Ser mulher dói? Os impasses da sexuação na análise de uma mulher
Does being a woman hurt? The impasses in the formation of sexual identity in a woman’s analysis

 


Maria Cristina da Cunha Antunes

Psicanalista
Doutorado em Teoria Psicanalítica / UFRJ
Membro da Associação Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo
Coordenadora do grupo de pesquisa sobre obesidade crônica e obesidade mórbida da Associação Núcleo Sephora de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo
crisantunes@superig.com.br

 

Resumo

A partir de um caso clínico, o artigo discute a direção da cura da análise de uma mulher sob a perspectiva do último ensino de Lacan. O axioma lacaniano “não há relação sexual” promove a ênfase da análise nos impasses do processo de sexuação e a redução ao ponto incurável do sintoma. O aspecto econômico se sobressai na medida em que esta orientação visa uma mudança na maneira do sujeito gozar do seu sinthoma.

Palavras-chave: psicanálise, sexuação, sintoma, caso clínico, sinthoma.

 

Abstract

From the point view of a clinical case, the article discusses the direction of the treatment in the analysis of a woman under the perspective of Lacan’s final teaching. Lacan’s axiom “there is no sexual relationship” promotes an emphasis in the analysis of the impasses in the process of constructing sexual identity and the reduction to the incurable point of the symptom. The economic aspect grows in importance as far as this orientation aims towards a change in the way that the subject enjoys his symptom.

Key words: psychoanalysis, sexual identity construction, clinical case, symptom.

 

Introdução

O Seminário 20 marca uma inversão de perspectiva no ensino de Lacan. Esta inversão de paradigmas foi denominada o “último ensino de Lacan” (Miller, 1999). Para nosso propósito neste trabalho, exploraremos, brevemente, o axioma lacaniano fundamental dessa nova lógica: “não há relação sexual”.

Podemos explorar este axioma em três teses que são equivalentes:

  1. Não há complementaridade entre os sexos. A diferença sexual é real e a parceria sexual só é possível por meio de um sintoma (Coelho dos Santos, 2009).

  2. Há uma inadequação entre o real e o mental (MILLER, 2008-09). Nesse sentido, o inconsciente é uma ficção sobre o real. Há uma disjunção entre inconsciente e real. Miller propõe uma distinção entre o inconsciente transferencial e o inconsciente real. O inconsciente transferencial seria a ficção, a verdade inconsciente que o sujeito constrói em função da inexistência da relação sexual. O inconsciente real, aparece no espaço de um lapso, enquanto vazio, ausência de sentido.

  3. Não há primazia do simbólico sobre os outros registros. No último ensino de Lacan, os registros não estão articulados a priori. Isso significa dizer que o Outro não existe como ponto de partida (). É o falasser (aquele que fala) que produz um artifício (um sintoma) que enoda os registros e promove a consistência do Outro (A).

Esta perspectiva produz uma inflexão no conceito de sintoma. Como dissemos, este é o artifício que enlaça os registros, produzindo uma articulação onde não havia, necessariamente, nenhuma. Miller propõe que, no último ensino, Lacan amplia o conceito de sintoma ao incluir os restos referidos por Freud ao final da análise. Em “Análise terminável e interminável” (1937), Freud explora fenômenos clínicos que não cedem à interpretação e representam, deste ponto de vista, um obstáculo ao tratamento analítico. Estes fenômenos dizem respeito ao campo do gozo. Na última clínica, o conceito de sintoma é pensado a partir do modelo destes restos. O sintoma, portanto, comporta duas vertentes: uma vertente de mensagem ao Outro, que convoca a decifração, a interpretação e a vertente de gozo que é o modo do sujeito gozar da letra que o determina. Tomamos aqui como referência a noção de insígnia (S1,a) apresentada por Miller no seu seminário Os signos do gozo (1986-87). O conceito de insígnia une significante e corpo. É a letra que vivifica o corpo e produz um modo de gozar desse corpo. A letra não é o significante. Este representa um sujeito para outro significante e está no campo da mensagem, do sentido do Outro ou do que apontamos como inconsciente transferencial. É o campo da palavra que reenvia sempre a uma outra significação. A letra diz respeito ao campo do escrito, ao campo do gozo, da compulsão à repetição. A letra não significa nada: ali isso goza e, como tal, dá-se a ver como “coisa” que goza de um corpo (Coelho dos Santos, 1999).

