De Irma a Emma: a solução do sonho na dissolução do sentido1
From Irma to Emma: the solution of the dream in the dissolution of sense

 

Antonio Teixeira

Médico psiquiatra
Psicanalista
Mestre em Filosofia contemporânea / UFMG
Doutor em Psicanálise /Paris VIII
Professor associado FAFICH-UFMG
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
Autor de “A Soberania do Inútil” (São Paulo: Anna Blume, 2007)
amrteixeira@uol.com.br

Resumo

O autor se propõe a demonstrar, na transição do sonho da injeção de Irma ao caso Emma, do “Entwurf...”, o reposicionamento subjetivo de Freud, coextensivo a seu afastamento de Fliess, que lhe permitiu abordar a questão do sexual fora do discurso provedor de sentido.

Palavras-chave: sonho da injeção de Irma, projeto para uma psicologia científica, etiologia sexual das neuroses, psicanálise lacaniana.

 

Abstract

The author intends to demonstrate, in the transition from the dream of Irma's injection’s to the Emma’s case of the “Entwurf…”, the subjective repositioning of Freud, linked to his separation of Fliess, which allowed him to treat the question of the sexual condition outside of a sense providing speech .

Key words: dream of Irma's injection, project for a scientific psychology, sexual etiology of neuroses, Lacanian psychoanalysis

 

Pareceu-me conveniente poder trabalhar, nas “Lições Introdutórias de Psicanálise”, o caso Emma, do “Projeto para uma Psicologia Científica”, duas semanas após Ram Mandil ter apresentado a discussão sobre o sonho da injeção de Irma, em razão do fato, esclarecido pelo médico de Freud, o historiador Max Schur, da Sra. Emma Eckstein, referida no mencionado “Projeto...”, não ser senão a própria Irma da “Interpretação dos sonhos” (Schur, 1982, p. 107 e ss). Se me proponho a articular, então, o comentário do caso Irma à discussão do caso Emma, é com o objetivo de esclarecer o índice, visível nessa mudança de nome, de uma modificação de perspectiva essencial à constituição da psicanálise decorrente, por sua vez, de um reposicionamento subjetivo do próprio Freud. Eu ousaria mesmo dizer que a história clínica de Irma-Emma, a despeito de sua brevidade descritiva, mereceria ser tomada como um caso à parte, comparável, talvez, às cinco grandes psicanálises, se considerarmos a transformação que sua evolução veio a produzir sobre a própria construção da teoria psicanalítica.

Sabemos, entre outras coisas, que o tratamento de Irma se deu na fase de maior intensidade da amizade que Freud manteve com seu colega, o otorrinolaringologista W. Fliess, o qual, nesse período, estava construindo uma teoria completamente delirante que associava as atividades genitais ao funcionamento das mucosas nasais. Estamos também cientes de que, nessa época, Freud, procurando saber se alguma patologia sinusal poderia explicar os sintomas abdominais recorrentes de Emma, solicitou o parecer de seu amigo Fliess, que logo prontificou-se a examiná-la, decidindo por uma intervenção cirúrgica. Sabemos, ainda, do efeito completamente desastroso dessa intervenção cirúrgica, do qual resultaria uma crise presente na origem do afastamento progressivo de Freud, com consequências determinantes na construção de sua doutrina. Vale, então, demonstrar em que sentido se pode demarcar, a partir do caso Emma, a percepção freudiana da questão sexual nos termos que, ao distanciá-lo definitivamente da companhia de Fliess, irão se tornar específicos da teoria psicanalítica.

Podemos encontrar, no dicionário de E. Roudinesco, a informação de que Emma Ekstein, parente do futuro psicanalista Paul Federn, era uma paciente conhecida da família de Freud, a quem ele atribuía uma especial importância (Roudinesco & Plon, 1997, p. 523). Segundo consta, seu caso teria se complicado com uma infecção tão grave, após a intervenção cirúrgica, que Freud logo veio solicitar sua reavaliação por outro otorrinolaringologista, o qual constatou que o caro Fliess havia esquecido nada menos do que cinquenta centímetros de gaze nas cavidades nasais de sua paciente. Emma teve que ser operada várias vezes, vindo a sofrer graves hemorragias que a deixaram em estado crítico.

