Lagache criou o mito de uma unidade da psicologia em 1949 a fim de que ela pudesse tornar-se uma disciplina universitária. Ele buscou esta suposta “unidade” em “uma teoria geral da conduta”, que se imaginava permitir uma síntese da psicologia experimental, da psicologia clínica, da psicanálise, da psicologia social e da antropologia. A psicologia universitária teve que improvisar e fazer referência a métodos e técnicas de grande diversidade, tais como: a observação, a introspecção, a entrevista clínica, a utilização de diferentes testes, a atitude fenomenológica, a análise estatística de grupos de pessoas, o estudo do funcionamento dos grupos, etc. Resumindo, para um epistêmico rigoroso, como Canguilhem, a psicologia é “um empirismo composto, literariamente codificado para fins de ensino” cuja unidade “assemelha-se mais a um pacto de coexistência estabelecido entre profissionais do que a uma essência lógica, obtida pela revelação de uma constância na diversidade dos casos” (Canguilhem, 1956). Ela é hoje em dia cindida administrativamente em três campos (psicologia geral, psicologia social, psicologia clínica) que com muito custo aderem à complexidade das sub-disciplinas (psicologia diferencial, psicologia do desenvolvimento, psicologia do trabalho, ergonomia, psicopatologia, psicologia da saúde e etc.).
Ato contínuo, em sua entrada na Universidade, ela reuniu pesquisadores que privilegiavam o método experimental das ciências “exatas”, e outros que se referiam ao método clínico. Desde 1945 Lagache constatava o confronto das duas abordagens: “A biometria e as estatísticas, segundo ele, introduzem na psicologia um rigor de outro estilo e os psicometristas doutrinários são implacáveis para com a psicanálise assim como para com a clínica”. Era preciso preconizar uma correção das “ilusões do formalismo científico” pela “arte clínica” que busca acolher a singularidade do sujeito (Lagache, 1945, p. 413-437). Esta divisão metodológica é antiga, e não é própria da psicologia: ela é inerente ao campo da ciência. Uma disputa de método a atravessa desde o final do século XIX, que opõe os defensores do método nomotético - o da física, que visa o universal - aos partidários do método idiográfico, o da história, que apreende o particular. O conhecimento pode instaurar-se através de duas vias distintas. Por um lado, ele pode visar o estabelecimento dos conceitos e das leis universais, e por outro, ela pode visar à apreensão das particularidades e das singularidades que não podem ser universalizadas.
O mito da unidade epistemológica da psicologia universitária não podia funcionar senão através do respeito ao “pacto de coexistência estabelecido entre os profissionais” incitando-os a respeitar as duas direções. Nos anos 70, cada corrente satisfez o seu interesse, num tipo de acordo tácito, endossado por Beauvois e Gori, que poderia enunciar-se da seguinte forma: alguns, devido às suas conexões com as ciências exatas, forneciam uma caução científica aos outros, os clínicos, para os quais a massa dos estudantes se orientava. Este acordo tácito não funciona mais. O paradigma das neurociências cognitivas pretende impor-se hoje em dia pela força da avaliação erradicando o paradigma psicodinâmico. A ascensão das ciências cognitivas incita, desde os anos 90, os defensores do paradigma experimental a impor uma uniformização dos critérios de qualificação que mimetiza os critérios em vigor nas ciências “exatas”. Embora enquadrem sozinhos a maioria dos estudantes, os psicólogos clínicos são confinados numa sub-disciplina minoritária, de modo que injunções metodológicas lhes são ditadas por seus colegas, certamente majoritários, mas estranhos ao seu domínio. Disso resulta que a psicologia clínica está a um passo de tornar-se uma psicologia clínica sem clínicos: os defensores do modelo experimental não hesitam em recrutar professores sem experiência clínica e sem prática nem do diagnóstico e nem do tratamento.
