Portador de uma mensagem e, portanto, de uma significação, o sintoma satisfaz ao mesmo tempo um gozo obscuro, refratário ao sentido. Se nós o amamos mais do que a nós mesmos é porque ele é nossa marca singular dos primeiros traços linguísticos que marcam o corpo: a abordagem lacaniana do sinthoma dá conta desta positividade irredutível. Porém, para desembaraçar o sintoma, a análise lança mão de palavras, de significantes, ou seja, de semblantes. Estes semblantes sobre os quais o sujeito neurótico se apoia são referências estáveis: o Nome-do-Pai, o falo e o objeto a formam um ternário que é também um tripé teórico.
Assim, recorre-se forçosamente ao sentido, ao semblante, para ler a opacidade do gozo, observa Jacques-Alain Miller. O binário “Semblante e sinthoma” reflete esse hiato entre sentido e gozo: como fazer valer finalmente “a borda de semblante que situa o núcleo de gozo”? É a questão clínica e teórica do VII Congresso da AMP.
Todo o esforço de Lacan, em seu último ensino, consiste em dar uma definição do sintoma que inclua ao mesmo tempo o efeito significante e o gozo, ou seja, incluindo no sintoma o automatismo da repetição. É em seu Seminário RSI que ele poderá finalmente dar ao sintoma esta definição – “a maneira como cada um goza do inconsciente, enquanto o inconsciente o determina”. A partir de 1975, portanto, ele define o sintoma como um modo de gozo do significante. É a razão pela qual ele substituirá a problemática da interpretação pela problemática da decifração, fazendo do sintoma uma função que inscreve ao mesmo tempo I e (a). “É o que, mais do que tudo, está apto a escrever o nome próprio como particular do sujeito”, sublinha Miller em “O sinthoma, um misto de sintoma e de fantasma” (1998). O conceito de sinthoma é uma maneira de ultrapassar o dualismo significação-gozo em jogo na oposição entre sintoma e fantasma, uma maneira de conjugar a verdade do sintoma e a satisfação do fantasma.
O sintoma, no tratamento analítico, se faz processo de escrita, visa a escrever algo do gozo do sujeito, algo como seu nome próprio. É a aposta lacaniana, que o sulco da escrita – traço, signo ou letra – não cessa de escrever o gozo do sujeito. Limitado a dizer, o inconsciente cifra o gozo e demanda ser decifrado. Lá onde a escrita havia falhado para esse sujeito é o trabalho da letra e sobre a letra que vai poder operar sobre o gozo.
A particularidade deste caso é que se trata de um sujeito que escreve e publica livros, o que coloca o problema da sublimação. Sabe-se que muitos escritores, como Sartre, por exemplo, se mantiveram à distância da psicanálise porque estavam persuadidos de que o tratamento os privaria do recurso à escrita. É a ideia de que a escrita está do lado do gozo enquanto a palavra toca no mais íntimo do desejo, tanto que ela se dirige ao Outro do saber e se expõe ao corte como na interpretação. A transferência inclui o desejo do analista, inclui o ato analítico. No tratamento analítico, o sujeito é sujeito no gozo e demanda, para além do sentido e da significação, que o corte do ato opere sobre o gozo o qual se encontra encoberto.
Lacan, no Seminário XI (1964, p. 244-45) define a mola fundamental da operação analítica como a mantenedora da distância entre o I e o a. Ele insiste assinalando que há uma diferença essencial entre o objeto definido como narcísico, o i(a), e a função do (a). É nesta perspectiva que se pode interrogar sobre o que nós chamamos, seguindo Freud, de “sublimação”. Com efeito, este tratamento concerne um sujeito cuja vida é dedicada a uma atividade literária, socialmente bem-sucedida. Porém, a análise vai permitir que ele se desfaça do casulo narcísico, túnica de Nessus colada na pele, construída a partir de uma atividade sublimatória. Entende-se como, para além de i(a), se tornou possível aos poucos colocar em jogo e isolar o a – o qual, no processo, fez aparecer a diferença sutil entre o nada derradeiro no qual o sujeito se refugiava e o vazio do sujeito do inconsciente. O efeito de desvelamento se produz quando um objeto (o olhar) dá lugar ao desprendimento de um outro mais fundamental (a voz), o que permite ao sujeito firmar com o Outro da linguagem um novo pacto de gozo. Ele pode então inventar um sintoma que faz dele um vivente, lá onde a escrita mantinha sua antiga aliança com a morte.
Ele escrevia livros por assim dizer “desde sempre”, rabiscando compulsivamente um moleskine preto onde ele registrava pequenos acontecimentos, muitas vezes mesmo ínfimos detalhes da vida corrente que retinham sua atenção: “isso” o olhava e a escrita lhe servia para absorver o excesso de gozo escópico. Desde a infância, apesar e por causa de seu sofrimento, ele aprendeu a se servir da escrita, tanto para assustar, quanto para seduzir. Ele provou o poder das palavras, encontrou um estilo, e conheceu o sucesso. Entretanto, sempre via o traço daquilo que lhe tornava inapto à verdadeira vida: no fundo, seu êxito era índice de uma falha, do fracasso nele do vivente.
Este fracasso nele do vivente se manifestou em sua vida segundo modalidades diversas: a morosidade e a tristeza que ele vivencia como uma “covardia”, impossibilidade de aceder à paternidade, adoecimento do corpo em acidentes repetitivose, sobretudo a perda do sentimento da vida que é liquidada após a morte de seu pai - pela depressão e pelas ideias suicidas que o acompanham - para finalmente levá-lo à análise.
