Literatura e Psicanálise: os escritos íntimos e a extimidade1
Literature and Psychoanalysis: intimate writing and extimité

Márcia Rosa

Psicóloga
Psicanalista filiada a Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e a Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Doutora em Literatura Comparada / UFMG
Pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica / UFRJ
Professora da Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da UFMG
marcia.rosa@globo.com

Resumo

Frente à presença marcante do discurso autobiográfico, autoficcional ou testemunhal no horizonte contemporâneo indago quais singularidades a psicanálise introduz ao frequentar, com seus relatos clínicos, essa cultura dos arquivos de si. Para discuti-lo, retomo o debate Lejeune-Doubrovsky sobre o enlaçamento e desenlaçamento entre a experiência do analista relatando casos clínicos ou do analisante testemunhando e a experiência da escrita. Ao ultrapassar a simples dimensão de transcrição ou de relato do vivido já produzido na análise, a escritura permite avançar em pontos deixados obscuros? A presença da escrita na fala analítica introduziria algo novo no tecido narrativo? Com a noção de extimidade, uma “exterioridade íntima”, Lacan evidencia a presença de um ponto de real — das Ding, a Coisa — excluído no centro da organização significante. De que modo os escritos íntimos e os relatos clínicos esbarram e transmitem isso? Afinal, a psicanálise operaria a transmutação do autobiográfico ou autoficcional em discurso científico?

Palavras-chave: literatura, psicanálise, escritos íntimos, extimidade.

 

Abstract

Facing the strong presence of autobiographical, autofictional or testimonial discourse on the contemporary horizon one inquires if with its clinical reports psychoanalysis introduces singularities when it attends this culture of oneself files. To discuss it, one focuses on the debate Doubrovsky-Lejeune about the enlacement and unlacing between the analyst’s experience of reporting clinical cases or the analysand's relating or witnessing his experience and the experience of writing. Going beyond the mere transcription or reporting of what was lived and produced in analysis, the writing experience allow one to advance in points analysis left unclear? The presence of writing in the analytical speech would introduce anything new in the narrative discourse? With the notion of extimité, an "intimate exteriority”, Lacan indicates the presence of a point of real – das Ding, the Thing - excluded in the center of the significant organization. How intimate writings and clinical reports face and transmit this? After all, psychoanalysis would operate the transmutation of autobiographical or autofictional in scientific discourse?

Key words: literature, psychoanalysis, intimate writing, extimacy (extimité).

 

Como escrever e falar de intimidade? Não apenas da nossa intimidade — caso no qual a fala ou o escrito tem o caráter de ‘testemunho’, de ‘relato autobiográfico’ ou ‘autoficcional’ — mas também enquanto clínicos. Como falar e/ou escrever a partir da intimidade de nossos analisantes, situação na qual a fala ou escrita toma a designação de ‘relato’ ou ‘construção de caso clínico’? Nesta comunicação, faço um breve recorte em um work in progress (se me é permitido dar a uma pesquisa um certo ar de nobreza!), no qual privilegiarei um debate presente no campo da literatura contemporânea entre os escritos ditos ‘autobiográficos’ e aqueles ditos ‘autoficcionais’, para indicar, à guisa de conclusão, como a psicanálise nos deixa pistas interessantes a seguir a partir daí.

O debate Philippe Lejeune e Serge Doubrovsky: da autobiografia à autoficção

O tema da intimidade não deixa de suscitar muita polêmica e várias designações no campo da literatura: “escritos íntimos”, “estética da existência”, “literatura de interioridade”, “escritos autobiográficos” e, mais contemporaneamente, “autoficção”. Trata-se, em princípio, de um gênero depreciado. Roland Barthes já nos advertia em meados dos anos 70:


“[...] o “diário” (autobiográfico) está, entretanto, hoje em dia, desacreditado. Cruzamentos: no século XVI, quando se começava a escrevê-lo sem repugnância, chamavam-no um diaire: diarrhée e glaire (diarréia e ranho). Produção de meus fragmentos. Contemplação de meus fragmentos (correção, polimento, etc.). Contemplação de meus dejetos (narcisismo)” (Barthes, 1977, p. 103).