É a partir de uma epistemologia de administradores e não de doutos, como constata Jacques-Alain Miller, que os atuais avaliadores em psicologia do CNU (Conselho Nacional das Universidades), e da AERES (Agência de Qualificação da Pesquisa do Ensino Superior) pretendem agora dividir as equipes de pesquisa e as formações pedagógicas habilitadas. Como é que eles definem a ciência? Os melhores epistêmicos quebraram suas cabeças com o problema. A ciência está fragmentada entre disciplinas extremamente diversas que nada unifica. Seus limites são vagos. Nada nos impede, nem mesmo de interrogar se ela constitui o único modo de conhecimento possível. O único ponto de acordo é que não existe nenhuma definição positiva; quando muito, podemos destacar alguns elementos correlacionados ao pensamento científico, mas nenhum é determinante. A “falseabilidade” popperiana não é decisiva: quando uma experiência contradiz a teoria, não é verdade que esta última seja colocada em questão, a história das ciências demonstra que nos contentamos em acrescentar uma hipótese adicional. As ditas “ciências do homem” estão muito longe de poder satisfazer, ainda que em parte, os critérios de precisão, de clareza e de objetiva verificabilidade aos quais os físicos estão habituados. Cada um concorda ao considerar que um abismo separa as acepções do termo ciência quando passamos das ciências da natureza às ciências humanas. O que é importante: os nossos avaliadores em psicologia consideram-se aptos a classificar o que é científico e o que não é. Quem os considerou avaliadores, estes avaliadores? Quem avalia seus conhecimentos em epistemologia?
Será que eles sabem que até mesmo na medicina o método clínico conhece hoje em dia um renovado interesse? O privilégio dado à singularidade leva a conferir um lugar significativo aos estudos de casos na metodologia dos clínicos. De acordo com um artigo recente de La revue des maladies respiratoires, “os relatórios de casos realizam um retorno notável nos jornais mais prestigiados, incluindo aqueles que foram banidos por ocasião do advento, um pouco cego, da medicina factual” (Stein, 2007, p. 178). Eles conservam, acrescenta o autor, “uma legitimidade indiscutível no âmago da literatura médica”: alguns têm um grande valor convincente, outros possuem um forte potencial heurístico e pedagógico, todos são essenciais para abordar a vertente idiográfica da medicina clínica, comunicando uma experiência prática e difícil de ser partilhada de outra forma.
Os autênticos pesquisadores não têm a visão tão estreita como os nossos avaliadores. Um prêmio Nobel de medicina, como o Erik Kandel, em um artigo inicialmente publicado em 1999 no American Journal of Psychiatry, cuja repercussão foi considerável no plano internacional, apesar de não poupar críticas à psicanálise da qual conhece apenas uma pálida versão norte americana, considera que ela possui uma potência heurística que a ciência moderna não poderia privar-se. Ele destaca o quanto “a psicanálise revolucionou nossa compreensão da vida mental” propondo
“um considerável conjunto de novas perspectivas a respeito dos processos mentais inconscientes, do determinismo psíquico, da sexualidade infantil e talvez, o mais importante de tudo, a respeito da irracionalidade da motivação humana” (Kandel, 2002, p. 80).
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E coube a Kandel precisar que na aurora do século XXI, “a psicanálise continua representando a perspectiva sobre o espírito mais coerente e mais satisfatória intelectualmente” (Ibid.).
Contudo, alguns dos nossos avaliadores desobrigam-se de bom grado, com uma aparente modéstia, de toda competência epistemológica, para contentar-se em levar adiante a sua aptidão no estudo de relatórios em função de grades formais predeterminadas. É preciso saber que o critério primordial de avaliação dos professores pesquisadores apóia-se na quantidade de suas publicações realizadas em revistas científicas. Ora, aquelas que são autorizadas pelos avaliadores são em sua maioria anglo-saxônicas e submetidas a modelos que os clínicos recusam. Assim, lhes é demandado apresentar suas pesquisas de modo que entrem nas categorias do DSM, manuais diagnósticos e estatísticos da Associação americana de psiquiatria. Ora, estas produções, que se pretendem a-teóricas, reduzem os sintomas de todo o dinamismo psíquico, no esforço de descrevê-los do exterior, dispondo-os automaticamente em relação a um suposto disfuncionamento do corpo, agradando os laboratórios farmacêuticos, com forte inclinação promocional. Estes manuais fizeram a sua publicidade sobre uma melhoria na fidelidade diagnóstica entre os clínicos, ora, não somente fracassaram neste projeto (Kirk & Kutchins, 1992), como também geraram muitos problemas em relação à validade dos diagnósticos. É possível se autorizar para nomear com concordância fenômenos supostos serem característicos de uma doença determinada, ainda que esta não possua uma existência real, é por isso que um diagnóstico pode ser fiel sem ser válido. Um grande número de transtornos dos DSM possui uma validade duvidosa e orienta a pesquisa na direção de artefatos. Hoje em dia, nos EUA, as críticas são virulentas contra os Manuais que fazem da timidez e do medo de falar em público “uma fobia social”, ao mesmo tempo em que toda a tristeza se torna uma doença depressiva. Lendo a este respeit, em Shyness,: de Lane, ou The loss of sadness, de Horwitz e Wakefield, um e outro analisam como esses Manuais tentam transformar doenças biológicas em comportamentos comuns. No prefácio da segunda obra, Spitzer, o principal criador do DSM III, reconhece que a ausência de consideração pelo contexto histórico e social na definição dos transtornos mentais constitui um sério problema, ao qual devem agora se confrontar aqueles que trabalham no DSM V. Tarefa colossal que conduz ao aumento sem cessar e crescente da lista de síndromes, porque o refinamento da abordagem descritiva dos comportamentos humanos desviantes ou dolorosos conduz necessariamente, e sem cessar, à descoberta de novos. Trata-se de uma busca cujo termo encontra-se no infinito: ele converge na direção da singularidade do caso.