É um sujeito que escreve, mas, apesar disso, sua paixão pela escrita não lhe faz sujeito. O que o distingue é sua maneira de apagar-se, de desaparecer, de ausentar-se. Ele se retira, se afasta do mundo para escrever. Para ele, a escrita não é dirigida ao Outro: “Eu me deixo atravessar por estas palavras das quais eu me faço na ocasião de escriba”, indica ele. Somente no meio do percurso de sua análise, ele consentirá em fazer esta confissão: “Eu me sinto frequentemente arrastado por esta perda que é a minha, e que eu posso nomear como ‘gozo de nada ser’”.
Escrever livros não lhe permitiu se manter desejante, mesmo se isso o manteve em vida. Ele precisava da palavra dirigida ao Outro da transferência para sair do autismo do gozo e encontrar acesso ao desejo, indo além desta sublimação que sustentava seu narcisismo e o incitava a se mortificar. Da sublimação, conseguir fazer sintoma: esta passagem de um a outro não autoriza um uso radicalmente novo do objeto (a)?
O apagamento do sujeito
Bastien tem dezoito meses. Seus pais lhe ofereceram um jogo de cubos para empilhar e ele os manipula com satisfação. Seu irmão, de três anos e meio de idade, se apropria subitamente dos cubos para atirá-los ao ar. O pai está presente, mas não intervém. Seu riso é para seu primogênito, muito mais um encorajamento para que ele continue o lançamento. Passado este primeiro momento de surpresa, Bastien decide se reunir à alegria geral e saltita no cômodo, aplaudindo as façanhas do irmão do qual, ele é, no entanto, vítima.
Esta cena infantil não é proveniente das lembranças precoces de Bastien. Ele a extraiu de um dos cadernos que seu pai lhe deixou; pois este, durante o período feliz de seu casamento, possuía uma espécie de crônica da vida familiar, da qual seus filhos e sua esposa eram os protagonistas. Esta cena, tal como ela foi descrita pelo pai, indica de maneira surpreendente a posição de cada um: demissão do pai e onipotência do irmão, não sem a cumplicidade de Bastien, que adota uma posição masoquista. Após ter relatado e comentado esta cena e sessão, ele dirá: “Certo de sua superioridade física, meu irmão persistiu em suas façanhas até o fim... Eu, meu jogo de construção, são as palavras”.
Possuído pela pulsão, carregado de uma violência surgida do afrontamento ao irmão e ao pai, Bastien escreve, com efeito, desde a adolescência. Ele preenche cadernos, compõe artigos, escreve livros. Fez disso seu ofício. Depois dos dezesseis anos, ele aprendeu a domar a escrita e mesmo a tirar benefício dela, mas sempre na dor. Se ele encontrou o traço de singularidade que lhe permite existir e interessar os outros, ele vê aí o traço do que lhe deixava inapto a uma verdadeira vida – em particular inapto à paternidade. Seu êxito é para ele o índice de uma falha.
A escrita se impôs para ele quando ele era ainda aluno do secundário, e estava sempre presa à nostalgia de sua infância na África. Entra em conflito com seus professores, que ele provoca, e com seus pais, que ele exaspera. Obtém maus resultados, não trabalha mais e é finalmente expulso de várias escolas por razões de disciplina. Nesta época, ele vive sozinho em Paris com seu irmão, reencontrando seus pais apenas nas férias de verão. Longe do autoritarismo de seu pai, ele imagina que tudo é permitido, o que o perturba profundamente. É a idade das primeiras experiências sexuais, mas ele deve, para se autorizar, transgredir o interdito que seu pai colocava sobre o sexo e passar além da educação puritana que recebeu. Para se orientar na vida, ele não pode se apoiar em um pai rígido e frágil que lhe inspira, ao mesmo tempo, ódio, desprezo e piedade, mas também ternura. É neste momento de crise e de confusão de sentimentos que ele é capturado pela escrita. Permanentemente, em sua escrivaninha ou naquina da geladeira, ele escreve com frenesi, até esquecer tudo o que se passa ao redor: o tempo, os aborrecimentos, a vida.
Fracasso e devastação
Marcado por uma educação rigorosa na qual o prazer não tinha muito lugar, seu pai deixou a residência familiar para se casar quando ainda era jovem. Dois meninos nascem em três anos. Alguns meses após o nascimento de Bastien, sua mãe engravida novamente, mas fica doente e a gravidez é posta em perigo. A criança, então com dez meses de idade, é posta em um berçário por algumas semanas. A este abandono do Outro, ele responde com insônia e anorexia, o que se repetirá várias vezes no curso de sua vida. A partir de então, a família viverá seu drama: a mãe coloca no mundo um menino que não viverá senão algumas semanas. Ela terá ainda mais duas crianças que morrem recém-nascidas antes que nasça uma filha, esta irmãzinha que encantou Bastien. Ele lhe dedicava todos os seus cuidados.
Enquanto isso, seu pai é acometido por uma tuberculose que o manterá afastado de casa durante dois anos. Ele jamais se reabilitará completamente. Seu filho lamenta não tê-lo conhecido ativo e bem de saúde, mas sempre cansado, irritável, sonolento e dependente de medicamentos dos quais ele não mais separar-se-á até o fim de sua vida. Esse traço do pai inaugura, aliás, sua aversão por medicamento e reforça sua escolha pela análise.