Algum tempo depois, em abril de 1988, a prestigiosa revista francesa de literatura, Magazine Littéraire (n. 252-253), dedicou o seu dossiê ao que denominou genericamente “escritos íntimos”. Sob esse título tratou Montaigne e seu autorretrato, retomou Rousseau e a questão da falta, Gide e a conquista da liberdade através dos escritos de tonalidade autobiográfica, bem como as formulações do clássico pesquisador e especialista francês sobre o tema, Philippe Lejeune. Ainda nessa mesma edição, a Magazine examinou a prática da ‘escrita de si’ — termo que extraio de Michel Foucault (2006), nos domínios anglosaxão, alemão, europeu, tanto oriental quanto ocidental, bem como no domínio japonês. O termo cunhado aí, “escritos íntimos”, nos dá a possibilidade de englobar experiências de escrita tão diversas como as memórias, as confissões (Santo Agostinho, Rousseau), os ensaios (Montaigne), as autobiografias, as cartas ou a correspondência (de Freud e Fliess), os diários íntimos (como o do próprio André Gide, que, dos 20 aos 80 anos — de 1889 a 1949 — cultivou esse gênero de escrita).

Não muito tempo depois, um novo dossiê da dita Magazine Littéraire (n. 409, mai/2002) retomou os escritos íntimos como tema maior. Dessa vez, sob novos termos: As escrituras do eu (moi): da autobiografia à autoficção. No horizonte dessa renomeação, o debate contemporâneo entre dois expoentes: Philippe Lejeune (1938- ) e Serge Doubrovsky (1928- ). O primeiro tem dedicado sua vida a essa temática e chegou a fundar, em 1992, a Associação para a Autobiografia — APPA — reunindo arquivos autobiográficos inéditos de sujeitos quaisquer, não apenas os já clássicos ou renomados. Que uma crônica da nossa época possa ser registrada ou, posteriormente, reconstituída através desse material textual está entre os interesses de um empreendimento como esse, é claro! Serge Doubrovsky, por sua vez, também francês, descendente de um pai russo e de uma mãe francesa, escritor, doutor em Letras e professor que divide seu tempo entre as suas aulas na Universidade de Nova Iorque e Paris, em resposta ao pacto autobiográfico proposto por Lejeune em 1971, classifica o seu livro Fils (1977), publicado em 1977, sob a designação ‘autoficção’, com o que provoca, ou melhor, reabre o debate sobre os escritos íntimos. Através desse termo, Azevedo nos esclarece que a literatura contemporânea encontra uma estratégia:


“[...] capaz de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção e torna híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das discussões novamente a possibilidade do retorno do autor, não mais como instância capaz de controlar o dito, mas como referência fundamental para performar a própria imagem de si autoral que surge nos textos” (Azevedo, 2008).


Dado o amplo reconhecimento e mesmo a notoriedade encontrada pelo termo autoficção, Doubrovsky, ele próprio, recolocou-o em interrogação em 1988, em um artigo interessantíssimo intitulado “Autobiografia/verdade/psicanálise”, no qual se coloca como crítico literário do livro Fils — termo francês que remete tanto aos termos fio, linha, encadeamento, direção (fil), como aos termos filho, descendente (fils) — que ele próprio escrevera em 1977.

Para acompanhar a polêmica contemporânea, é interessante mencionar que, ao se diferenciar da historiografia e da ficcionalidade, a autobiografia ganhara um estatuto próprio. Problemático, tal estatuto constituíra a questão central proposta por Phillipe Lejeune:

“como se articulam [...] o uso referencial da linguagem, para o qual as categorias da verdade (oposta à da mentira) e da realidade (oposta à da ficção) continuam sendo pertinentes, e a prática da escritura literária, para a qual elas se esfumam?” (Lejeune, 1983, p. 427). Uma dezena de anos após o início de suas investigações, o estudioso chegou a declarar que a escrita autobiográfica é “um empreendimento impossível”; o que, conclui ele, “não a impede de existir” (Lejeune, 1983, p. 431).


