a princípio, pretendia-se modificar

Nada nos autoriza, portanto, a falar aqui de “inserção”, tal como aqui entendemos esse termo, por melhores que sejam as intenções que motivam esse modo de condução clínica. Trata-se antes de um movimento de inclusão assistencial que pode assumir as mais variadas formas, desde a assunção da curatela à disponibilização de uma residência, mas que deixa intocada a dialética que o sujeito mantém com o Outro social. Pareceu-nos, por conseguinte, sintomático, por ocasião de uma segunda conversação de retorno, que o posterior deslocamento de serviço do paciente, motivado por questões de distribuição territorial dos atendimentos, em vez de ser percebido como um problema, tenha produzido um sentimento de alívio na equipe que, como foi dito, viu-se levada a um estado de exaustão. A parceira especular não poderia ter outro tipo de conseqüência. Foi-nos dito que Eliseu agora encontrava-se “desterritorializado”, e que nas raras aparições que faz no CAPS, está sempre alcoolizado em seu atendimento pelo plantão.

O fato, pois, é que Eliseu voltou a se portar como um pedinte sujo pelas ruas, o que nos levou mesmo a perguntar se estar nessa condição permanente não teria sido a melhor solução que ele encontrou. Mas embora houvesse quem chegasse a dizer que talvez ser pedinte seja o único laço que Eliseu consegue fazer, será que é preciso ser um pedinte tão miserável?

Tudo que se pode dizer é que se foi esse, para ele, o caminho escolhido – ser um pedinte da cidade -, ainda assim é preciso que as intervenções sejam construídas pela rede que o próprio paciente compõe, e não por um ou outro serviço específico definido por disposições burocráticas. O problema é saber como responder, a um Eliseu pedinte, de um lugar distinto do provedor. Pois, por mais que a dimensão imaginária dessa parceria seja uma condição inicial para que se dê o acolhimento, no sentido em que talvez seja o único elo possível de se fazer com ele no começo, é preciso se emancipar dessa condição, produzindo outro modo de relação com a equipe.

Por outro lado, se o que mais parecia incomodar a equipe era o estado de intensa miséria de Eliseu, a tentativa igualitária de lhe oferecer as condições dignas de um cidadão estava fadada ao fracasso. Ele sempre retorna ao estado anterior de miserável pedinte, levando a equipe à exaustão. Mas o fato é que lhe foram ofertados produtos que ele próprio não demandava, que diziam mais respeito a uma demanda da equipe com relação à condição em que ela queria encontrar o paciente. E, efetivamente, Eliseu jamais pedira ser tratado em condições sociais de cidadania, como constantemente lhe oferta a equipe. Eliseu é, antes de tudo, um pedinte concreto que exige e quer se manter como pedinte: ele não quer ser um cidadão emancipado dessa condição, como sonha o discurso igualitário.

Por outro lado, se o que mais parecia incomodar a equipe era o estado de intensa miséria de Eliseu, a tentativa igualitária de lhe oferecer as condições dignas de um cidadão estava fadada ao fracasso. Ele sempre retorna ao estado anterior de miserável pedinte, levando a equipe à exaustão. Mas o fato é que lhe foram ofertados produtos que ele próprio não demandava, que diziam mais respeito a uma demanda da equipe com relação à condição em que ela queria encontrar o paciente. E, efetivamente, Eliseu jamais pedira ser tratado em condições sociais de cidadania, como constantemente lhe oferta a equipe. Eliseu é, antes de tudo, um pedinte concreto que exige e quer se manter como pedinte: ele não quer ser um cidadão emancipado dessa condição, como sonha o discurso igualitário.

Aventou-se então que uma resposta possível da equipe seria a de recebê-lo, sem deixar se intimidar pela exigência de suas demandas. Receber o Eliseu sem lhe ofertar os direitos do homem, que condiz com o discurso igualitário, ouvindo o que ele tem a pedir, mas, sobretudo, fazendo-lhe ver que ele tem que aprender a pedir, que o pedir não é uma simples exigência que dispensa qualquer forma de consideração do Outro.

À guisa de conclusão, verificou-se a necessidade de retomada da discussão clínica, em outro momento, para examinar as questões apontadas, ultrapassando a particularidade do caso. Foi colocada a necessidade de se tentar conceber um laço de solidariedade que não caia no eixo especular do discurso igualitário, construído no modo de identificação imaginária com a figura do semelhante, tentativa essa que nos conduz a interpelar o próprio eixo de orientação dos serviços de atenção à Saúde Mental.


Notas

  1. Esse relatório se realizou a partir de pesquisa coordenada por mim e elaborada pela, hoje extinta, equipe Clinicaps. Seus resultados foram apresentados a convite da comissão de organização do III Encontro do Reseau Internacional de Psychanalyse Apliquée, realizado em Bruxelas em setembro de 2008. Desse trabalho são co-autores Aline Aguiar Mendes, Anamáris Pinto, Cláudia Maria Generoso, Cristiana Miranda Ferreira, Maria Inês Meirelles Junca, Renata Dinardi Rezende de Andrade, Simone de Fátima Gonçalves e Wellerson Durães de Alkmin.


Referências bibliográficas

FOUCAULT, M. (1972). Histoire de de la folie à l’âge classique. Paris: Gallimard, 1996.

SHAKESPEARE, W. The complete works of William Shakespeare. London: Atlantis, 1980.



Citacão/Citation: TEIXEIRA, A. Da inserção em saúde mental. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus

Editor do artigo:
Tania Coelho dos Santos.

Recebido/Received:
21/03/2010 / 03/21/2010.

Aceito/Accepted:
04/06/2010 / 06/04/2010.

Copyright:
© 2011 Associação Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permites unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the author and source are credited.