Ao lado de sua mãe, sempre de luto, chorando por seus filhos mortos e seu marido ausente, Bastien vai procurar suavizar seu sofrimento compartilhando suas preocupações, distraindo-a, forçando-a a se interessar por ele, custe o que custar. É preciso que ela retorne à vida, que dirija seu olhar para ele. É preciso encontrar o que poderia apaziguá-la, satisfazê-la. Do sanatório onde é cuidado, seu pai mantém contato com seus filhos lhes escrevendo contos que tratam dele próprio. Bastien se ocupa muitas vezes, entre quatro e cinco anos, de cortar e costurar juntas as folhas de papel para fabricar pequenos cadernos que intrigam sua mãe, à qual ele faz esta promessa: “Quando eu crescer, mamãe, eu te escreverei livros!”
O traço da escrita
Traço adotado de seu pai, a escrita é, primeiramente, aquilo em que seu pai fracassou, e que ele pode retomar por sua conta para sucedê-lo e lograr êxito lá onde seu pai falhou. Ele pode, produzindo livros, rivalizar-se com ele, ultrapassá-lo e se distanciar dele. Ele escreve, então, sob um nome de empréstimo – primeiro uma matrícula, em seguida, um pseudônimo - livros essencialmente autobiográficos.
Para além da significação edipiana – onde o livro vem no lugar de uma criança feita para mãe – a análise leva-o a produzir uma outra, ligada ao abandono do desejo do Outro. Ao saber da análise do filho, sua mãe lhe relata o momento em que ela teve que confiá-lo a uma instituição. Ela queria preservá-lo de sua aflição de ficar novamente grávida e doente. Ela estava deprimida demais para se ocupar dele; um dia na varanda de seu apartamento, enquanto ela o tinha nos braços, ela imaginou-se saltando no vazio com ele nos braços e ficou com medo. Lá onde o desejo do Outro se havia eclipsado, lá onde a voz da mãe subitamente estava morta, o traço da escrita é sua resposta ao furo encontrado no Outro, uma solução para operar sobre o real do gozo, e assegurar à sua maneira alguma coisa de uma transmissão. Que a vida continue, ao preço de uma certa mortificação.
A vida amorosa e sexual lhe é muito valiosa. Amar e ser amado, desejar e ser desejado são para ele essenciais. Ele amou apaixonadamente duas mulheres; a segunda é a eleita de seu coração há vinte cinco anos “sem que este amor tenha ganho uma ruga”, diz ele. Apesar de seu estilo de vida anticonformista, ele é totalmente fiel e considera agora a possibilidade de dar seu sobrenome à sua companheira. As duas mulheres importantes em sua vida têm traços absolutamente idênticos: no momento do encontro, elas são casadas com outro, são mães de dois filhos, o segundo com apenas alguns meses de idade. Bastien entra na vida delas, assume o lugar de amante (jamais o de marido) e vive intensamente a relação com o filho que dá seus primeiros passos chamando-o de papai. Ser realmente pai não foi possível para ele; ele não pôde ser senão o filho, o irmão, o amante.
Com dezessete anos, ele engravida uma jovem moça “por acidente”, mas se recusa a desposá-la “para consertar”, como queria seu pai. Recuando diante da solução de aborto, ele considera por um momento criar sozinho esta criança... É o impasse. A única saída que se apresenta é, então, o acidente: ele pega emprestado a moto de seu irmão, que ele não sabia conduzir, e bate na calçada a toda velocidade. Quando sai do coma depois de alguns dias, ele fica sabendo que não terá mais o filho: a gravidez terminou acidentalmente. Ao sair do hospital, ele é incapaz de retomar seriamente seus estudos, sofre de violentas enxaquecas e atravessa um episódio de anorexia. Ele empreende então uma psicoterapia em um centro de consultas para estudantes, tratamento que encerrará em dois anos, uma vez aliviado de suas enxaquecas.
O impasse do luto
Seu pai já agoniza quando sua mãe decide lhe comunicar. O velho homem, debilitado pela doença, desejou vê-lo após doze anos de separação. Mas é tarde demais: seu pai está em processo de reanimação e não pode mais falar. Bastien, submerso pela culpa de uma ruptura da qual ele é o único responsável, fica em sua cabeceira, assiste a seu fim, acompanha o corpo onde ele deve ser enterrado. Ele chora com todos de sua família.
Logo depois, ele é assaltado pela necessidade de escrever – de escrever (sobre) seu pai, de dizer o amor e o ódio que os unia um ao outro, mas, sobretudo, os arrependimentos que lhe restavam. Durante este trabalho, ele se depara com dificuldades particulares, imprevisíveis, insuspeitáveis. Ele modela as palavras, retorna sem cessar em certas passagens que lhe resistem, modifica a forma sem satisfazer-se. Ele finalmente decide acrescentar no livro o conto que seu pai lhe havia escrito quando criança, com a menção do sobrenome do autor. Assim, ele que sempre publicou sob um pseudônimo – do qual havia feito seu nome – começa a desvelar seu sobrenome de família através do de seu pai, a fim de restaurá-lo no lugar de autor, que ele sublinha assim: “Não se diz, para designar o pai pela metáfora, o autor de meus dias?”.
