Inserção e desinserção
Eu me pergunto se esse par de conceitos é pertinente e necessário ao campo psicanalítico. Não seria ele cativo, demasiado cativo, de uma percepção sociológica do laço social, aquela que parte da oposição entre a idéia do indíviduo como uma mônada e da exterioridade absoluta da determinação social? A importância desta percepção sociológica talvez tenha se acentuado graças ao avanço dos movimentos sociais democráticos que reivindicam a universalização do usufruto da saúde, educação, cultura e lazer. Juntamente com estas justas reivindicações cresce inevitavelmente o anseio pela homogeneização dos costumes, valores, usos e modos de usufruto do corpo. Razões derivadas do controle dos gastos públicos com a saude e as pensões por invalidez e morte nos impõem uma crescente intolerância com os comportamento de risco cárdio-vascular, tais como: tabagismo, o alcoolismo, a obesidade. A dificuldade de inserção no mercado de trabalho e a precariedade de bens materiais que dela resulta também tende a ser encarada como um entre outros tantos sinais de uma suposta escassez de regulação das pulsões pelo princípio do prazer. Crescem as ações afirmativas que visam reeducar os hábitos para combater a pobreza. O que dizer das intervenções de especialistas sobre as causas das síndromes do pânico, das depressões, das adições às drogas ou do consumismo? Cresce a convicção de que todo gozo sem lei precisa ser sujeitado à regulação pelos discursos pedagógico, médico ou psiquiátrico. À medida que estendemos os direitos ao amparo previdenciário público ou aos planos de saúde compartilhados, cresce a socialização do risco de vida. Freud um dia afirmou que a pulsão sexual é a expressão do direito que todo indivíduo tem de morrer à sua própria maneira1. Hoje este risco não é mais percebido como pertencendo ao arbítrio de um sujeito isolado. Ele afeta toda a sociedade que paga o preço das redes de proteção social.
Da psicologia individual e psicologia social
Freud, diferentemente do todo o pensamento sociológico, afirmou que em consequência do inconsciente a psicologia individual é uma psicologia social2. Lacan - diferentemente dos psicanalistas pós-freudianos orientados pela suposta primazia das relações mãe-bebê - esclareceu esta tese afirmando que a constituição do sujeito do inconsciente se deve aos efeitos do campo da fala e da linguagem. Em seu primeiro ensino afirmou a primazia do simbólico (linguagem) sobre os outros registros, isto é, imaginário (corpo/mundo) e real (pulsões). É a ordem simbólica que nos faz homens, isto é, só podemos sê-lo alienados por meio dela, inseridos nela. Este ponto de vista será muito mais tarde substituído pela tese da autonomia dos registros. Lacan adotará uma perspectiva que privilegia o modo singular como se estabelece o enodamento entre eles. A nova perspectiva nos permite escapar à universalização do modo neurótico de enodamento dos registros que dirige seu primeiro ensino e que fundava-se no pressuposto da supremacia da função do Nome-do-Pai. Este último foi definido como o operador simbólico que, ao se impor ao imaginário e ao real, engendraria o desejo inconsciente submetido ao recalcamento e o sintoma como formação de compromisso ou retorno do recalcado. A psicose resultaria da foraclusão do Nome-do-Pai, que deixa o inconsciente a céu aberto. Em seu último ensino, ele admite que há outros modos de enodar os registros diferentes daquele que a metáfora paterna permite orquestrar. Introduz o termo sinthoma para designar o que uma mulher é para um homem. A obra do escritor James Joyce, merece ser designada com este termo uma vez que o autor enodaria os registros com o seu nome próprio e não com o Nome-do-Pai e a sexualidade inconciente. Sintoma e sinthoma descreveriam assim dois modos distintos de saber fazer com a pulsão.