Em vista dessa história, é compreensível supor que o sonho da injeção de Irma seja interpretado como uma resposta ao desejo de Freud de se desculpar, de transferir, de certa maneira, a culpa do que aconteceu a Fliess, como o próprio sonhador no-lo indica. Mas é preciso considerar algo mais do que uma simples motivação pré-consciente para se pensar o desejo onírico que se apresenta essencialmente discordante em relação a ela: o que se encontra verdadeiramente em questão concerne à culpa do próprio Freud, relativa à sua transferência dirigida a Fliess. Essa culpa diz respeito à angústia, que tal transferência vem colmatar, de se haver com a questão do sexual segundo uma perspectiva que a psicanálise, então nascente, nesse momento inaugura, mas para a qual o seu próprio criador não estava preparado. Essa perspectiva inaugural da psicanálise, tal como ela se indica no sonho da injeção, aparece no laço que associa o espetáculo assustador da carne informe, que surge no fundo da garganta de Irma quando Freud a examina, à fórmula que posteriormente emerge, em sua visibilidade literal, da trimetilamina:

 

Três questões, então, de imediato se colocam, a propósito do sonho da injeção de Irma:

  • Por que motivo dizemos que, pela psicanálise, abre-se uma perspectiva inaugural sobre o sexual, da qual esse sonho seria o primeiro grande índice?
  • Em que sentido a associação — visão do fundo da garganta de Irma-Emma/surgimento da fórmula matemática da trimetilamina — sinaliza essa nova perspectiva?
  • Por que a assunção epistemológica, por parte de Freud, dessa perspectiva resultou no seu afastamento progressivo e inexorável em relação à Fliess?

Digamos, no que diz respeito ao primeiro ponto, que muito embora a psicanálise possa situar a questão da sexualidade na etiologia do sofrimento psíquico, segundo a convicção que Freud partilhava com Fliess, o gesto inaugural de Freud não consiste na construção de uma teoria que viesse dar sentido ao sexual, como é o caso da teoria de Fliess. Seja qual for a importância atribuída pela psicanálise à determinação sexual do pensamento e do inconsciente, é um erro conceber a perspectiva psicanalítica ao modo de um saber sobre o sentido da sexualidade, cuja temática teria permanecido supostamente confinada às conversas de alcova da era vitoriana.

Foucault não se cansava de argumentar, no volume I de A História da Sexualidade, que a cultura ocidental já há muito havia constituído um saber sobre o sexo bem antes da psicanálise, ainda que fosse com a finalidade de discipliná-lo no interior do modelo familiarista progressivamente constituído pela sociedade burguesa ao longo dos séculos XVIII e XIX (Foucault, 1997, p. 22 et seq.). Mas, seja como for, o fato é que nunca faltou uma colocação do sexo em discurso a partir desse período, aliás, marcado por uma verdadeira extorsão da verdade sexual, por mais que essa exposição visasse, em última instância, a prática de sua restrição pela via do controle disciplinar dos corpos e de seus enlaçamentos. Porém, o essencial, prossegue Foucault, é que a multiplicação dos discursos sobre o sexo, anterior à psicanálise, tenha se dado predominantemente no campo dos exercícios de controle do poder: se, desde então, se procura seguir o sentido do sexual até suas ramificações mais capilares, é na medida em que disso depende o domínio dos corpos nas disciplinas de trabalho e nas práticas educativas que moldam o indivíduo nos lugares determinados pela ordem social.