Ao definir o discurso autobiográfico como aquele em que há uma equivalência entre o autor, o narrador e o personagem, Lejeune nos remete a Benveniste para o trato da questão ‘quem é eu?’. Para esse linguista, “o fundamento da subjetividade está no exercício da língua.” Ao tomar os pronomes pessoais eu, tu, ele como pontos de apoio para a revelação da subjetividade na linguagem, Benveniste evidencia que o ‘eu’ refere-se a algo exclusivamente linguístico, isto é, ao ato discursivo individual no qual é pronunciado; logo, ele não pode ser identificado senão dentro de uma instância de discurso que tenha referência atual. Assim,


“[...] não há conceito “eu” englobando todos os eu que se enunciam a todo instante na boca de todos os locutores, no sentido em que há um conceito “árvore” ao qual se reduzem todos os empregos individuais de árvore. O “eu” não denomina nenhuma entidade lexical. [...] A realidade à qual ele remete é a realidade de discurso” (Benveniste, 1991, p. 288).


Se é “na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito” (Benveniste, 1991, p. 286), o discurso autobiográfico fica em apuros quanto às referências para a verdade e a realidade daquilo que relata. Se tanto o “eu” (Je) quanto o “ego” (moi) não têm outra existência senão de linguagem (existência precária já que sujeita aos deslizes do exercício da língua), tratar-se-ia de encontrar algo que, ainda assim, garantisse a autenticidade de um discurso enquanto autobiográfico. Depois de ter driblado a inevitável questão da distinção dos gêneros calcada na categoria da verdade (fato e/ou ficção), Lejeune se propôs a tratar a espinhosa questão da identidade em jogo nas autobiografias através do que denominou ‘pacto autobiográfico’ (Lejeune, 1981, p. 421).2  Ao constatar — e, isso, no seu clássico texto de 1971 — que todas as identificações levam, fatalmente, à cunhagem da primeira pessoa em um nome próprio, é em relação a ele que o especialista situará os problemas da autobiografia. Nesse sentido, toda a existência do que denominamos autor resumir-se-ia ao nome impresso sobre a capa do livro, sobre a página de abertura, acima ou abaixo do título do volume. Encontrar-se-á aí:


“[...] a única marca, no texto, de um indubitável hors-texte, reenviando a uma pessoa real, que demanda, tão logo se lhe atribui, em última instância, a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. Em muitos casos, a presença do autor no texto se reduz apenas a esse nome, mas o lugar designado a ele é capital: ele está ligado, por uma convenção social, ao engajamento da responsabilidade de uma pessoa real. [...] uma pessoa cuja existência é atestada pelo estado civil e verificável. [...] sua existência está fora de dúvida [...] [fato que] não faz senão sublinhar a crença geral dada a este tipo de contrato social” (Lejeune, 1971, p. 23).


Assim, o nome próprio, “signo de realidade”, fará com que o autor seja “um nome de pessoa, idêntico, assumindo uma seqüência de diferentes textos publicados. Ele extrai sua realidade das outras obras que figuram freqüentemente na abertura do livro: ‘Do mesmo autor’” (Lejeune, 1971, p. 23-24). Portanto, Lejeune constrói um critério aparentemente simples a partir do qual a autobiografia e outros gêneros da literatura íntima, tais como ‘diário’, ‘autorretrato’, ‘ensaio’3, são definidos pela identidade de nome próprio entre o autor, narrador e personagem.

Por conseguinte, fica indicado que o gênero autobiográfico é contratual. Sendo assim, a história da autobiografia seria, antes de tudo, aquela de seu modo de leitura. Lejeune acaba por concluir que,


“[...] se a autobiografia se define por alguma coisa de exterior ao texto, não é em um aquém, por uma inverificável verossimilhança com uma pessoa real, mas em um além, pelo tipo de leitura que engendra, pela crença que secreta, e que se dá a ler no texto crítico” (Lejeune, 1971, p. 44).