Partindo da autonomia dos registros, afirma-se um ponto de vista que radicaliza o princípio da desinserção. O sintoma ou o sinthoma seriam o modo particular de enodamento dos registros e a condição do advento de um sujeito ou de um ser falante. No momento de conceber esse artigo fui levada a constatar que o tema da inserção social é um embaraço para os psicanalistas de orientação lacaniana. Eu me pergunto: é mais correto partir do pressuposto de que o ser falante nasce inserido na ordem simbólica ou de que nasce desinserido desta?
Fui levada de volta à comparação freudiana do laço social entre os homens com a relação entre os porcos-espinhos3, pois ela é uma das bússolas de nossa psicologia social. Perto demais uns dos outros, nos espetamos; longe demais, sentimos frio. Para Freud, o laço social nasce da dessexualização das pulsões eróticas (Freud, 1923, p. 61). As razões que desencorajam as fulgurantes exigências da sexualidade humana são a interdição do incesto e o insucesso do parricídio. Em consequência destas duas poderosas renúncias pulsionais, o sujeito civilizado é permanentemente assediado pelo risco da desfusão pulsional que desencadearia a liberação da pulsão de morte. Esta configuração das relações entre indivíduo e civilização, a meu ver, deixa entrever o sonho no paraíso autocrático da solidão numa ilha deserta ou o do gozo sem lei da tirania sobre os outros homens. Estas ficções merecem ser relidas à luz do tema da inserção e da desinserção estrutural do sujeito humano. Seria Freud um partidário da desinserção radical de todo ser humano da ordem simbólica? O ponto de vista freudiano das relações entre indivíduo e civilização é radicalmente dicotômico? Mais ou menos. No “Projeto...” (1950 [1895]), ele argumenta que o desemparo é a fonte de todos os motivos morais. Em “Totem e Tabu” (1912-13), a tese freudiana é a de que a civilização origina-se com o parricídio. Este crime de autoria coletiva teria se perpetuado como consciência inconsciente de culpa, supereu enraizado no isso que, em cada indivíduo, motiva o laço social.
Distinguir as diferentes formalizações lacanianas da abordagem freudiana do real é essencial à teorização da finalidade da experiência analítica e, igualmente, à extensão de nossa prática aos impasses do laço social. Neste sentido, muitas vezes fico surpresa como o elevado grau de consenso que reconheço habitar as abordagens psicanalíticas tanto do traumático quanto do mal-estar. Desde Freud, repetimos as variantes da tese do porco espinho: “amar ao próximo como a ti mesmo” é um mandamento impossível. Pode-se compreender esta tese ressaltando que a natureza do homem é egoísta e que sua disposição para a sublimação não é tão elevada. Com a formalização do objeto a, a abordagem de Lacan enfatiza o ponto de separação entre o sujeito e Outro. O objeto a é o que existe em comum entre o sujeito e o Outro, a extimidade do gozo. Destaca que o real que habitaria o mais íntimo de nós mesmos habita também o coração do Outro. Não é dizível, nem amável, nem cognoscível. Porém, o real não é o individual, nem o singular, pois é “isso” (Id) que é comum ao sujeito e ao Outro. O núcleo do inconsciente, seu umbigo, é a Coisa em si ou a causa em si, irremediávelmente perdida, sujeitada ao recalcamento originário. Vale recordar que Lacan remete a causa deste mal-estar na civilização à particularidade do imperativo moral kantiano que, desde o advento da modernidade, nos exige a universalização do laço fraterno. Lacan esclarece que o avesso desta elevação inédita da exigência moral paga-se com o crescimento nas profundezas de um novo gosto pelo mal. Traduzindo em linguagem freudiana: quanto mais exigimos a dessexualização das pulsões, mais aumenta o risco da desfusão pulsional e da irrupção da pulsão de morte.