Somente há sentido, portanto, em falar de um gesto inaugural do saber psicanalítico, em relação ao sexo, se tivermos em mente algo de radicalmente distinto de mais uma forma de saber ou de apreensão cognitiva do sexual. Afim de melhor indicar o que vem a ser essa perspectiva que a psicanálise inaugura, cabe enfatizar que o que está em questão, para a psicanálise, é menos o desejo sexual como objeto de seu domínio discursivo, do que a consideração do próprio saber como uma atividade eminentemente sexualizada, eminentemente atravessada pela questão do desejo. Retomando uma fórmula cara a Lacan, diríamos que o desejo não se deixa articular como objeto de um enunciado por já estar desde sempre articulado no nível da enunciação. Por isso, interessa à psicanálise a consideração clínica do saber investido pela dimensão do sexual, cujo impedimento ou liberação vem produzir efeitos clinicamente verificáveis de inibição ou de avivamento da curiosidade intelectual, como o estudo de Freud sobre Leonardo da Vinci amplamente indica. Assim, no lugar em que o dispositivo disciplinar veio gerar um saber sobre a sexualidade infantil, refletido nos regulamentos elaborados para a vigilância dos contatos e das proximidades corporais, a psicanálise vem dar visibilidade às próprias teorias sexuais infantis, às ficções teóricas que as crianças constroem em resposta aos problemas que elas mesmas se colocam face à experiência enigmática do sexo. A psicanálise interpela a verdade do sexual no nível do seu enigma: no lugar de gerar um discurso que determina o seu significado, ela situa o sexual no próprio impasse semântico do qual germinam essas tentativas sempre ficcionais de lhe conferir sentido.

Mas, se isso assim ocorre, se, para a psicanálise, a própria atividade do saber se encontra constituída pela questão sexual, é na medida em que essa questão não se deixa resolver pelo discurso significativo. No lugar de estabelecer-se como um saber sobre o sentido do sexual, a psicanálise coloca em evidência a questão do sexual, em sua dimensão de enigma, como uma função de suspensão do sentido. Desse ponto de vista, o caso Irma-Emma nos parece particularmente relevante para pensar a constituição do saber psicanalítico: sua evolução nos permite acompanhar, com especial nitidez, o abandono determinante da perspectiva referida ao sentido do sexual. É ela que permite a Freud, finalmente, chegar a uma “literalização” manifestamente “assemântica” do sexual, representada pela fórmula da trimetilamina, no lugar em que a teoria de Fliess estabelecia o conhecimento do seu sentido numa verdadeira copulação discursiva.

Para melhor esclarecer esse ponto, vale ainda lembrar que o que autoriza Lacan a qualificar o discurso do conhecimento como uma metáfora do sexual, concerne justamente ao fato de que o exercício do conhecimento se constitui pela convicção de que a relação sexual não somente existe como é a fonte donde jorra inesgotavelmente o sentido. Por se valer das relações de simetria e complementaridade próprias ao registro do imaginário, toda teoria do conhecimento é essencialmente especular, essencialmente calcada no eixo reflexivo da similitude. Por isso, o conhecimento se apoia na noção de uma conaturalidade entre sujeito e objeto, que Lacan ironiza com o trocadilho “co-naître”, em suas observações críticas sobre o relatório de D. Lagache (Lacan, 1966, p. 666). O mundo, para o conhecimento, é simétrico ao sujeito, assim como o pensamento é a imagem em espelho do objeto pensado (Lacan, 1954-55, p. 172). É o que se verifica, aliás, no verbete filosófico do dicionário de Lalande, onde a “teoria do conhecimento” é concebida como estudo dos problemas levantados pela relação do sujeito e do objeto. Sua definição postula claramente uma subordinação do intelecto cognoscente à natureza do objeto a ser conhecido, como se houvesse uma espécie de relação projetiva entre o objeto e sua representação mental (Lalande, 1988, p. 171-172). Se há algo, portanto, de falaz e mítico no conhecimento, é porque, em torno da crença nessa relação complementar entre sujeito e objeto, gravita, suspeita Lacan, uma tentativa de encontrar no mundo a complementaridade ilusória da relação sexual2.