Desse modo, se o real o sujeito o leva na sola do sapato, como sugeriu Lacan em um certo momento de seu ensino, esse estudioso dos escritos íntimos acabou por localizar no nome-próprio esse ponto de real no qual, em última instância, torna-se possível definir o que seja um escrito autobiográfico.4

Portanto, para Lejeune:


“[...] em oposição a todas as formas de ficção, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: exatamente como o discurso científico ou histórico, eles se propõem a fornecer informações a respeito de uma “realidade” externa ao texto e a se submeter, portanto, a uma prova de verificação. [...] Todos esses textos referenciais comportam então o que chamarei de pacto referencial, implícito ou explícito, no qual se incluem uma definição do campo do real visado [...]” (Lejeune, 2008, p. 36).


Em resposta a Lejeune, e de modo bastante ardiloso, o escritor Serge Doubrovsky apresentou o seu livro Fils (1977). Decidido a seguir a aventura da linguagem, o livro, um relato evidentemente autobiográfico, ele o classifica como autoficcional. Em uma sinopse na contracapa do próprio livro, lemos que:


“Mal sai de sua casa, eis S. D. despejado em plena Grand Central Parkway, a autoestrada que leva à Nova Iorque: no fio das lembranças que atormentam seu despertar, as estradas que cruzam a sua vida, se diz um exilado americano, doloroso e enigmático. Esses fios, onde tentar desatá-los, se não em seu analista, no curso de uma longa sessão, no qual eles se obstinam em se enrolar em torno do personagem do filho. Particularmente, no sonho do monstro marinho, nascido do texto de Racine no espírito do crítico adormecido. A interpretação do sonho se reverterá na explicação do texto raciniano, cuja nova leitura permitirá reler, por sua vez, a vida do narrador, que a gente terá acompanhado nesse intervalo de tempo, depois da visita ao “psi”, através da balbúrdia solitária de Nova York, dos silêncios calafetados da universidade, até a sala de aula onde se realiza seu gozo: algo se desata. — Autobiografia? Não. Ficção, de eventos e fatos estritamente reais. Se se quer, a ficção de si mesmo, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura de uma linguagem em liberdade” (Doubrovsky, 1977, s.p).5


Apresentado em cinco capítulos cujos títulos em francês e em inglês não desconsideram a sonoridade da língua,6 desde aí o autoficcionista nos remete ao que Lacan denominou lalangue, a lalíngua, uma escrita na qual a sonoridade das palavras faladas, assonâncias, dissonâncias, ressonâncias, apresenta-se de modo determinante nas palavras escritas.

Embora seja evidente a identidade de nome próprio entre o autor, narrador e personagem, o que por si classificá-lo-ia como um escrito autobiográfico, um escrito íntimo, isso não impede Doubrovsky de escrever um prefácio no qual observa:

“Autobiografia? Não, este é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, no entardecer de suas vidas, e em um belo estilo. Ficção, de acontecimentos e de fatos estritamente reais; se se quer, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, deixando fora a sabedoria e a sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, filhos/fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escritura de antes ou depois da literatura, concreta, como se diz musicalidade. Ou ainda, autofricção, pacientemente onanista, que espera fazer agora partilhar seu prazer” (Doubrovsky, 1977, p. 10).


Nos termos de Azevedo, o hibridismo introduzido por Doubrovsky entre o autorreferencial e o ficcional deixa à mostra um “entre-lugar”, um indecidível, através do qual se evidencia o estatuto contraditório do sujeito enquanto um lugar vazio, cuja veracidade referencial é impossível de garantir e, simultaneamente, como aquele de um intruso que se assume como interlocutor de si, colocando-se na posição de autor. O apagamento do eu biográfico deslocará o interesse de uma possível relação entre o texto e a vida do autor, localizando-o na relação do texto como forma de criação de um “mito”, de um “mito do escritor” (Azevedo, 2008), por exemplo. Se, como afirma Lacan, “o mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, porque a definição da verdade só pode apoiar-se sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ela a constitui” (Lacan, 1953, p. 13), os escritos intimos ou autobiograficos constroem e sustentam um mito dito pessoal de que ninguém melhor do que o próprio sujeito para dizer a verdade sobre ele mesmo, postulando com isso uma consciência reflexiva não apenas capaz de se confessar, e com sinceridade absoluta, mas também uma verdade que se diria toda. E é nesse campo que, ao invés de declinar, assistimos a uma proliferação infinita dos escritos de si, dos escritos intimos, a um culto dos arquivos de si (Roudinesco, 2006), na forma de testemunhos, de relatos autobiográficos, de blogs etc., na nossa contemporaneidade. Assistimos a uma tentativa decidida de se “dar forma e impressão individuais ao vazio gramatical do shifter ‘eu’ (je), de modo que entre todos os ‘je’ possíveis, o pronome não possa mais, no limite, denotar senão um nome próprio. Eu-Montaigne, Eu-Rousseau” (Doubrovsky, 1988: 61), Eu-João, Eu-Maria etc...