Com Lacan, mais uma vez, podemos ver mais claramente esta questão. Temos a tese de que a estrutura do laço social é equivalente a de um discurso ou de um sintoma. Esta proposta nos encaminha para a seguinte conclusão: cada discurso é uma forma particular de laço social, uma defesa contra o real. O parricídio e o incesto são os dois nomes do real excluído da civilização. Como a estrutura de todos os discursos é equivalente ao sintoma, então, os laços sociais são soluções de compromisso entre o desejo de um e a censura de todos, isto é, da civilização. Observe-se que nosso campo teórico sobre o laço social, permanece marcado por uma visão dicotômica, opositiva, conflitiva das relações entre a pulsão e a ordem simbólica e seus equivalentes: linguagem, cultura e civilização. Esta perspectiva dicotômica, rigorosamente freudiana, domina o eixo da teoria da constituição da sexualidade fundada no complexo de Édipo, na interdição paterna e no recalcamento do desejo incestuoso. Embora, seja preciso reconhecer que a formalização do objeto a é um passo significativo no sentido de reduzir esta oposição.
Fundamentos de uma teoria da civilização: recalque ou sublimação?
A teoria da constituição do sujeito fundada no recalcamento, difere da perspectiva, igualmente freudiana, de que nem toda a sexualidade perversa e polimorfa originária fica submetida ao recalcamento. Uma parte da libido das pulsões parciais retorna ao próprio eu, tomando-o como objeto (narcisismo), ou é invertida no destino oposto, ensejando as formações reativas que constituem o caráter (Freud, 1915, p. 147-148). Entretanto, a dimensão mais promissora da teoria, a meu ver, é a da sublimação, definida como uma “mudança no âmbito da própria pulsão”4 (Freud, 1914, p. 11). Sobre a sublimação, Lacan avançará no Seminário VII que consiste em “elevar o objeto à dignidade da Coisa” (Lacan, 1959-60, p. 140-141), de tal modo que, diferentemente do recalcamento, não se trata neste caso de recalcar o real mas, sim, de deixar entrevê-lo. Para Freud, a idealização do objeto ou a supervalorização sexual do objeto é um destino da pulsão que se associa à operação de recalcamento. A sublimação é outra coisa. É uma mudança mais enigmática no ãmbito da própria pulsão e, diferentemente de tudo que se associa ao recalcamento ou às formações reativas, implica numa mutação do gozo pulsional. Não se trata nem de conservar o gozo pulsional por meio das formações reativas que fundam os traços de caráter, nem de continuar a gozar inconscientemente do desejo de um objeto que foi recalcado pela censura. Por estas razões, eu acredito que a sublimação freudiana corresponde muito melhor à definição lacaninana da pulsão de morte: “vontade de destruição direta e de recomeço com novos custos” (Lacan, 1959-60). As mutações do gozo, em jogo na criação e na invenção descrevem, talvez, uma outra via para pensar como se daria a relação entre a pulsão e a ordem simbólica. Podemos investigar se esta outra teoria é mais compatível com a topologia borromeana. Por hipótese, esta outra teoria poderia estar na base da distinção entre duas maneiras de enodar o real, o simbólico e o imaginário, que encontramos no último ensino de Lacan: sintoma (formação de compromisso, sexualidade e inconsciente) e sinthoma (eu/sublimação). Parto da afirmação de que no lugar da pulsão de morte, concepção fundada na energética freudiana, Lacan teria introduzido o real (Lacan, 1975-76, p. 129-130).