Dali decorrem os constantes acasalamentos discursivos entre os princípios masculino e feminino (Miller, 1987, p. 40-41) que se repetem, reciprocamente, seja nas relações entre a forma e a matéria, proposta por Aristóteles em sua História dos Animais, seja na articulação entre os princípios Yin e Yang, na filosofia oriental chinesa, ou ainda na relação complementar entre anima e animus, que tanto anima a psicologia especulativa de Jung. Não longe disso, desenvolve-se, por sua vez, a teoria da sexualidade de Fliess, cuja tese da lateralidade atribui o lado esquerdo ao feminino e o lado direito ao masculino. Sua “especularidade” prossegue na delirante obra sobre O nariz e os órgãos genitais femininos, em que é proposto conceber uma estrutura do corpo humano na qual os cornetos nasais repetem a estrutura da vagina, com suas localizações genitais que se incham durante a menstruação. Dela resulta sua ensandecida prática de intervir cirurgicamente no nariz para suprimir distúrbios supostamente sexuais, cujos efeitos perniciosos Emma e o próprio Freud conheceriam em seus corpos. E, se isso não bastasse, sua teoria termina por estender o fenômeno da menstruação aos próprios homens, para chegar, finalmente, à concepção grandiosa de um universo inteiramente regulado pelos períodos menstruais.

Por felicidade, Freud não se confunde com Fliess, não somente porque Freud nunca foi um paranóico, como também pela razão maior de que a perspectiva que a psicanálise inaugura sobre o sexo não é da ordem do conhecimento. Seja qual for a importância — decerto decisiva — da escuta de Fliess, é preciso ter em mente que Freud dele recebia não a teoria, mas sim, como assinala Serge André, a sua própria mensagem invertida (André, 1987, p. 32). O importante a se frisar é que o discurso da psicanálise não se estrutura como um conhecimento, na medida em que a ausência de inscrição simbólica da relação sexual vem a ser justamente o dado traumático que o dispositivo analítico recolhe no nível da experiência clínica.

É, aliás, em razão dessa ausência de inscrição simbólica da relação sexual que todo conhecimento depende, para se expandir, de sua sustentação na dimensão do imaginário que comentamos há pouco. Por se apoiar na dimensão especular do imaginário, o mundo se coloca, para o conhecimento, como simétrico ao sujeito num campo em que o pensamento aparece como imagem refletida do objeto pensado, assim como seus princípios se colocam em termos de encaixes complementares. Por ser imaginário, o conhecimento é essencialmente tagarela: sua estrutura reproduz, indefinidamente, a duplicação especular do mesmo em sua discursividade pletórica; tudo e qualquer coisa pode ser colocado em relação de similitude já que não existe princípio de regulação que contenha o imaginário. Diríamos mesmo, n’en déplaise aux junguiens, que a vastíssima erudição de Jung pode, de certo modo, ser pensada como sintoma de sua debilidade mental no sentido que Lacan define a debilidade mental como um pensamento à côté de la plaque (Lacan, 1972-73), ou seja, como um pensamento sem mira, cuja aparente abundância denota menos a sua riqueza do que sua incapacidade estrutural de definir seu alvo discursivo.

Não deixa de ser relevante lembrar, a esse respeito, que a psicanálise parecia ter tudo para se constituir como mais uma teoria do sentido (André, 1987, p. 43). Isso se atesta no rumo tomado pelos discípulos de Freud que dele divergiram — Adler, Jung, Groddeck, Reich, Ferenczi e, finalmente, o próprio Abraham: todos cairiam, um após o outro, na viscosa teia do sentido de que somente Freud sairia. A psicanálise tinha tudo para ser mais uma hermenêutica, posto que lida com fatos discursivos, além de depender de operações interpretativas nas quais a trama da narrativa é frequentemente soberana em relação ao fato narrado. Suas proposições são de difícil verificação empírica e não se pode negligenciar o efeito semântico de seus enunciados. Foi preciso, no entanto, que a complicação decorrente da intervenção desastrosa de Fliess sobre Emma Eckstein — cuja gravidade foi tamanha que Freud, ao acompanhá-la, por pouco não desfalecia —, foi preciso que essa complicação apontasse, no real, para Freud, o limite às expansões imaginárias das explicações de sentido às quais seu contexto o submetia. Tal limite, como real do sexo, fora do sentido, é precisamente o que se manifesta no sonho da injeção de Irma.