A função assumida até então pela escrita encontra neste ponto seu limite, o da impotência em concluir ou em pelo menos permitir o trabalho de luto. A escrita fixa o sujeito em um gozo do qual ele não pode se separar: o luto se mostra impossível. Além disso, a publicação do livro não produziu o sucesso esperado, somente um sucesso íntimo. Fica então a angústia, depois o buraco negro da depressão. Sonâmbulo desde sua infância, ele perde o sono, reencontrando a cada noite a sombra real da morte, o fantasma ameaçador do pai que ronda e vem acertar as contas. É para escapar desse inferno que ele procura a análise. Até então, ele tinha a escrita para ampará-lo; a escrita para tornar a vida suportável, a escrita para sustentar seu gozo, a escrita como compulsão à repetição, reencontrando a cada vez esta suspensão particular – fora do tempo, fora da castração – onde ele desafiava a morte. O que podia advir dele, se daqui em diante a escrita lhe provocava horror?
A cifragem do gozo
A transferência já estava lá, a espera. A abundância de sonhos testemunha em pouco tempo o despertar do sujeito, o que lhe permite recuperar o sono. A escrita do sonho o apazigua. Ele registra seus sonhos em um de seus famosos cadernos para fazer disso, durante um tempo, o essencial das sessões. Constrangido a dizer, o inconsciente cifra o gozo e demanda ser decifrado. Lá onde a escrita havia falhado, é sob transferência que o trabalho da letra sobre a letra vai poder operar diretamente sobre o gozo. Uma série literal e litoral se libera, como um imperativo de gozo, que seria “se calar” (não “divagar”): se calar, se esconder, se enterrar.. 2
Pois a letra, para além do sentido e da significação, concerne à relação que Bastien mantém com a escrita. O corpo sofre de um excesso de gozo que exige um tratamento, uma transformação: é aqui que a letra opera, na junção entre o corpo e o significante. No momento em que ele vem à sessão com sinais de um herpes no rosto, Bastien se lembra de ter sofrido uma crise semelhante por volta dos dez anos de idade, quando estava de férias na casa de sua avó. Ele se coçava e a infecção havia atingido o nariz. Sua avó chamou o doutor cujas palavras lhe inquietaram: se ele continuasse a se coçar, a infecção atingiria o cérebro e podia morrer. Ele se lembra de sua angústia e da febre que agitava seu corpo durante a noite, acentuando mais ainda as comichões insuportáveis. Ele saiu com dificuldade de sua cama e foi encontrado no sótão, datilografando freneticamente em uma velha máquina escrevendo um monte de cartas, para enganar a angústia e suportar a febre que queimava seu corpo.
Após ter produzido um livro discretamente articulado ao trabalho analítico, Bastien interroga o lugar e a função da escrita em sua vida. A fala precedeu a escrita como trabalho de borda do real pulsional. O ato analítico visa a separar o sujeito de sua posição mortífera – continuar a ser uma criança para ser o falo morto da mãe – e a produzir o novo. Ele é um sujeito dividido que pode consentir à fala ou à perda, sem, todavia, desconhecer o peso do real. Não se trata mais para ele de tapar os furos do Outro a qualquer preço – ao preço de sua vida.
A castração ou a morte: aquele que realmente sacrificou sua vida para o Outro todo-poderoso e não castrado foi seu irmão primogênito que se suicidou no momento em que sua esposa se separava dele. Este evento dramático forçou a perda e o levou a fazer o luto do ideal do herói que encarnava este irmão que mais cedo veio suplantar a impotência do pai. Ao fazer isso, ele se separou de seu duplo, atualizando assim um fantasma de gemelaridade que lhe assegurava uma espécie de completude imaginária que se apoiava no objeto olhar: a lei muitas vezes insensata do irmão vinha no lugar do silêncio paternal e o olhar geralmente implacável do primogênito vinha apaziguar a presença-ausência da mãe depressiva, indiferente a seus filhos, quando não era hostil.
A marca do sujeito
Construindo no tratamento sua neurose infantil e chegando mais perto de sua relação com o gozo, Bastien descobriu a amplitude da devastação materna. Tratava-se para ele de enfrentar a pulsão de morte encontrada tão cedo na mãe, no ilimitado do gozo feminino próprio a esta mãe mortífera e suicida – uma mãe machucada a tal ponto que viveu como uma mãe potencialmente assassina.
Isso abriu a questão do gozo materno, de sua opacidade, de suas afinidades com a morte e da maneira como seus filhos – bem mais que sua filha, paradoxalmente – foram capturados por esta hiância. O primogênito, pouco dotado para as palavras e inteiramente dedicado às façanhas esportivas, acabou se precipitando. Bastien construiu sua vida sob o poder das palavras, sob a magia do significante e a função da letra que operam sobre o gozo. Isso não evitou o adoecimento de seu corpo, que quebrasse seus ossos, que sofresse acidentes e mesmo de ausências, que caísse muitas vezes em coma. Ao menor incidente em sua vida, ele pode se imaginar, se ver morto – corpo morto estendido no chão. Sem dúvida pode-se ver o índice de um real que impele o sujeito a se apagar para descompletar um Outro sem desejo, não castrado e, portanto, ameaçador: ele quer furar este Outro, ele queria ainda que o Outro não castrado se fizesse de Outro do desejo e dirigisse seu olhar sobre ele. Mas ele encontra apenas a hiância mortífera do gozo infinitamente silencioso deste Outro. De onde o traço da escrita aparece, nesta perspectiva não edipiana, como uma resposta à devastação materna.
Um sonho surpreendente veio recolocar em cena o acidente apagado de sua memória, esta queda mortal tão traumática que se repetiu apesar do trabalho de escrita e durante uma interrupção da análise: o choque terrível, uma grande vertigem, o barulho da moto pulverizada, seu corpo que se desloca tocando a calçada... Mas, não. A calma retorna enquanto ele se sente deslizar lentamente sobre o chão, seu corpo descrevendo como em câmera lenta uma imensa curva. Ele ouve, no sonho, ressoar estas palavras: “O livro continua”. O grande livro da vida.