Para aprofundar esta problemática, é preciso revisitar nossas convicções sobre as relações entre a pulsão e a linguagem ou entre a pulsão e a civilização. Volto à seguinte questão: existe pulsão fora da civlização? Se não fôssemos civilizados, seríamos animais pulsionais? Se a pulsão (Trieb) é um Grundbegrieff, um conceito fundamental, é porque ele se diferencia do instinto (Instinkt). O que nos diferencia dos animais que se organizam instintivamente é o fato de que somos seres humanos, por definição, porque fomos inseridos na civilização. Freud nos legou uma abordagem da sexualidade fundada no paradoxo de um encontro como satisfação irrepetível. A tentativa alucinatória de repetição da lembrança desta primeira experiência só pode terminar com o desencadeamento traumático de uma experiência de dor. Deste mau encontro fica a lição. Alucinar é supor a identidade entre a lembrança do objeto e um objeto qualquer que se oferece à percepção. Alucinar é diferente de reencontrar o objeto pelo recurso à identidade de pensamento (Freud, 1950 [1895]). Esta teorização poderia nos levar a conceber uma espécie de naturalização do objeto em jogo nas relações mãe-bebê. Quanto mais não seja, porque a teoria do objeto das pulsões parciais pode induzir a esta simplificação. Uma vez que a temporalidade do inconsciente é retroativa, o falo como metáfora de todos os objetos parciais da experiência dita pré-genital – que os eleva à condição de equivalentes simbólicos – somente entra em função na posterioridade dos efeitos do recalcamento secundário. Logo, há o risco de não percebermos de imediato que a estrutura do objeto sexual é lógica e não perceptual. É nas vias do pensamento e não da percepção que o objeto deve ser buscado, Freud ensina. Parafraseando Lacan, nada do que se encontra é da ordem do que se busca (Lacan, 1959-60, p. 23).
Lacan formalizou a descoberta freudiana do real em jogo no campo do desejo com a topologia do objeto a. Por isto prossigo em minha argumentação com Lacan. A sexualidade humana, privada do instinto da espécie, organiza-se como um desejo sexual que não é indivídual, pois se engendra na dependência do desejo do Outro. A necessidade, primeiramente capturada nas vias da demanda do Outro, é sujeitada ao significante. O desejo é estruturado como desejo do desejo do Outro, em consequência da pulsão. O que é a pulsão? Eu a definiria como a potência que se desencadeia no encontro entre um corpo e o Outro da linguagem, suporte da civilização. Vale recordar o comentário de Lacan:
“Não escapa a Freud que a felicidade é, para nós, o que deve ser proposto como termo de toda busca por mais ética que seja [...] para essa felicidade, diz-nos Freud, não há nada absolutamente preparado, nem no macrocosmo nem no microcosmo” (Lacan, 1959-60, p. 23). |
O encontro de cada um com sua espécie é sem GPS. O primeiro encontro, traumático e satisfatório, é um acontecimento que define uma modalidade de inserção de um sujeito na ordem simbólica. Esta modalidade inscreve-se como um circuito pulsional, isto é, como uma significação que circunscreve uma forma singular de encontro com a satisfação da necessidade. Resta dizer que essa inserção do sujeito na ordem simbólica é sempre bastante precária, mal fundada e necessariamente engendrada graças a um mal entendido. Por essa razão, a modalidade singular deste circuito pulsional está pronta para fabricar novos encontros, bem como desencontros traumáticos. Pode-se até dizer que tanto faz, encontros e desencontros fundam-se igualmente no mal entendido essencial entre o sujeito e seu parceiro, isto é, o Outro de uma dada civilização. Pode-se falar com justiça de uma solidão essencial do sujeito, encerrado, fixado, à sua forma inaugural e única de usufruir do proprio corpo e do laço com o Outro da civilização. Mas pode-se, com igual justiça, acolher com surpresa a potência de aparelhamento e de desaparelhamento destas máquinas pulsionais que somos nós. Se isto é verdade, o que dizer das civilizações? Haveria civilizações mais permeáveis à singularidade de cada um e civilizações mais fechadas às modalidades de circuito pulsional? Uma dada civilização, promove mais o laço por meio de um sintoma (formação de compromisso) ou de um sinthoma (sublimação)?