Para não perdermos a mira, indiquemos desde já que Freud, no sonho da injeção, ao buscar no interior da cavidade nasal de Irma a causa do seu padecimento, em conformidade com a teoria explicativa de Fliess, ali encontra algo de inominável, esse algo medonho que Lacan nos convoca a perceber como efeito do real, na imagem disforme da carne aonde se mesclam todas as significações e que por isso mesmo não determina significação nenhuma (Lacan, 1954-55, p. 208-209). É justamente em resposta a esse momento que aparece com toda intensidade, na segunda parte do sonho, a fórmula escrita da trimetilamina, eu digo a fórmula, e não a imagem dessa substância, que pode muito bem ser explicada como um produto do metabolismo sexual. O importante é que ela ali aparece na “literalização” de uma fórmula química.

Pois esse é o ponto: ali, onde o real do sexual se manifesta no sonho de Freud, ele não mais dispõe, para disso tratar, de um discurso significativo, como era o caso da teoria paranóica de Fliess. Seu único recurso é agora a “literalização” matemática que se apresenta na fórmula química da trimetilamina, como agenciamento do significante fora de toda intenção significativa. Trata-se de uma fórmula, observa Lacan, que não fornece nenhuma explicação (Ibidem, p. 202), cuja ausência de sentido é a única resposta à pergunta pelo sentido do sexual. Pois não somente é próprio à “literalização” matemática, como também é disso que depende sua eficácia: que ela não se preste à produção do sentido. Vale notar que Freud, transformado a partir desse momento, passa progressivamente a recusar toda concessão, que ele ainda tolerava, à perspectiva do conhecimento, para, finalmente, assumir o que acreditava ser sua vocação de cientista. A prova disso é que em julho de 1895, poucos meses após ter realizado o sonho da injeção de Irma, ele se verá tomado por uma inspiração febril que o levaria a escrever de um só jato seu “Projeto para uma psicologia científica”. É em relação a esse dado, referido por Freud à assunção definitiva da perspectiva da ciência contra o conhecimento, que me parece pertinente tratar do caso Emma a partir da idéia de um aparelho libidinal.

Como se percebe, a concepção científica de um aparelho libidinal, vinculada, por Freud, a uma verdadeira mecânica do psiquismo, vem agora traduzir uma exigência epistemológica que se contrapõe, de maneira radical, a toda tentativa de explicação da questão sexual pela via da doação de sentido. Pois, se a ciência se distingue do conhecimento, é na medida em que o emprego da “literalização” matemática, da qual ela se vale, resulta, justamente, do esforço de se purificar ao máximo a dimensão do simbólico da profusão imaginária do sentido. No lugar habitado pelas relações especulares de similitude no discurso do conhecimento, a ciência agora instaura relações puramente diferenciais entre letras cujo valor depende, unicamente, da posição que elas ocupam no interior de uma equação.

Assim, ao passo que, para o conhecimento qualitativo da física aristotélica, a força de atração era concebida, mediante seu sentido descritivo, como uma propriedade natural que tem um corpo de se dirigir ao elemento que lhe é próprio — ou seja, indo do mesmo ao mesmo, como é o caso do fogo, propelido por sua natureza a dirigir-se para cima, por oposição ao objeto pesado propelido para baixo, quando entramos no caso da física newtoniana —, a força, reduzida à letra f, agora se define pela relação puramente diferencial que ela mantém com a massa e a aceleração, na equação f = m.a, ou senão com a massa de dois objetos e o quadrado de sua distância, conforme a equação da lei de gravitação universal:

F = G. m1.m2
          d2

VT-COMPRESS


Há, como se vê, uma passagem da relação especular ao mesmo, vinculada ao conhecimento, para a relação puramente diferencial da equação matemática, própria ao manejo científico do simbólico depurado do imaginário. O discurso da ciência se vale da letra matemática como colocação em ato daquilo que Jacques-Alain Miller nomeia de significante sem intenção, na medida em que o elemento que se “literaliza” na fórmula científica por si só não quer dizer nada a ninguém; ele somente vale como peça da engrenagem mecânica que a fórmula matemática exibe.