Pensar uma análise deste ponto de vista, significa que esta se orienta por um processo de redução: das ficções inconscientes até o ponto incurável de cada um, que não é possível fazer desaparecer. É o ponto que rateia que Freud nomeou como compulsão à repetição (1920). A questão que se coloca, a partir daí, é: numa teoria que inclui o incurável qual o destino da compulsão à repetição? Como se dá o final de análise, levando-se em conta esse princípio de que uma análise levada suficientemente longe promove o encontro com o incurável de cada um?

A primeira consequência a extrair desta orientação, é que uma análise opera uma disjunção entre o inconsciente e o real. O passo dado por Freud ao não acreditar mais na sua neurótica (“Carta 69”) inaugura a psicanálise. Neste ponto, Freud abandona a teoria da sedução - suposição de que o trauma sexual da histérica advinha de um acontecimento real – e descobre que o inconsciente tem uma estrutura de ficção. Esta, a realidade psíquica inconsciente, constitui a moldura da realidade. Penso que o término de uma análise envolve a repetição paradoxal do gesto freudiano: o final de uma análise ocorre quando um analisando não acredita mais na sua neurose que até então deu sentido à sua realidade.

Uma análise visa à demonstração do incurável de um sujeito. Da ficção inconsciente da qual um sujeito sofre, destaca-se, nomeia-se um objeto em torno do qual um circuito de gozo se repete. Esse objeto e o modo de gozar com ele é a mentira sobre o real, isto é, a maneira de responder à não relação sexual, de fazer consistir a relação com o Outro.

O final da análise é indicado pela elucidação da relação do sujeito com o seu gozo, ou seja, de como o sujeito mudou em relação ao que não muda, que é o seu modo de gozar. A mudança de posição do sujeito em relação ao seu modo de gozo deve produzir, ao final da análise, o surgimento de uma outra satisfação. O gozo, marcado pela inércia e pela fatalidade, na via da compulsão à repetição, pode ser absorvido pelo sujeito, incorporado ao seu ser numa nova economia de gozo. Esse modo de gozar não é mais uma armadilha. Nesse ponto, se estabelece uma satisfação paradoxal: ser o mesmo e, paradoxalmente, poder fazer de modo diferente. O final da análise inaugura para o sujeito uma relação inédita entre ser e fazer: saber fazer com o seu sinthoma.

Miller propõe que esse é o status do gozo no último ensino de Lacan. Ele nomeia como gozo-satisfação o estabelecimento de uma homeostase superior: trata-se de um funcionamento que inclui o excesso, que o rotiniza e que Lacan chamou de sinthoma (Miller, 1999).

Como assinalamos acima, a direção de uma análise, pensada a partir do último ensino de Lacan, sustenta-se no axioma da inexistência da relação sexual. Isso significa que uma análise é orientada para extrair os efeitos, para um sujeito, do seu encontro com a diferença sexual, ou seja, com a castração.

A consequência a localizar dessa orientação é que homens e mulheres não respondem da mesma forma ao encontro com a diferença sexual e, portanto, não gozam da mesma maneira. Portanto, uma análise conduzida sob a égide do último ensino tem como orientação a lógica da sexuação que Lacan apresenta nas fórmulas da sexuação no Seminário 20 (1972-73).

Coelho dos Santos (2009) aborda o último ensino de Lacan como uma segunda formalização da sexualidade sob o axioma “não há relação sexual”. Segunda ela, o ponto de partida agora é o gozo de lalíngua. Isto significa que o ser falante é um corpo vivo atravessado pela linguagem. Lalíngua aparelha o gozo do corpo, ou seja, aparelha o sujeito para gozar do corpo por meio de um sinthoma. Como apontamos, o sinthoma (S1,a) é uma maneira de gozar do próprio corpo.

Coelho dos Santos esclarece que o real circunscreve-se ao mal entendido sobre os sexos. Como não há relação sexual, não há equivalência entre os sexos e, portanto, o real é sem lei (2009, p.19). Nesse sentido, entre um homem e uma mulher há, portanto, necessariamente, sintoma.