Foi preciso, neste ponto, fazer uma revisão as teses freudianas acerca do que é que permite o aparelhamento. Quais são as condições psíquicas para que haja laço social? Encontramos em Freud uma teoria que é dependente do primado do recalcamento. Logo, é uma teoria do laço social como sintoma, isto é formação de compromisso, consenso social baseado num mal entendido essencial. Assim, parece que seria preciso que um certo numero de indivíduos coloque um objeto (suposto o mesmo para alguns) no lugar de seu ideal ou do seu gozo (Freud, 1921, p. 133). Pode-se afirmar, em contrapartida, que esse processo leva necessariamente a rebaixar algum objeto à condição de indesejável e excluído. A fraternidade se paga por meio de um consenso quanto ao que elegemos como luxo e, igualmente, quanto ao que dejetamos como lixo. Diante desa configuração sintomática do laço social, caberia perguntar: haveria civilizações mais abertas à diversidade de grupos e à pluralidade dos laços sociais? Ou será que à medida que a pluralidade cresce, aumenta a segregação e a intolerância?
Qual é a teoria do laço social mais apropriada à perspectiva borromeana?
Ao introduzir o registro do real, Lacan o deixou do lado de fora da experiência analítica. Tomava o real tal como Freud concebia a pulsão de morte: como tudo aquilo que se opõe ao laço analítico e ao laço social. Para abordar o único real que poderia interessar ao psicanalista tomou a via de Hegel, equacionando-o ao logos, à razão. No ponto de partida de Lacan encontramos a afirmação hegeliana no prefácio à Fenomenologia do Espírito: “tudo que é real é racional e tudo que é racional é real”. Nesta época, o real é estruturado pelo simbólico, pela linguagem. Dizendo de outro modo, o real na experiência analítica é o inconsciente como discurso do Outro.
O inconsciente é uma invenção freudiana. Com a mediação da interpretação dos sonhos e de toda uma fina psicopatologia da vida cotidiana, Freud decifrou o enigma dos sintomas histéricos. Lacan concebeu o inconsciente como lugar do Outro, mas esse Outro não é exatamente o mesmo ao longo de seu ensino. As nuances deste conceito sofrem um vivo deslocamento ao mesmo tempo em que se redefine a dimensão do real. Primeiramente, o Outro é o lugar da verdade, constituído pelos efeitos da fala e que se distingue da comunicação. Depois, o Outro figura como o lugar do código/mensagem. O Outro como tesouro de significantes, é o dicionário dos usos da linguagem. No nível fonológico, o Outro é uma bateria significante completa. Existe ainda o Outro barrado - S () -, Outro inconsistente, uma vez que a verdade e a demonstração são coisas distintas. A inconsistência do Outro (), Outro que não existe, corresponde à formalização do objeto a. Desde então o Outro é uma estrutura topológica, folheada pela repetição pulsional e que enseja a emergência do objeto a como mais-de-gozar, concepção de estrutura que integra-se à repetição pulsional. O real de que fala Lacan nessa época, redefine-se graças à formalização do objeto a. Esse conceito lhe permite ir do grande Outro (A) ao pequeno outro (a), demonstrando a relação íntima e extima entre o significante e o real.
Neste período do ensino de Lacan, o objeto a é uma formalização do real que atravessa a fronteira entre o gozo (pulsão/repetição) e o Outro (inconsciente/sentido). Ele é uma infração à exterioridade absoluta da Coisa (das Ding) em relação ao campo do Outro. O objeto a integra-se ao campo significante por meio do fator libidinal, que é o mais-de-gozar (Merlust). O objeto a, graças a sua estrutura topológica, pode funcionar como equivalente do gozo. Ele não é parte do grande Outro (A). É um resíduo. Ao mesmo tempo, o que o grande Outro tem de mais íntimo (um furo) é o que ele tem de mais exterior ao seu conjunto de significantes. Essa topologia é uma revolução na nossa concepção das relações do sujeito como efeito do significante, ao grande Outro. O objeto é uma borda estruturada topologicamente, que permite redefinir o significante como meio de gozo. Desde então, eu me arriscaria a defender, o Outro, a linguagem, a civilização não são o oposto da pulsão e sim seus parceiros.