A morte ameaçadora, de fato, é aos poucos colocada à distância. Ele consegue domar a hiância mortífera que, à noite, se abria sob ele para absorvê-lo inteiramente. Ele não desperta mais tremendo e aterrorizado, tendo em mente a solução do suicídio. Precipitar-se voluntariamente nesse abismo lhe parece agora absurdo. A morte com olhos vazios que o fascinava não faz mais seu Outro todo-poderoso, ele não se faz mais de objeto de seu gozo. Ela encontrou seu justo lugar: a morte está no horizonte da vida e ninguém pode lhe escapar. O único sacrifício ao qual é preciso consentir é o da castração, e ele percebe como a lógica de sua existência está articulada em torno desta escolha do ser o livro ou ser a libra de carne.
Graças à operação da transferência, a decifração do inconsciente permitiu ao sujeito decifrar uma parte do gozo mortífero. De seu laço íntimo e aterrorizante com a morte, ele pode dizer hoje: “Por que não fazer dessa particularidade um traço, uma marca sem a qual eu não seria quem eu sou?”.
O núcleo do sintoma
Este tratamento mostra como um objeto a pode ocultar outro. Posto em primeiro plano como mais-de-gozar pela escrita que valia como sublimação, o olhar revela aqui o valor fundamental que se vincula à voz, em um sonho surpreendente: “Eu sou um olho, um olho separado da visão, do qual eu queria a todo preço conhecer o segredo. Mas eu fico desapontado com o que descubro: ela contém em si tão pouca coisa, simplesmente a úvula no fundo da garganta”. Da leitura deste sonho surge para ele uma evidência: uma letra caiu, é a subtração da letra N que faz a diferença entre “óculos” e “úvula”3. O corte da sessão intervém sobre esta letra que equivoca com “ódio”. Ele sai, como dirá mais tarde, “literalmente aturdido”. Pode-se aqui evocar a indicação de Lacan: “Ele odeia e ele é... um ódio, um ódio sólido, ele se dirige ao ser”.
Ele considera então que sua obra pode continuar em suspenso, inacabada. Ele situa a lógica de sua constatação em relação à função atribuída à escrita: ela era necessária para viver, na medida em que ele precisava suportar um excesso de sofrimento que assim podia ser reabsorvido. Mas, se a escrita se nutria da dor, como alimentá-la daqui em diante? Ele vislumbra a inconsistência do que ele chama de sua obra, ao mesmo tempo em que sua vida é destituída do modo de gozo que lhe é próprio – apagar-se, fazer-se desaparecer como sujeito.
Este instante de ver introduz o tempo para compreender e produz um ganho de saber: “eu não escrevo para me expressar, mas para me calar”. Ele dá ao seu tratamento uma finalidade precisa, a de acabar com “O medo do medo”, do que Lacan nomeia como angústia – aquela que surge da “suspeita que nos vem algumas vezes de nos reduzirmos ao nosso corpo”. Este momento, que antecipa o término da análise, vai permitir aproximar o nó do sintoma em torno deste objeto a que era até então sacrificado ao Outro – a voz.
Um sonho testemunha o surgimento da causa do desejo “Um berço é deixado em frente à porta do jornal onde eu trabalho. Eu devo cuidar da criança que lá se encontra: um pequeno ser que desaparecia sob uma avalanche de bonecas inanimadas, crianças mortas. Ouvindo atentamente, eu chego a perceber um minúsculo fio de voz –sou eu gritando em silêncio”. Para além do enunciado, a voz é o indicador do sujeito da enunciação. A escrita deixa de ser para ele a “a única solução para seguir sob o peso dos mortos”. A dimensão do ato alcança neste “ouvir atentamente”, que faz eco ao dizer de Lacan –“que se diga fica esquecido atrás do que se diz no que se ouve” (1972, p. 449).
Na sequência desse sonho, ele confiará à analista seu projeto – escrever. É a primeira vez que ele pode considerá-lo sem vergonha, a primeira vez também que ele pode falar disso a sua companheira. Ele confessa, assim, o gozo de contrabando que detinha sua escrita. Há mais de vinte anos que ela é sua parceira, mas ele escrevia somente sem que ela percebesse, às escondidas, se isolando, “como um ladrão”.
Uma leitura do ato
Desde que ele não se condena mais ao trabalho forçado que era a escrita, desde que a queixa não está mais lá para alimentar o sintoma, ele interroga o final da análise à luz da escolha do ser no qual ele se reconhece: “A escrita é o que me permitiu ser, sem jamais ter que existir”.
Mesmo não escrevendo mais, ele manteve a escrita no horizonte a todo custos, como possível recuperação do gozo perdido. Como renunciar a partir do momento em que ele está absolutamente convencido de que é seu destino, seu próprio ser: “Não se cura pela escrita... Mas quando me perguntam se eu escrevo, isso é ridículo! Pergunta-se a alguém vivo se ele respira...?”.
Recentemente, enquanto ele se encontra entretido por um manuscrito do qual ele não consegue se separar, é invadido por uma angústia repentina e informa ao analista que no caso de lhe acontecer alguma coisa ao sair da sessão, tomou o cuidado incluir na primeira página deste manuscrito que o acompanha em todo lugar: “Manuscrito inacabado, para enviar a meu editor...”, com o nome e o endereço deste. No final que ele antecipa, é o objeto livro que o representa, sob o pseudônimo que ele escolheu como assinatura e que é um nome de gozo – “Motus”, poderia ser o equivalente dele mesmo.