Enlaçamentos e desenlaçamentos entre escrita e psicanálise

Apresentando-se não apenas como um sujeito que tem a experiência da psicanálise enquanto analisante, mas também como alguém que é um praticante da escritura autobiográfica, Doubrovsky se propôs, em um texto produzido em 1988, a um testemunho sobre a relação entre duas de suas experiências: a da análise pessoal e a da escrita. Partindo, obviamente, da constatação de que a verdade do sujeito, em grande parte, é o outro quem a detém, pois, “se minha verdade é o discurso do Outro, como sustentar eu-mesmo um discurso sobre a verdade?” (Doubrovsky, 1988, p. 63), o autoficcionista indaga sobre a relação possível entre os pontos de opacidade deixados ou produzidos pela experiência analisante e o ato da escrita. Ele busca, na justificativa apresentada por Michel Leiris, no seu escrito autobiográfico, a base para a sua discussão. Leiris nos adverte sobre o ato de escrita do seu livro A idade viril (1946), dizendo tratar-se de um ato em relação a ele próprio, “pois, ao redigi-lo, pretendia elucidar, graças a essa formulação mesma, certas coisas ainda obscuras para as quais a psicanálise, sem torná-las inteiramente claras, havia despertado a minha atenção quando a experimentei como paciente” (Leiris, 2003, p. 19). Com seu comentário, Leiris assinala que a escrita não é redutível aos esforços/efeitos de escuta, colocando-se em guarda contra uma escritura que fosse puramente transcritiva, referencial, inocente (Doubrovsky, 1988, p. 65).

A partir daí, Doubrovsky formula questões bastante instigantes sobre a escrita em psicanálise: o que, no ato da escrita, retoma, elucida, por sua própria formulação, “certas coisas ainda obscuras”, para as quais a experiência da psicanálise despertou a atenção do sujeito? E ele continua: frequentemente, os textos de analisados, atualmente bastante em moda, têm vocação documentária: eles relatam, reproduzem, muitas vezes não sem felicidade, o gesto que é, para todo analisante, sua análise; eles ganham corpo nas “verdades” já elaboradas alhures nas “sessões”. Do diário de bordo ao relato estilizado, a escrita tem aí uma função de veículo; ela não faz progredir o escritor ou leitor mais além, na intimidade de um ser, senão até o ponto no qual a análise se deteve. Essa é uma função possível e, aliás, perfeitamente honrável da escritura: a “transcrição”, feita pelo analisante, seria o avesso da “explicação” dos relatos de caso, feitos pelo analista. Em A idade viril, a proposta de Leiris é outra: ela se articula, certamente, à experiência da análise, mas para prossegui-la, talvez ultrapassá-la; ela se situa não no enquadramento, mas em um além de uma experiência da palavra, que se torna experiência autônoma de escrita. Nesse sentido, tratar-se-á de elaborar não uma escrita do inconsciente, mas uma escrita para o inconsciente.

Agora, tornando-se crítico literário, ou seja, leitor do seu próprio livro autoficcional, Fils, Doubrovsky (1988, p. 68) mostra como, no seu caso, o relato, não de um percurso de análise, mas de uma sessão de sua análise pessoal, funcionou no interior de um conjunto textual do qual a sessão constituiu o nó ou o ponto central. À diferença dos relatos de caso tradicionais, o texto “psicanalítico” não constituiu aí senão uma parte do texto total, à diferença do projeto leirisiano, a escrita não foi colocada em trabalho no espaço pós-analítico, mas no espaço mesmo da análise. Ela tentou abrir esse espaço no texto mesmo, produzindo um aquém e um além da experiência no tecido narrativo.