Em seu último ensino, esta formalização do real como objeto a não é mais suficiente. O objeto a, talvez, seja a formalização do objeto que orienta as pulsões sexuais e sua pertinência limita-se aos sintomas cuja estrutura funda-se no primado da castração e do Édipo. Dizendo de Outro modo, ele seria relativo àquilo que se escreve como encontro ou desencontro entre o sujeito e o Outro. O real diz respeito muito mais ao que não se escreve, não se formaliza, não é comum ao sujeito e ao Outro. O real lacaniano equivale à dimensão do traumatismo em Freud. Com o axioma, “não há relação sexual”, o real deve ser abordado como sem lei. Não há saber no real. Não existe nenhuma medida comum entre o real e o simbólico. Por esta razão, todo sentido se reduz ao semblante, algo que é imaginariamente simbólico, um discurso. O que vem a ser o traumatismo inassimilável à dimensão do objeto a? Depois dos anos 70, o real no ensino de Lacan se faz representar por meio da tensão dialética entre a lalíngua (lalangue) e a linguagem. Lalíngua presentifica o gozo da dispersão do significante. Trata-se dos significantes puros, isolados, não encadeados na linguagem articulada. Lalíngua comporta uma dimensão que é irredutívelmente diacrônica, pois ela é essencialmente aluvionária. É feita de “aluviões que se acumulam, dos mal-entendidos, das criações linguageiras, de cada um” (Miller, 1996, p. 11, tradução minha). Penso que Lacan nos oferece uma outra perspectiva da pulsão como energia em estado livre, não ligada em representações articuladas, que corresponde ao que Freud chamou de processo primário. Lalíngua são os processos primários dominados pelo autoerotismo. Trata-se do inconsciente real, onde o significante se apresenta como bobagem, tropeço sem sentido, que é muito mais da ordem do erro do que do lapso.
Logo, no último ensino de Lacan, nem tudo que é real é racional. Porque não há relação sexual, o gozo não pode ser escrito, formalizado, nem mesmo pelo objeto a. Em contrapartida, tudo que experimentamos como gozo, é o gozo contingente com o objeto a. A natureza do discurso é, justamente, a de ser um semblante, uma defesa contra o real. O semblante funde, mistura a razão com a sensibilidade. O semblante por excelência é o fantasma – tela que protege e janela que se abre para o real do jeito de cada um. É o modo como cada um subjetiva o real, o gozo, a causa, a pulsão. O real, no último ensino de Lacan não é um sentido incognoscível, originariamente recalcado que se opõe ao Outro do simbólico, é o fora do sentido absoluto. Todo sentido é uma invenção – uma defesa, mas também uma semblantização do real – que persiste disjunto do simbólico e do imaginário.
Não resta dúvida que afirmar que não há relação sexual é outra maneira de tratar o tema da disjunção entre o real e a civilização. A semblantização do real, nesta nova perspectiva, não é necessariamente da ordem do recalcamento. Ao contrário, eu ousaria defender a tese de que toda semblantização é uma sublimação direta e que pode não passar pela castração ou pelo mito do Édipo. Talvez o fantasma, como o modo de cada um gozar do inconsciente, resulte mais diretamente do destino sublimatório das pulsões do que do recalcamento. Poderíamos abordar o fantasma de cada um como uma solução, uma invenção de um modo inédito de inserção na ordem simbólica.
Em seu curso de 2009/2010, intitulado “Perspectivas dos Escritos e dos Outros Escritos de Lacan”, Jacques-Alain Miller retoma algumas reflexões sobre o último ensino de Lacan. Ele nos recorda que o ponto de vista baseado no sinthoma privilegia o modo de gozar em sua singularidade. O conceito de sinthoma é desestruturante, ele apaga as fronteiras entre o sintoma e o fantasma. O sinthoma, na medida em que ele é o que cada um tem de mais singular, não se parece com ninguém, está fora do que é comum. É singular e incomparável, intraduzível, é a língua inventada por um sozinho. O sinthoma é um acontecimento de corpo, cujo estatuto mais profundo é o real sem sentido. O laço analítico visa, em cada um, o gozo próprio do sinthoma, na medida em que ele exclui o sentido. A exploração do inconsciente encontra no gozo sem sentido um impasse irredutível para o deciframento. Por essa razão, Lacan qualifica o sinthoma como acontecimento de corpo. Ele é substancial, tem consistência de gozo. Em lugar da tese, “lá onde isso fala, isso goza”, a orientação para o sinthoma acentua que “isso goza, lá onde isso não fala e não faz sentido”.