Se a explicação científica se estrutura assim, como uma sintaxe do real, ela nos priva de sua semântica (Bachelard, 1934, p. 10-13). Ela não nos dá jamais o porquê, o sentido ou a razão de ser do que suas leis formulam; ela somente nos fornece o como. Por se estruturar como um saber depurado da referência ao sentido, a própria idéia de uma determinação do porquê ou de uma causalidade final dos fenômenos encontra-se abolida do horizonte da ciência. Por isso Newton acrescenta, em apêndice na segunda edição dos seus Principia, a afirmação de que não lhe cabe estipular a causa final ou a razão de ser relativas ao fato de que o fenômeno da gravitação segue as leis que ele havia formulado: “eu não finjo hipóteses”, escreve ele, esquivando-se definitivamente desse assunto.

Podemos, então, finalmente, reconhecer no “Projeto...”, escrito em julho de 1895, uma tentativa — ficcional, decerto — de se valer de uma concepção mecânica e “literalizada” da dimensão sexual. No lugar do nariz reproduzindo a vagina, teremos agora somente os neurônios definidos como funções puramente matemáticas de permeabilidade à ou de recepção ao período igualmente matemático de excitação. A fórmula da trimetilamina seria, nesse sentido, a solução “literalizante” do que o “Projeto...” tenta desenvolver: inserir o sem sentido do sexual numa formalização refratária ao sentido imaginário do conhecimento. A demanda, por parte de Freud, de uma resposta a Fliess, observa S. André, agora merece outra interpretação: peço, por favor, que me diga que estou errado, a fim de que eu saiba que tenho razão.

Irma retorna agora à cena como o caso Emma, do qual Freud se serve para explicar a gênese da compulsão histérica. Ali se discute o mecanismo em jogo na psicopatologia de um quadro de evitamento histérico relativo à impossibilidade, relatada por essa paciente, de entrar desacompanhada numa loja, em razão da ideia, que se lhe impõe contra sua vontade, de se expor ao riso dos vendedores. A Freud interessa menos, nesse momento, o valor semântico dessa ideia compulsiva do que o nível mecânico de excitação que faz com que determinadas representações “hiperintensas” (überstarken Vorstellungen) apareçam de uma maneira que não se justificaria no curso normal dos fatos. Como bom leitor de Espinosa, Freud bem sabe que o quantum de afeto, ligado a tais representações, não poderia ser suprimido pela simples intelecção de seu sentido; sua supressão depende da produção de outro afeto de efeito contrário. O fator econômico-quantitativo de longe importa mais do que a compreensão do sentido, sobretudo em se tratando de pensar a natureza das idéias compulsivas, cujo caráter patológico se manifesta justamente em sua refratariedade aos esforços de elaboração intelectual do paciente.

A compreensão do sentido passa a ser concebida como fonte do erro relativo à falsa premissa (proton pseudos) que a consciência de Emma recolhe, ao supor que o motivo de seu temor compulsivo estaria ligado à lembrança de uma cena, vivida aos doze anos de idade: ao entrar numa loja de roupas, Emma dali saiu correndo assustada ao ver dois vendedores rindo, pensando que eles se riam de seu vestido. Fica patente a falsidade dessa compreensão: ela é facilmente refutada pela ausência de angústia quando ela se encontra acompanhada, mesmo que seja por uma criança, ou pelo simples fato de que, se fosse esse o caso, bastaria que ela se trajasse adequadamente para que seu temor do ridículo não se manifestasse. É somente mais adiante que ela se recorda de uma cena anterior, ocorrida aos oito anos de idade, que esclarece a natureza de seu sintoma: ao entrar numa confeitaria, um dos vendedores a abordou sexualmente, tocando-lhe os genitais sob o vestido, num estabelecimento ao qual, mais tarde, ela retornou, para depois se reprovar. Não sem acrescentar que o vendedor se ria ao fazer isso.