Se a autobiografia clássica acreditava em uma partogênese escritural, na qual o sujeito nasceria de um apenas, a constatação da impossibilidade disso, desde o século XVII, e mesmo antes, e a presença da sessão analítica, que o século XX instaura, darão lugar, na era pós-freudiana, conclui o escritor de Fils, a dois tipos de relatos: aqueles do ponto de vista do conhecimento do sujeito pelo outro (feitos pelo analista), o relato de caso, que constitui aqui uma forma particular de biografia, ou o empreendimento do ponto de vista do próprio sujeito, que resgata uma espécie de gênero antigo que são exatamente os escritos autobiográficos. No entanto, com a psicanálise, uma novidade radical introduziu-se aí: a alteração da solidão radical romântica do “apenas eu” de Rousseau. Ex-analisante, Doubrovsky (1988, p. 73) afirma saber muito bem que o mesmo não nasce do mesmo e que seu autorretrato é, de fato, um heterorretrato, que ele lhe retorna do lugar do Outro.

Enfim, para esse que cunhou o termo “autoficção” (Doubrovsky, 1988, p. 78-79), o sentido de uma vida não é a ser descoberto, mas inventado, construído. Tal seria a “construção analítica”: fingere, “dar forma”, ficção que o sujeito incorpora. Sua verdade seria testada como o enxerto em cirurgia: aceitação ou rejeição. O implante fictício que a experiência analítica propõe ao sujeito como sua biografia verídica é verdadeiro quando ele “funciona”, i.é., se ele permite ao organismo viver (melhor). Se ele for inexato ou incompleto, até mesmo nocivo, ele é rejeitado. E o nosso escritor termina indagando: a autoficção pós-analítica é mais verdadeira enquanto escrita autobiográfica do que o autorretrato clássico com suas ilusões ficcionais? Seria ela mais verdadeira no sentido de uma adequação a um “real” qualquer, exterior ao relato e sua pedra de toque. Quanto a isso, a sua conclusão é que o relato pós-analítico não seria mais verdadeiro, senão mais enriquecido, tal como se diz de uma substância química, como o urânio, por exemplo, que ele foi enriquecido. Jamais formulada ou mesmo formulável, a verdade restaria “entre-dita”. Se o seu estatuto é mítico, por essência ela permanecerá enquanto tal, contradição velada e resolução impossível. Nesse sentido, todo sujeito é mítico e todo relato também, mesmo aqueles sob forma teórica.

Para concluir

Embora formule questões instigantes com relação à escrita em psicanálise, Doubrovsky conclui seu ensaio sem assinalar que não se trata de adequar o relato psicanalítico, seja ele biográfico ou autobiográfico, seja ele feito pelo sujeito como testemunho ou pelo analista como relato de caso, a um real, ou melhor, a uma realidade qualquer que existisse e permanecesse exterior ao relato. Nesse ponto, a experiência da psicanálise se diferencia da experiência da literatura tal como apresentada pelo autoficcionista. Lacan (1959-1960, p. 91) nos permite avançar aqui, ao retomar com Freud a noção de das Ding, como um ponto de opacidade excluído no centro do aparelho psíquico em torno e a partir do qual se constituem os movimentos do desejo. Em relação ao topos psíquico, essa Coisa estaria em posição de exclusão interna, uma “exterioridade íntima, uma extimidade” (Lacan, 1959-1960, p. 173), e, em volta dela, organiza-se o mundo subjetivo do inconsciente em relações significantes.