Ainda neste artigo, a autora enfatiza que, a partir das fórmulas da sexuação, o “mito do pai assassinado” que goza de todas as mulheres é um fantasma masculino. O pai considerado como exceção que interdita e submete todo homem é uma ficção inconsciente que tem sua experiência no órgão masculino aprisionado entre a tumescência e a detumescência (2009, p.20).

Do lado feminino, “A mulher não existe”. Existem somente as mulheres. Isto significa dizer que não existe a exceção feminina, isto é, a mulher que causaria o desejo de todos os homens. Não há, portanto, a mulher modelo. Cada mulher é uma exceção.

A sexuação feminina se conduz sob duas coordenadas: a relação ao faloe a S(). Em relação ao campo do falo, a sexuação feminina parte da posição de que a mulher não tem o falo. Freud (1932) apontou o essencial do desejo feminino: a reivindicação do falo. Nesse sentido, a mulher deseja o órgão que o falo simboliza e, ao localizar o falo no corpo do parceiro consente na posição de objeto a (objeto causa do desejo) para este homem.

Entretanto, para que este processo ocorra é preciso que o homem fale sobre o que ela é para ele, como objeto a (Coelho dos Santos, 2009, p. 20). Este gozo que depende da fala, das palavras de amor, é o verdadeiro amor sem limites. Este campo é formalizado por Lacan como o campo de . O amor, para Lacan, é o que Freud chamou de continente negro da feminilidade. O amor, segundo Coelho dos Santos (2006), é o nome da tendência feminina à devastação.

Dominique Laurent (2006) ensina, com o seu passe, a dupla vertente por onde se dá a análise de uma mulher: a relação ao falo (e ao pai) e a relação com S(). Do seu trabalho, podemos extrair que o essencial da análise de uma mulher no campo de gozo se passa em torno da relação com, ou seja, em relação ao amor sem limites. Este ponto diz respeito ao que Freud havia localizado como a relação primária, pré-edípica entre mãe e filha. Trata-se, segundo Coelho dos Santos, do “ponto de conjunção com o Outro, no qual a menina se oferece como objeto para emprestar consistência às queixas da outra mulher, sua mãe” (Coelho dos Santos, 2006, p. 12).

Na análise de uma mulher, trata-se nomear o gozo feminino, separando a mulher da ambição nociva e desvairada de suplementar o que falta à outra mulher (Coelho dos Santos, 2006, p. 13).

Há, portanto, duas vertentes em jogo na análise de uma mulher:

  • Trata-se de substituir o pai por um homem e consentir em ocupar o lugar de objeto a para ele. Isso envolve localizar no corpo de um homem o falo (conjunção falo-pênis) e, como tal, esse parceiro representar uma ancoragem da identificação ao ideal para a mulher.

  • E de substituir a fantasia de completar uma outra mulher (a mãe) pela demanda autêntica de amor a um homem (Coelho dos Santos, 2006).

Retomando as coordenadas iniciais que apresentei, a fórmula de que a análise opera uma disjunção entre o inconsciente e o real só pode ser compreendida no campo do processo de sexuação. Como tentei demonstrar, no caso da análise de uma mulher, esta disjunção se dá em dois planos: segundo Lacan, a relação ao falo e a relação a S() ou, em termos freudianos, a inveja do pênis e campo da feminilidade.

Passo agora a explorar uma vinheta clínica a partir da qual procuro explicitar esses dois momentos lógicos na análise de uma mulher.

O caso clínico

Primeiro tempo lógico: a relação ao falo e ao pai.

Clarisse tem 50 anos, é casada e trabalha como profissional liberal. A sua primeira análise gira em torno da sua dificuldade em manter um relacionamento estável com um homem. Esta análise passa-se, basicamente, no âmbito dos avatares do complexo de Édipo, localizando a relação de Clarisse com seu pai e as conseqüências para sua sexualidade e para a sua vida afetiva com um parceiro. Apontada, desde cedo, como a filha preferida do pai, esta paciente logo escolheu os interesses, o significante-mestre de seu pai – o trabalho fora de casa – em detrimento da posição de sua mãe, que ela desprezava e desvalorizava. Sua mãe era dona de casa e renunciara à profissão. Por outro lado, seu pai tinha várias amantes, que Clarisse interpretava como preferidas em relação à sua mãe. Clarisse se localizou como a outra mulher, que está fora de casa, preferida do seu pai. Ao mesmo tempo, ela interpretou sua escolha como uma traição à mãe, colocando-a num impasse em relação ao seu destino como mulher. Envolvida na trama edípica, a sua sexualidade cai sob inibição durante a adolescência.