Se o sintoma de Emma inicialmente se apresenta como falsa conclusão colhida de uma falsa premissa, seu tratamento consiste em recompor as verdadeiras conexões que o determinam. Mas o que dá inteligibilidade ao mecanismo da ideia compulsiva encontra-se para além de um suposto sentido atribuído à representação patológica. Essa compulsão se explica pela conexão com outra representação, “hiperinvestida libidinalmente”, que a ela se liga não por uma relação de sentido, mas pela concomitância de uma experiência marcada por intensa carga de excitação que somente a posteriori recebe sua significação sexual.

Nada mais distante de Freud, vale dizer, do que uma clínica de orientação fenomenológica. Nenhuma análise fenomenológica da essência, nenhuma redução eidética das representações nos leva ao fator traumático que se localiza em sua causa — no caso, o atentado sexual. Para retomarmos uma ilustração cara a Husserl, por mais que se reduza a definição de triângulo às suas propriedades essenciais, no sentido que se tirarmos uma só delas o triângulo deixa de ser pensável, não há nada dessa operação que nos conduza, por exemplo, à ideia de um triângulo amoroso surgida em associação na fala de um de meus pacientes que sonhara com um problema de geometria. É preciso se haver com conexões causais definidas não pela significação transcendental do conceito, mas pela intensidade da carga afetiva ligada às representações, em razão das circunstâncias acidentais em que elas se deram. São ligações, causas que dependem antes da carga de energia libidinal da qual essas ideias foram acidentalmente investidas, em razão de experiências ocorridas na história de um determinado sujeito. Dali se explica a inutilidade, apontada mais tarde por Freud, de se explicitar a causa das neuroses fora da situação transferencial, como se bastasse remover a ignorância da qual padece o sujeito neurótico para que ele possa se recuperar: “Tais medidas [...] têm tanta influência sobre os sintomas da doença nervosa, como a distribuição de cardápios numa época de escassez de víveres tem sobre a fome” (Freud, 1910, t. VIII, p. 123-124). É somente ao transportar o paciente, por meio da via ficcional da transferência, à situação emocional em que se produziu o recalque, que o psicanalista logra alterar as condições afetivas do seu sofrimento.

A consideração do afeto ligado ao significante, para além do tratamento puramente hermenêutico das representações psíquicas, longe de obscurecer o fenômeno clínico, nos dá a inteligibilidade de suas conexões. O que interessa a Freud não é o sentido da loja em si, nem tampouco do riso dos vendedores, tomado isoladamente, mas a rede de conexões que faz com que Emma seja afetada por essas representações. Assim, do mesmo modo que se pode dizer, na esteira de Deleuze, que o cavalo domesticado tem mais parentesco — ou seja, mais afetos em comum — com o boi do que com o cavalo selvagem (Deleuze, 1981, p. 167), vale acrescentar que a confeitaria, na constelação afetiva de Emma, tem mais parentesco com um lugar de assédio sexual do que com qualquer outro estabelecimento de vendas.

A cada vez, portanto, que emerge um estímulo relacionado a essa experiência, Emma se vê afetada por uma incompreensível reação de evitamento. Se ela se vê impedida de tratar dessa experiência pela via do discurso significativo, é na medida em que a intensidade de sua carga libidinal transborda o curso normal do pensamento, conduzindo a vias de descarga relacionadas ao processo primário, não inibido. Não se pode, portanto, alcançar a representação dessa experiência recalcada mediante a dedução do seu sentido, uma vez que a excitação transferida, pelo recalque, dessa representação para a ideia compulsiva, segue a via do processo primário, indiferente ao procedimento conceitual do processo secundário. Tudo que sabemos, indica Freud, no momento de redação do “Entwurf...”, é que tal recalcamento afeta exclusivamente os complexos de representações pertencentes ao domínio sexual, que, embora permaneçam intensamente investidas, ficam excluídas do processo de elaboração cogitativa (vom Denkvorgang ausgeschlossen) (Freud, 1895, p. 430-431). O essencial não é que tais complexos não cheguem à consciência — eles podem, inclusive, nela emergir —, mas que permaneçam excluídos de sua elaboração mental. A resistência contra sua elaboração cogitativa nos dá a própria medida do nível de compulsão da ideia patológica, a qual se transfere, no caso de Emma, para a inocente imagem do vestido. Por que, então, pergunta-se Freud, a constelação das ideias sexuais encontra-se submetida a esse processo que separa uma representação do seu processo cogitativo, ou seja, que separa o pensamento da via do sentido?