Que importam os problemas de validade de que testemunha a esterilidade da pesquisa em psiquiatria desde o DSM-III: as afinidades desses Manuais com o método experimental são suficientes para torná-los intransponíveis. Os clínicos, desde então, são obrigados a apresentar os seus trabalhos em quadros nosológicos, cuja pertinência eles contestam veementemente. Depois de alguns anos, uma política orquestrada pelos avaliadores tende a valorizar as revistas anglo-saxônicas que preconizam o método experimental, enquanto que algumas revistas de orientação clínica credenciadas não cessam de sucumbir. Os professores pesquisadores em psicologia clínica não publicam menos do que seus colegas, porém não o fazem nas “boas” revistas, isto quer dizer aquelas que recusam a priori suas hipóteses. Seria, entretanto, muito simples, dizem eles, bastaria renunciar a elas para que as “boas” revistas - aquelas cujo fator impacto é elevado – se abrissem completamente para nós2. Fortalecidos pelos seus critérios, nossos avaliadores mostram-se fortes ao nos demonstrar que Freud, Lacan, Klein até mesmo Janet, Lagache e Winnicott, não eram pesquisadores, tendo publicado apenas em revistas “monoreferenciadas”, não submetidas ao método experimental. Observem que o dito “monoreferenciamento” é sempre uma objeção endereçada às revistas clínicas; as revistas cognitivas beneficiam-se da suposição do “plurireferenciamento”, que nada, no entanto, confirma. Nós consideramos que a maioria das revistas anglo-saxônicas, nas quais somos intimados a publicar, constituem um embaraço para a pesquisa. A sua promoção corre o risco de dar razão à Lacan, quando previa que é no nível da seleção do criador da ciência, do recrutamento da pesquisa e de sua manutenção, que a psicologia encontrará o seu fracasso.
Se o pesquisador não ceder em sua convicção heurística específica à clínica psicodinâmica, resta apenas ao avaliador quantificar suas publicações, constatar sua insuficiência, recusar a equipe de pesquisa a qual ele pertence e finalmente erradicar os ensinos que estão associados. A liberdade de pensamento autorizada pela Universidade aos seus professores pesquisadores deve, hoje em dia, praticar a psicologia num quadro cada vez mais controlado.
A psicologia é uma disciplina fragmentada em especialidades, que adquiriu tamanha tecnicidade que ninguém agora é capaz de possuir os conhecimentos necessários para ser competente em todas elas. A composição das bancas das teses leva em conta esta divisão: um especialista de inteligência artificial ignora tudo sobre o transexualismo; um pesquisador sobre a emergência social das novas idéias desconhece os déficits cognitivos ligados ao envelhecimento; os trabalhos sobre o suicídio não recortam a psicofísica da sensação do movimento do corpo próprio e etc. Nenhum avaliador é capaz de apreciar a qualidade das pesquisas em seus múltiplos domínios; é por isto que é de praxe que pelo menos um avaliador seja especialista da sub-disciplina em questão. No entanto, existem opções de pesquisa no centro mesmo das sub-disciplinas de forma que pode acontecer em psicologia, mais do que em qualquer parte, que nenhum dos avaliadores seja verdadeiramente competente para examinar esse ou aquele relatório. No estado atual, isto não lhes causa nenhum problema: é suficiente para eles contar o numero de publicações em revistas qualificadas. Todos os relatórios dos professores pesquisadores referem-se, por outro lado, a teses de qualidade, a comunicações em diversos congressos e atividades de ensino, de forma que o critério de apreciação que verdadeiramente discrimina reside no numero de artigos publicados nas revistas autorizadas. Nesse passo, os clínicos estão ameaçados de extinção.