Podemos concluir que começamos a pensar a constituição do sujeito como laço simbólico ao significante que ele encontra no campo do Outro. Existe aí certa dicotomia, pois o significante interpreta, recalca a verdadeira causa que mergulha no inconsciente incognoscível. Depois, com o objeto a, temos uma concepção de laço entre o sujeito e o Outro baseada naquilo que eles têm em comum. A natureza do objeto é lógica. É uma falha, um furo no campo dos significantes, mas é também uma consistência, uma substância gozante. No pano de fundo desta teorização existe a idéia de que há um gozo absoluto que é impossível, inconcebível e não aparelhável. Todavia, o que Lacan promove é muito mais a idéia do objeto possível, do encontro contingente, do mais-de-gozar em jogo no laço entre o sujeito e Outro. Em lugar de uma dicotomia temos o modelo de uma parceria. Também o lugar do analista neste tempo do seu ensino é o do objeto a, causa do desejo, lugar do que é comum ao sujeito e ao Outro.
E em seu último ensino? Que lugar ocupa o analista? Podemos nos basear neste tipo de laço para redefinir todo laço social? O que é o psicanalista em sua relação ao sinthoma? De acordo com Miller, o lugar do analista no último ensino de Lacan não se define mais pelo lugar do objeto a. O analista é um sinthoma (Coelho dos santos, 2007, p. 57-72). Ele se sustenta do não sentido, ele não se explica, não se sabe o que é que o motiva. Ele é muito mais da ordem do semblante de traumatismo, do acontecimento de corpo. Como entender este novo lugar sem passar por uma comparação com o analista no lugar do grande Outro e o analista no lugar do pequeno outro (objeto a)? O primeiro é o lugar do par código/mensagem, tesouro dos significantes, bateria fonológica. É o analista intérprete, encarnação do inconsciente como discurso do Outro. É talvez o analista apropriado para a civilização que promove a crença no Outro consistente, no qual o Nome-do-Pai funciona como ideal ou sintoma coletivo e que a descoberta do sentido inconsciente, recalcado tem efeito de verdade. O segundo, o objeto a, foi introduzido por meio dos objetos parciais, mas progressivamente foi reduzido à forma topológica que a repetição contorna na busca da satisfação. É o analista que encarna a parcialidade e a contingência do gozo possível. Pode-se pensar que se trata do analista apropriado à civilização em que o Nome-do-Pai está em declínio e que o laço social tende a se produzir compartilhando o objeto do gozo. Mais além do objeto a, a concepção do analista como um parceiro traumático encarnaria, acredito eu, o desencontro, a não relação sexual, o autismo do gozo. Esta outra concepção do lugar do analista seria a mais apropriada para uma época que teima em homogeneizar os indivíduos, que distingue os indivíduos em incluídos e excluídos, a pretexto de combater a desinserção?
Como analisar o sinthoma se, em sua última definição, ele é um modo singular de gozo, um funcionamento positivo do gozo, um dispositivo de gozo, que não é passível de ser interpretado? Se ele é um acontecimento traumático de corpo, já é uma resposta. Miller avança neste terreno sugerindo que no dispositivo analítico e sob transferência, existe uma chance de que essa lalíngua se articule aos significantes oferecidos pelo analista para interpretá-la, encadeá-la, colocá-la em discurso. Miller acrescenta que se trata-se aí da tensão interna ao dispositivo analítico entre o mais real no sinthoma – que graças à debilidade do aparelho psíquico, sempre se apresenta fora-do-sentido - e a magia da interpretação que permite reduzí-lo e submetê-lo ao sentido.