Trata-se, como se pode bem ver, de uma questão no mínimo paradoxal: como dar sentido a uma dimensão essencialmente alheia ao discurso significativo? Os leitores do “Entwurf...” bem sabem que Freud, ao fazer-se essa pergunta, elencou algumas hipóteses relativas ao significado traumático que a passagem pela puberdade provocaria retroativamente sobre as representações, na ocasião em que se deram anódinas, da experiência sexual infantil, mas o dado biológico não esgota a questão. Mais importante do que o que Freud ali diz, parece-nos ser o que ele nos dá a ver na parte inferior de seu notável esquema sobre o evitamento compulsivo:



Conforme observa S. André, o esquema freudiano mostra que da experiência do atentado, para a qual converge todo o encadeamento das representações, parte uma flecha para um campo em branco, sem nenhuma inscrição significante, de cuja lacuna, por sua vez, segue outra flecha orientada em direção à descarga sexual (André, 1987, p. 79). Está em questão, portanto, nesse complexo excluído do processo cogitativo (vom Denkvorgang ausgeschlossen) há pouco mencionado, algo que se separa da articulação significante da qual o sujeito emerge enquanto efeito simbólico. Esse algo presente no umbigo do esquema freudiano é o próprio ser do sujeito que o simbólico não alcança, investido na posição do objeto a, alheio ao significante, do qual Emma procura em vão escapar...

Proporíamos, então, para finalizar, que o complexo traumático de que fala Freud, separado do processo cogitativo, diz respeito à experiência de passividade que introduz o sujeito na questão do sexual, à qual ele retorna sem saber o que o leva a isso. O sujeito se constitui originalmente — para retomar a fórmula de S. André — como objeto de gozo para o Outro (André, 1987. p. 86 et seq.), sem encontrar, no campo dessa alteridade, o significado de tal condição. O efeito traumático da significação a posteriori dessa experiência, que Freud localiza na puberdade, explica-se assim pelo fato de que tal recordação remete a uma condição na qual se perde a cidadania de sujeito, no campo regulado pelo significante, para se tornar puro objeto instrumento de gozo, conforme se ilustra na conjunção do riso com o vestido. O elemento traumático é a significação de passividade, inerente à posição de objeto de gozo, que somente apareceu quando Emma se viu atraída pelo vendedor que se ria.

A necessidade, portanto, dessa significação traumática nasce da contingência do encontro com a cena do riso que, por si só, não estava destinada a produzir esse sentido. Mas é somente por meio do dado material desse elemento contingente que a significação traumática se efetua. A função desse encontro contingente, que engendra retroativamente o efeito de significação, é a de tornar presente o elemento insignificante, referido ao objeto de gozo, donde jorra a riqueza exuberante do sentido.

Notas

  1. Este texto é a versão modificada de uma exposição por mim apresentada na Seção Minas da Escola Brasileira de Psicanálise, no dia 23 de março de 2010, em atenção ao convite de Graciela Bessa e Lilany Pacheco, que me propuseram intervir nas Lições Introdutórias de Psicanálise sobre o caso Emma, discutido por Freud na segunda parte do “Projeto para uma Psicologia científica”.
  2. Cf. Lacan, 1971-72, lição inédita do dia 02/12/1971; Lacan, 1975-76, p. 64; Miller, 1987b, p. 40-41.

 

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Recebido em: 03/09/2009; aceito em: 19/11/2009.
Received in: 09/03/2009; accepted in 11/19/2009.