Em vista disso, podemos indagar: não será que, ao operar com a noção de semblante — a partir da qual se torna possível dizer que o oposto do verdadeiro não seria a falsidade ou a insinceridade, mas o real — e com a noção de extimidade, a problemática gerada pelos ‘escritos íntimos’ sofreria uma torção que permitiria visualizar o escrito não apenas na sua face de íntimo, mas também como êxtimo? Não será que, com as noções de extimidade e de semblante, a psicanálise produziria um giro nos assim denominados ‘escritos íntimos’, de tal modo que se tornaria possível subverter ou mesmo ultrapassar essa partição entre um discurso referencial, biográfico, e um outro, ficcional? Nos termos de Lacan, “o sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia [ou a construção da autobiografia, acrescentaríamos], tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real” (Lacan, 1964, p. 51-52).7 Autoficcional seria, portanto, o modo como cada sujeito localiza, nomeia e opera com esses pontos de real ou mesmo de opacidade. Segredo? Verdade não-toda? Nome-Próprio? Não seriam esses apenas alguns, entre tantos outros, modos de nomear ou escrever a extimidade?

Notas:

  1. Texto apresentado no I Colóquio Internacional: A Bibliofilia contra a bibliometria: o incomensurável da pesquisa em Psicanálise. Outubro de 2010. Depto. de Psicologia/UFMG.
  2. Para Lejeune (1981, p. 421), o termo ‘pacto’ não deixa de ser sedutor, uma vez que evoca “esses ‘pactos com o diabo’ nos quais o sujeito umedece a sua pena no próprio sangue para vender sua alma...” Já o termo ‘contrato’ seria mais prosaico, implicaria algo como um tabelião.
  3. Posteriormente, Lejeune diferencia dos escritos autobiográficos essas outras escritas, tais como ‘diário’, ‘autorretrato’, ‘ensaio’.
  4. Aqui cabe evocar o fato de que Lacan formula uma teoria do Nome-Próprio como algo que é da ordem do real, teoria que encontra, nas formulações do lógico inglês Saul Kripke sobre o nome-próprio como designador rígido, uma fundamentação teórica bastante consistente em termos lógicos.
  5. DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Gallimard, 1977. Apresentação do livro na sua contracapa.
  6. Os cinco capítulos serão denominados: Strates, Streets, Rêves, Chair, Chaire e Monstre, ou seja, Estratos, Ruas, Sonhos, Carne, Cadeira Disciplinar e Monstro.
  7. E Lacan (1964, p. 51-52) continua: “Um pensamento adequado enquanto pensamento [...] evita sempre — ainda que para se reencontrar em tudo — a mesma coisa. O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar — a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, [...] não o encontra”.

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Luciene Almeida. “Autoficção e literatura contemporânea”, disponível em: www.abralic.org/revista/2008/12/23/download. Acesso em: ago. 2010.
BARTHES, Roland. (1977) Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Cultrix, 1977.
BENVENISTE, Emile. (1991) Problemas de lingüística geral. Campinas: Pontes, 1991.
DOUBROVSKY, Serge. (1977) Fils. Paris: Gallimard, 1977.
DOUBROVSKY, Serge. (1988) “Autobiographie/verité/psychanalyse”, in Autobiographiques: de Corneille à Sartre. Paris: PUF, 1988, p. 61-79.
FOUCAULT, Michel. (2006) “A escrita de si”, in Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2.ed , 2006, p. 144-162.
LACAN, Jacques.(1953) O mito individual do neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, Jacques. (1959-60) O Seminário. Livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988a.
LACAN, Jacques. (1964) O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988b.
LEJEUNE, Philippe. (1971) L’autobiographie en France. Paris: Colin, 1971.
LEJEUNE, Philippe. (1981) “Le pacte autobiographique (bis)”, in Poétique, Paris, n.56, p. 416-434, nov. 1983.
LEJEUNE, Philippe. (2008) O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
LEIRIS, Michel. (1946) A idade viril. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
Dossier: Ecrits intimes: de Montaigne à Peter Handke. Paris: Magazine Littéraire, n. 252-253, 1988. p. 18-125.

Dossier: Les écritures du moi. Paris: Magazine Littéraire, n. 409, 2002.  p. 20- 66.
ROUDINESCO, Elizabeth. (2006) “O culto de si e as novas formas de sofrimento psíquico”, in A análise e o arquivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p. 51-76.


Recebido em 12/03/2009. Aceito em 30/04/2009.
Received in 03/12/2009. Accepted in 04/30/2009.