Na vida adulta, o lugar que ela encontra como mulher é o lugar da “outra” e vários relacionamentos seus são marcados por esse traço: ela se engaja em relações com homens comprometidos. Este é um sintoma que atende à sua rivalidade e culpas inconscientes em relação ao seu conflito edípico: ser a filha preferida assume o significado de ser a outra mulher que o pai preferia à mãe. Esta primeira análise desata esse impasse, deslocando-a do lugar da outra mulher. Clarisse encontra um parceiro e se casa.

A análise permite que ela se extraia da relação triangular que ela compunha com o casal que eram seus pais. Ela se casa, localizando num homem o falo que ela deseja e consentindo em se tornar objeto causa do desejo desse homem. Pela primeira vez, ela é feliz com um homem.

Segundo tempo lógico: os restos da sexuação feminina – a feminilidade

Durante esse período, um sintoma permaneceu intocado. Clarisse se torna “a salvadora” da família e, particularmente, de sua mãe. Esta adoece, passa a ter vários problemas orgânicos graves e Clarisse se dedica a cuidar dela. Aparece, aqui, nesse sintoma, a reivindicação fálica a que a paciente permanece fixada, através do lugar de salvadora. Ela é chamada a resolver todas as situações de conflito e dificuldades da família. Clarisse não se furta e dedica-se com afinco a esta tarefa. Outros aspectos da sua vida também são marcados por gestos de sacrifício e de superação. Um dia, Clarisse se queixa ao analista que está cansada e não entende porque tudo tem de ser tão difícil para ela. O analista lhe responde: “quem disse que tem de ser fácil?”. Meses depois, Clarisse interrompe a análise.

A nosso ver, o que permanece intocado nesse sintoma é a ignorância de Clarisse a respeito da sexualidade de seus pais como casal. Nesse ponto, ela se recusa a saber, ela provê a mãe do que supõe que seu pai não dá conta como homem. A resposta do analista toca lateralmente a questão. Do ponto de vista do inconsciente, Clarisse permanece no lugar da mulher de vida fácil, que sai para trabalhar, a outra, que interessava a seu pai. Dizer que tudo é difícil é ocultar que, para ela, a vida da mulher que trabalha fora é fácil e que, portanto, na sua fantasia, ela levaria uma vida melhor que a da mãe.

Passa alguns anos sem análise. Realiza uma série de cursos na sua área profissional que a fazem progredir na sua carreira. Todo este trabalho é colorido pelo tema do sacrifício e da sobrecarga. Durante este período sua mãe falece e Clarisse se cansa de “salvar” e de realizar tarefas difíceis.

Nesse momento, Clarisse cai: sente-se deprimida, sem vontade de fazer qualquer coisa, não sente mais entusiasmo pelo trabalho nem por qualquer outra atividade. Tem vontade de abandonar tudo. Este estado de coisas motiva o início da sua segunda análise. O tema que a traz à análise é a perplexidade que se liga à pergunta que havia feito ao seu primeiro analista: por que a vida tem de ser difícil? É invadida pela angústia e pelo sentimento de que nada vale a pena. Passa o dia querendo voltar para casa e deitar. Reconhece esse sentimento de tristeza e de inutilidade como muito antigo e o liga à posição de sua mãe, diante do seu fracasso como mulher em relação ao seu pai.

Ela acredita que seu pai decepcionou sua mãe como homem. Decepção da qual sua mãe jamais se recuperaria. Dolorosamente, Clarisse circunscreve a posição de mulher da sua mãe: desgostosa, não há gosto na vida. A posição de mulher da sua mãe é extraída de uma frase de seu pai para ela: “você foi uma mártir em minhas mãos”.