Este momento particular, onde ressurge maciçamente a angústia de morte onipresente no início do tratamento, é um apelo ao ato separador: o analista é convocado a ele como editor do texto inconsciente a decifrar.
Na sessão seguinte, e, surpreendente contraste, ele exprime sua satisfação com relação ao trabalho do ano anterior: ele trabalhou muito, escreveu prefácios, múltiplas reedições. Seu trabalho de escritor se transformou em trabalho de edição. Ele escolhe textos já antigos que modifica introduzindo uma nova pontuação, espaço e intervalos – fazendo-se assim editor de sua obra.
Mas ele tem a relatar, sobretudo, o que foi para ele um evento na véspera. Durante uma discussão com a mulher que ele ama, ele pôde dar a voz e exprimir sua agressividade sem que esta se voltasse contra ele e lhe deixasse, como de costume, com vontade de morrer. “Eu percebo agora a que ponto se calar leva à morte”, conclui ele. O analista interrompe a sessão, fazendo ressoar levemente seu nome de autor. Do som4, para além do sentido, de alguma forma. Surpreso, ele se põe a rir.
O objeto voz e o sujeito da enunciação
É a última sessão antes do longo intervalo das férias de verão, ele chega com um sonho que anuncia de imediato como um “sonho de passe”: um balde repleto de materiais imundos, viscosos e escuros, sai um recém-nascido que possui em seu rosto um gorro de carne, uma espécie de máscara que ele arranca e deixa um beijo em sua boca. Beijo separador, posto que ele se descola dessa Coisa imunda que era a criança morta.
Como não evocar aqui, nesta imagem onde surge o real pulsional do sintoma, uma boca que se beijava ela própria e, portanto, que amordaçava a si própria? Este beijo na criança morta, esta aliança com a morte via o amor, representa a mordaça que obstruía a boca, hiância que se revela no momento do ato: “lá onde isso era... o eu deve advir”. Ele precisará que, no sonho, ele comenta o ato ao mesmo tempo em que o cumpre.
Desde sua tenra infância, seu destino estava selado dessa maneira: é do sopro da criança morta que ele tirava sua inspiração de escritor. Estar nesse lugar, assegurar a transmissão interrompida era a consolação que ele oferecia a sua mãe de luto: “Quando eu crescer, eu escreverei livros para você”.
A escrita não o fazia sujeito, ele era somente “o escriba”. O preço a pagar era o mutismo, o apagamento do sujeito esmagado sob o imperativo do gozo: “a escrita, ou a vida”. O ato efetuado no sonho marca a saída da repetição e a satisfação que ele experimenta anuncia o final. Ele arranca a máscara mortífera que estava colada em sua pele –“criança melancólica” ou ainda “cavalheiro de triste semblante” - produzindo aqui um duplo efeito, às vezes efeito de sentido e efeito de furo. O que se desvela com a boca aberta é a hiância da castração. E o que surge é um discurso sem palavras, que acentua a voz pura, o sujeito da enunciação.
O equivoco significante que marca o sonho é indicativo do sentido goze do qual o sujeito se separa. De fato, “balde” indica ao mesmo tempo o resíduo imundo, o “selo” do destino que havia feito seu, mas também o adjetivo “tolo”, que se emprega geralmente para se qualificar, ou, antes, se desqualificar. O “salto” cumprido é o do ato separador, que marca o consentimento do sujeito à causa do desejo5.
Lá onde estava o sofrimento do sintoma, agora há uma satisfação própria ao novo uso que o sujeito pode inventar para ele mesmo a partir de (a).
No final, não há mais nada a esperar da verdade em termos de saber, porque é efetivamente o gozo que demonstra ser sábio: a/S2. Desvela-se o desprezo que sustentava a transferência e advém então a certeza que comporta em si o objeto (a), que uma vez esvaziado de seu gozo mortífero, se torna “a montaria do sujeito”.
A escolha da qual se trata não é mais, daqui em diante,“a escrita ou a vida”: a escolha do sujeito realizado é a vida, não sem a escrita. Tendo encontrado um novo uso para seu sintoma, aquele que era “o escriba” se tornou editor de seu próprio texto, e autor de sua obra.
A voz silenciosa e o apelo à morte
Entretanto, o analisante estima que lhe resta ainda gozo a mais, um excesso que ele mesmo refere à pulsão de morte, à sua obsessão pela morte. Aquilo que vai então se revelar toma uma forma inesperada, surpreendente para o analisante como para o analista.
É a questão do livro que está em curso e da escrita em seu laço com a morte e que traz para o primeiro plano a questão crucial que lhe resta tratar para terminar sua análise. A escrita é um gozo que em parte ligada com a morte, ela lhe permite tratar a questão sem para tanto poder se separar dela nem subjetivá-la. É um impasse.
Um sonho de transferência lhe permite colocar a questão sob a forma do amor. No sonho, ele beija os pés de uma mulher (a analista?), suscetível de corresponder e de se deixar seduzir. Esta báscula é um momento de gozo inefável, totalmente particular: se ela não cede, o encanto é rompido e é o horror; e se ela cede, o pacto da análise que o ligava ao Outro se encontra ele próprio rompido, e é o horror.
Uma ou duas sessões mais tarde, ele me revela estar á alguns dias em um estado bizarro que ele não conhecia há muito tempo: a pulsão de destruição o atormentava, como na adolescência quando ele tinha a tentação de se cortar ou de se mutilar com um estilete, por exemplo.