Se tomamos a via sugerida por Miller, radicalizamos o ponto de vista da desinserção para todo ser falante. Somos todos desinseridos. Todo sinthoma é um modo singular de gozo e o Outro é o Outro de cada um. Diferentemente da concepção do laço social fundada na idéia de que o objeto a é comum ao sujeito e ao Outro, o ponto de vista baseado no sinthoma promove a idéia de que cada enodamento entre os registros e absolutamente inédito. Deste ponto de vista, cada um se insere no simbólico ao seu modo. Partimos da desinserção generalizada e concluímos pela inserção singularizada para cada um.
No que se refere à orientação lacaniana, há questões que me embaraçam. Tem cabimento demonizar, por exemplo, uma certa ordem simbólica comparando-a com outra? Se os circuitos pulsionais são escritos no momento do encontro com uma língua, numa certa família, num determinado momento histórico de uma dada civilização, como distinguir o que é do sujeito e o que pertence ao Outro particular que é o parceiro de cada um? Como julgar se isso que se produz - graças ao acaso dos encontros e desencontros – está mais inserido ou menos inserido na ordem simbólica que o engendrou? Tendo a concluir que a idéia mesma de ordem simbólica, do ponto de vista das pulsões, é bastante discutível. O que torna a idéia mesma de inserção ou de desinserção bastante carente de fundamento. Embora seja indiscutível que os ideais democráticos de nossa civilização tendem a incitar um gosto acentuado pela homogeneização do uso e do ususfruto dos corpos, a clínica muitas vezes nos mostra que a relação de cada um com as ideologias hegemônicas é mediada pela sua forma singular de gozar de sua vida. Eu chegaria a dizer que o sinthoma é uma defesa contra toda tentativa de indivíduos ou grupos de coletivizar o gozo. Se isso é uma conclusão acetável, é preciso muito cuidado para não generalizarmos um discurso que nos defenda dos discursos hegemônicos. Como analistas, talvez seja melhor deixar que cada um invente sua forma de usar o que os discursos que circulam numa dada sociedade lhe oferecem para viver melhor. Toda oposição maniqueísta entre sujeito e civilização, pode levar a produzir analistas reivindicantes: histéricos ou paranóicos.
Notas
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“Trata-se de instintos componentes, cuja função é garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, e afastar todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam imanentes ao próprio organismo” (Freud, 1920, p. 56-57).
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“O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto” (Freud, 1921, p. 91).
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“De acordo com o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo” (Freud , 1921, p. 128).
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“A sublimação é um processo que diz respeito à libido objetal e consiste no fato da libido se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse processo a tônica recai na deflexão da sexualidade. A idealização é um é um processo que diz respeito ao objeto; pó ela, esse objeto é engrandecido, sem qualquer alteração em sua natureza” (Freud, 1914, p. 11).
Referências bibliográficas
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LACAN, J. (1959/60) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1986.
LACAN, J. (1975/76) Le seminaire, livre XXIII: le sinthome. Paris: Seuil, 2005.
MILLER, J.-A. “Le monologue de l’apparole”, in La Cause Freudienne. Paris: Diffusion Navarin, n. 34, 1996 p. 7-18.
Citação/Citation: COELHO DOS SANTOS, T. A dimensão real da desinserção na ordem simbólica. Revista aSEPHallus, Rio de Janeiro, vol. VI, n. 11, nov. 2010 / abr. 2011. Disponível em www.nucleosephora.com/asephallus
Editor do artigo: Tania Coelho dos Santos.
Recebido/Received: 19/01/2010 / 01/19/2010.
Aceito/Accepted: 25/04/2010 / 04/25/2010.
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