Como resposta, solidária ao destino trágico de sua mãe, Clarisse se martiriza. A sua vida não pode ser fácil, ela não pode usufruir dela como mulher. Não se pode usufruir da vida como uma mulher honesta. Quem usufrui da vida é a outra, a “mulher de vida fácil”.

O sintoma de salvadora da família, trabalhadora incansável, como o pai, que envolvia uma certa dose de sacrifício, foi a sua resposta fálica que se coordena à face mortífera da sua não separação da mãe, entregue ao gozo do martírio. Face feroz da pulsão de morte que se exibia na acusação velada ao homem, na exigência de uma demanda de amor infinita.

Neste segundo tempo da análise, Clarisse extrai a equação da sua posição em relação à mulher que foi sua mãe. Como mulher, traída pelo marido, sua mãe é vista como tomada pela dor. Várias declinações dessa posição feminina surgem: sacrifício, martírio, tristeza, desolação. No ponto da não relação sexual desse casal, Clarisse interpreta com um sintoma: o imperativo que constitui a sua posição feminina é: entre um homem e uma mulher há dor. Como mulher, identificada ao objeto que, na sua interpretação, sua mãe foi, Clarisse se sacrifica, precisa ter uma vida difícil.

Esse imperativo superegóico é o que Freud denomina feminilidade no caso da mulher. É o resto da sexuação feminina, ou seja, a identificação de Clarisse ao objeto de gozo da mãe como mulher. No caso em questão, a mãe de Clarisse gozava com a dor. Esse foi o excesso em jogo na relação desse casal que o pai de Clarisse, como homem, fracassou em conter.

Terceiro tempo lógico: a verdade mentirosa e o analista como parceiro-sinthoma.

A análise localiza a verdade mentirosa constituída por Clarisse acerca do real, isto é, do mal entendido entre os sexos: identificada ao objeto dor, ela empresta consistência à união do casal que foram seus pais.

É importante ressaltar o elemento econômico deste caso. Clarisse se torna mais feliz na sua vida amorosa e bem sucedida na sua vida profissional e financeira (sexo e dinheiro, no discurso materno, foram a ruína da sua família). Nesse processo, a dor que se apresentava como sofrimento psíquico, desloca-se para o seu corpo. O objeto dor passeia por vários pontos do corpo de Clarisse surgindo inúmeras disfunções orgânicas. O seu parceiro-sinthoma é a dor. Clarisse se ocupa do seu corpo como antes se ocupava do corpo da mãe. Podemos dizer que, após a morte da mãe, torna-se evidente a identificação melancólica de Clarisse ao objeto dor que, neste caso, localiza a feminilidade.

Esta identificação é atualizada por Clarisse na sua parceria amorosa. No ponto de não relação sexual do casal, Clarisse sofre, se martiriza. O marido lhe dirige palavras grosseiras, é dado a alguns excessos verbais. Nesse ponto, Clarisse empresta consistência a esses ditos com seu sofrimento, atualizando o enunciado básico que define, para ela, o que é ser mulher: mulher sofre nas mãos de um homem.

Como analista, no lugar de parceiro-sinthoma, opero, na transferência, na seguinte posição: eu não acredito na dor. Lentamente, Clarisse faz uma disjunção entre o que o marido diz (seus excessos verbais) e o que ela ouve (o imperativo superegóico do martírio). Clarisse se desloca do lugar de sofredora. Pela primeira vez, recusa-se a ser martirizada pelo outro. Clarisse toma atitudes novas, inéditas, em relação às palavras grosseiras do marido. Isso tem como efeito uma contenção dos excessos do seu parceiro e abertura dele para os atos e as palavras de amor que ela reivindica.

Este é o ponto essencial desta análise. Clarisse inicia uma retificação da sua posição ao gozo mortífero ao qual estava submetida e relativiza o enunciado fundamental da sua existência como mulher: ser mulher dói. Ela não acredita mais na sua neurose. Neste ponto de disjunção entre a ficção inconsciente e o real, abre-se o “espaço de um lapso”, um hiato, que possibilita, para ela, uma resposta inédita: amar não é sofrer.


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Recebido em 17/08/2009. Aprovado em 04/01/2010.
Received in 08/17/2009. Accepted in 01/04/2010.