A analista sublinha o laço com esse sonho onde se conjugavam o gozo e a morte. A cena do sonho entra em ressonância com o laço materno, o gozo incestuoso, a cena da varanda onde ela quase caiu no vazio com ele nos braços... Confissão e segredo de gozo que os liga um ao outro, como inseparáveis... Desde então, ele cai e se machuca frequentemente.
Ele associa ao suspense em que se encontra devido a seu último manuscrito, que demora a se tornar um livro por conta de cenas escabrosas e do escândalo que seu editor teme provocar. A possibilidade de que ele não seja publicado o aterroriza, e a de que ele seja publicado igualmente. A transgressão e a provocação das cenas fantasmáticas, no limite do suportável, não são mais atuais. Era assim que ele se defendia do apelo da pulsão de morte outrora, pelo fantasma: ele não se reconhece mais nisso, e pensa ter encontrado a medida do preço a pagar por isso, ele o indica em outro lugar no livro – mas está suficientemente claro? Ele é acossado pela dúvida. Momento de subjetivação, quando ele percebe a que ponto o gozo e a “depressão” se ligaram.
Como romper, senão pelo ato separador? A analista responde imediatamente aumentando o preço da sessão. Trata-se aqui de opor-se à pulsão de morte e o ilimitado do gozo Outro.
É preciso, com efeito, a interpretação em ato para vir completar os ditos do supereu, de maneira a deslocá-los. Através da voz silenciosa do supereu, a Esfinge tem um dizer de satisfação, um dizer que é “Satisfaça-me, se puder!”. É preciso, portanto, adivinhar, decifrar de onde se origina este dito “Satisfaça-me!”, que ordena ao sujeito que este chegue a um gozo ilimitado: somente o ato analítico pode dar acesso a este Outro gozo no qual o dizer existe nos ditos. No final, a analista deve saber responder ao apelo deste gozo que Lacan chama de uma “satisfação” para além de toda representação. Quer dizer que o final da análise supõe saber obstaculizar esta voz feiticeira da Esfinge, canto das sereias e apelo à voz pura; “Venha, tente se aproximar do Outro gozo...”.
A isso, como o indica Lacan (1972) em “O aturdito”, não há senão uma resposta, que é: “advir ao seu próprio dizer em ato”. Assim, o final de uma análise testemunha de modo particular como cada um soube “fazer calar” a voz inarticulada – esse ponto de gozo “inassumível”, no coração da enunciação – de outra maneira que não pela via do fantasma. Então, a possibilidade de “se fazer ouvir” abre ao sujeito um espaço novo, um lugar vazio que é o da enunciação. Assunção, poder-se-ia dizer, do objeto voz como lugar vazio do sujeito: a voz coloca em jogo o desejo do sujeito como Outro dele próprio, sendo a particularidade desse objeto-voz o que permite um efeito-sujeito. Neste lugar onde o gozo vociferava, mesmo em silêncio, pode advir um sujeito novo, que ex-siste no significante e no simbólico.
O nome do gozo e o fracasso da referência
O texto de J.-A. Miller, “Cequi fait insigne” (1986-87), já fazia valer a articulação do sintoma como verdade e do fantasma como gozo em uma concepção localizada com Joyce no centro do último Lacan, o sinthoma, que tem a ver com a invenção do sujeito.
Quando Lacan define o sintoma como um modo de gozo do inconsciente, ele define precisamente o sintoma como um modo de gozo de S1: essa conjunção e mesmo a superposição de S1 e (a) lhe permite definir um gozo do significante. Ele está, neste momento, à procura de um termo em que o significante é complementado pelo gozo: traço, signo, letra, litoral que insiste na borda, etc. O sintoma é então designado pelo símbolo Sigma e se torna “aquilo que é apto mais do que tudo para escrever o nome próprio como particular do sujeito”.
A semblantização da experiência incita a tentar nomear o inominável do gozo do sujeito. Pode-se assim colocar o semblante do lado da nomeação, ou seja, a partir do nome e do ato de nomeação que ele implica. Assim, o significante-mestre, no lugar de semblante no discurso do inconsciente, se afirma como uma marca que vai se repetindo para conduzir ao sentido. Do lado oposto, no final de percurso e no discurso analítico, a produção, a invenção de um nome que não venha do Outro faz corte com o sentido e permite aproximar S( ) a uma letra, um significante assemântico, um Um-todo-só que faz aparecer o vazio da referência: “Um nome produzido como ex-sistência pode ser tomado como borda de semblante”. Isso permite entrever um uso do semblante dissociado do sentido, um uso que se apoia na separação de S1 e de S2, esta borda de semblante aparecia então como “um ponto de enganchamento do gozo que não depende do Outro”.
Desse encontro inicial e sempre traumático com o gozo, lá onde não estava o desejo do Outro, o sujeito porta um traço indelével – o sintoma. Posto em trabalho de transferência e, portanto, do deciframento do inconsciente, o analisante não terá pausa em alimentá-lo cada vez mais de sentido. Entretanto, o real do gozo em jogo no sintoma se desloca e se repete, tanto que é desconhecido como o sentido goze. Se o encontro com o analista comporta alguma chance de desativar esse sentido goze, é pelo ato que, sozinho, permite extirpar do real a marca de origem para transformá-la em alguma coisa que possa ser nomeada, para além do sentido e mesmo abolindo todos os sentidos.