Convém agora levar em conta que a unidade artificial da psicologia sobreviveu. Ninguém pode, seriamente, contestar que ela não é menos complexa que um ramo da medicina, como “Morfologia e morfogênese” ou “Biofísica e imagiologia médica” e mesmo “Microbiologia, doenças transmissíveis e higiene” as quais correspondem respectivamente às seções 42, 43, e 45 do Conselho Nacional das Universidades encarregado da avaliação dos professores pesquisadores. Ora estas seções são divididas em duas ou três subseções, às vezes quatro, e entre elas às vezes clivadas em opções. A composição dos CNU para as ciências médicas e odontológicas é regida pelo decreto no. 87-31 de 20 de janeiro de 1987, porque este mesmo cuidado com a especialização dos saberes não se estenderia à psicologia? A psicologia cognitiva é atravessada por correntes de grande diversidade. A psicologia social é cindida, como a psicologia clínica, em defensores da abordagem experimental e partidários de uma abordagem humanista. A psicologia do desenvolvimento não utiliza os métodos da psicologia do trabalho e etc. A consideração pela pluralidade epistemológica da psicologia, exige hoje em dia, que se formalize sua repartição em diversas subseções. A psicologia clínica psicodinâmica poderia fazer reconhecer em suas subseções – que comportariam uma opção psicanalítica - seus próprios critérios de avaliação dos diplomas e dos professores pesquisadores. Competiria então aos clínicos o surpreendente privilégio de poder determinar quais são as revistas clínicas! Nesse domínio, como em outros, cada um sabe que somente os especialistas das sub-disciplinas, inclusive os de cada opção, possuem as competências necessárias para apreciar a qualidade das pesquisas sobre outras bases que não só as quantitativas. Se a pluralidade da psicologia universitária desaparecer, se a sua componente “humanista” for reduzida ao silêncio, ela corre o risco de tender na direção das técnicas de gerenciamento das populações, cuja campanha recente a favor da promoção comercial dos antidepressivos nos dá o exemplo.
O contrato de coexistência pacífica entre os defensores dos métodos experimental e clínico, que consolidou a psicologia universitária desde o seu nascimento, e que em seguida foi renovada, nos anos 70, em consideração às tendências dos estudantes, explode, hoje em dia, em pedaços sob os golpes dos avaliadores cooptados e monoreferentes. Eles afrontam a liberdade de escolha de modelos teóricos que a Universidade francesa garantia até então aos seus pesquisadores. O gerenciamento da pesquisa associada à avaliação científica gera um totalitarismo rasteiro que se estende para além da psicologia, gangrena numerosas disciplinas universitárias, apodera-se das instituições de tratamento. É por isto que seremos numerosos e resolutos a combatê-lo.
Tradução: Kátia Danemberg.
Revisão: Catarina Coelho dos Santos
Notas
1. Publicado originalmente na revista Le Nouvel Âne n. 8, Paris: forumpsy.org, février 2008, p. 50-51.
2. O fator de impacto de uma revista representa, para determinado ano, a razão entre o número de citações que se referiram a ela e o número de artigos que publicou. O cálculo se efetua em um período de referência de dois anos.
Referências bibliográficas
CANGUILHERM, G. (1956) Qu’est-ce que la psychologie?, in: Cahiers pour l’analyse, 1, p. 79-93
LAGACHE, D. (1945) La méthode clinique en psychologie humaine, in: Les hallucinations verbales et travaux cliniques. Obras, I, 1932-1946. Paris: PUF. 1977, p. 413-437.
LACAN, J. (1966) A ciência e a verdade. In: Escritos, Rio de Janeiro: JZE, 1998, p. 869-892.
STEIN, O. (2007) Les rapports de cas vestiges du passe?, in: Revue des maladies respiratoires. 2007, 3. 178-87.
KANDEl, E. R. (2002) La biologie et le futur de la psychanalyse: un nouveau cadre conceptuel de travail pour une psychiatrie revisitée, in: L’evolution Psychiatrique, 2002, vol. 67, p. 40-82.
Kirk, S.; KUTCHIN, H. (1992) Aimez-vous le DSM?, in: Les empêcheurs de tourner en rond.
Synthélabo. Les Plessis-Robinson. 1998.
Recebido em: 15/03/2008
Aprovado em: 21/06/2008
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