No tratamento, com efeito, ao lado da linguagem e graças ao amor de transferência, a manifestação da pulsão faz surgir um outro sujeito que não o do significante, um sujeito acéfalo que tem sua gramática própria e que é resposta do real. É um sujeito que não pode se constituir senão a partir do que não existe: o Outro, com efeito, não dispõe do significante que responderia à sua existência.
É preciso considerar que o impossível de dizer possa, no final e, de uma certa maneira, se escrever? O desejo de Lacan convida a colocar em escrita o sujeito tal como ele é produzido pela experiência, esse sujeito acéfalo que é o da pulsão e não mais o do inconsciente. Essa é a aposta de que alguma coisa do trauma possa se inscrever na estrutura da linguagem, que o sulco da escrita possa dar conta do vivente, do corpo, do gozo – por um traço, um signo, uma letra. Uma chance, diz Lacan, de que isso cesse de não se escrever. É da ordem do às vezes, acrescenta ele. É o que não impede de considerar que a pulsão não pode viver sem o sintoma. Isso não significa, portanto, a resolução do sintoma, que, nessa perspectiva, é da ordem do necessário - ele não cessa de se escrever.
Na medida em que a nomeação faz aparecer um vazio de descrição, o significante-mestre como S1 abre “um furo no sentido e o espeta”. Éric Laurent (1998) sublinha como o nome próprio, considerado como designador rígido, ao mesmo tempo fracassa como referência e abre um furo no sentido, equivale a uma espécie de operação topológica: “A cadeia do nome próprio regressa no mesmo furo que se abriu. Esta operação esclarece o paradoxo que formulou J.-A. Miller: tapar com um furo”. É isso que concerne precisamente o término da análise: “A operação do furo no sentido se encontra também no final, no ponto de ancoragem que permite tapar o furo da fuga do sentido pela mesma operação do nome próprio”.
Se o sintoma no final se torna nome, é precisamente porque ele recolhe os interesses do gozo do sujeito. Este novo sujeito não é mais falta-a-ser, mas falasser, ele se associa ao gozo e prescinde do Outro para se nomear, afirmando assim a indestrutibilidade do desejo. Entretanto, sublinha Éric Laurent:
“[...] a experiência analítica revela sucessivamente vários nomes: primeiro o nome do sintoma, depois o nome do fantasma, depois o nome que se atinge no passe ou nomede sinthoma; depois a pesquisa da consequência do nome continua. Ela não cessa. A estrutura lógica de cada um desses nomes é distinta. A lógica do sintoma não é a do fantasma, que não é a do sinthoma” (Laurent, 1998, p. 30).
Assim a criança melancólica da neurose infantil se tornou o ‘cavaleiro com rosto triste’ depois ‘o Escriba’. Antes de descobrir no fantasma onde o gozo do corpo está em jogo, sua posição feminina é como ‘A Princesa e a ervilha’: um nada o faz sofrer. Recentemente, revelando instabilidade em seu humor apesar da nova aparelhagem de seu sintoma em torno do objeto voz, ele se toma repentinamente como “um Stradivarius”, o objeto por excelência, cuja raridade e a fragilidade são célebres... Mas nenhum nome pode fixar seu gozo, e haverá sempre o impossível de nomear e, portanto, de negativizar.
O término da análise revela como a pulsão organiza sintomaticamente a vida do sujeito no modo do mais-de-gozar. Como já notava Freud, a pulsão é um mito para designar a junção do vivente com a linguagem; é o que faz do sintoma o traço do fracasso fundamental do falasser. O que pode então a análise? “A análise não liberta o sujeito do sintoma; ela o liberta do sentido do sintoma, para permiti-lo funcionar de outra maneira”. Como o indica Dominique Laurent,
“[...]o sintoma ao qual se trata de se identificar designa mais precisamente uma nova aparelhagem do gozo, que substitui àquela que organizava até então a necessidade pulsional. O Outro consistente do fantasma, imaginado como depositário do gozo, se torna no final inconsistente – a ponto de produzir o desejo do Outro como tal” (Laurent, 2002, p. 70).
Assim, o último ensino de Lacan concebe o final da análise como saber-fazer com o sintoma reduzido ao seu real, gozo impossível de negativizar. Para além dos limites edipianos, para além do regime do Nome-do-Pai, a solução proposta por Lacan é um consentimento do Outro que não existe, um vazio lá onde o mal-estar da civilização nos impõe, mais do que nunca, a obscenidade do real do gozo.
Tradução: Flavia Lana Garcia de Oliveira.
Revisão: Tania Coelho dos Santos e Lígia Gorini.
Notas
- Texto apresentado na conferência clínica sobre o tema “Semblantes e sinthoma”,em Nice, no dia 30 de janeiro de 2010.
- N.T.: A tradução suprime a semelhança fonêmica entre as palavras na versão francesa: se taire, se terrer, s’enterrer…
- N.T.: No francês, respectivamente, lunette e luette.
- N.T.: A autora parece fazer referência à homografia e à homofonia na língua francesa entre son (seu) e son (som).
- N.T.: A autora aqui se refere à homofonia na língua francesa dos termos seau, sceau, sote saut.
Referências bibliográficas:
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LACAN, J. (1972) L’Étourdit, in Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001, p. 449-495.
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MILLER J.-A. (1998) “Le sinthome: un mixte de symptôme et fantasme”, in La Cause freudienne, Paris: Difusión Navarrin Seuil, n. 39, mai/1998, p. 7-17.
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Recebido em 21/02/2009. Aceito em 24/04/2009.
Received in 02/21/2009. Accepted in 04/24/2009. |