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O que é a elasticidade da técnica psicanalítica?
What is the elasticity of the psychoanalytical technique?


Vitor Hugo Triska
Psicanalista
Mestre em Psicologia (UFRGS)
Especialista em Atendimento Clínico – Ênfase em Psicanálise (Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS)
vitortriska@yahoo.com.br


Resumo

Este trabalho promove o resgate do conceito ferencziano de elasticidade com base nas propostas técnicas reconhecidas na obra de Lacan. Por entender que o tema técnica é preterido em razão da amplitude de clínica, primeiramente é analisada a relevância de discuti-lo atualmente, pois se considera que está relacionado com o que há de mais íntimo na prática psicanalítica. São abordados também os “escritos técnicos de Lacan”, a fim de reunir as propostas desse autor e de aproximá-las à ideia de elasticidade, construindo-se, assim, uma formalização do campo da técnica homóloga ao campo da linguagem, o que preserva um lugar faltante de indeterminação. Sobre tal ponto de variação será colocada a influência pessoal de cada psicanalista, questão debatida através daquela que é considerada a segunda regra fundamental da psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise, técnica, elasticidade..

 

Abstract

This article promotes the rescue of the Ferenczi´s concept of elasticity trough the technical proposals that can be read at Lacan´s work. Considering that the theme technique is neglected by the amplitude of clinic, first it´s proposed the relevance of discussing it nowadays, due to the fact that it´s related to what´s more intimate in the psychoanalytical practice. The “technical writings of Lacan” are also analyzed with the intention of gathering this author´s ideas and comparing them to the concept of elasticity, therefore building a formalization of the technique´s field that is homologue to the language´s field and so presenting an empty space of indetermination. Over this space of variation will be placed the personal influence of each psychoanalyst, question debated trough that that´s considered the second basic rule of psychoanalysis.

Key words: psychoanalysis, technique, elasticity.

 

O psicanalista Sándor Ferenczi apresenta, em Elasticidade da Técnica Psicanalítica (1928), uma valiosa questão sobre técnica que me proponho a atualizar a partir da obra de Jacques Lacan. Com isso, busco não somente promover um diálogo entre Ferenczi, alguns outros autores e Lacan, mas também demonstrar que a obra do último é de importância fundamental à técnica, muito embora seja considerada por muitos psicanalistas como predominantemente teórica, excessivamente retórica e, por isso, afastada das questões da prática clínica. A revisão da ideia ferencziana de elasticidade ganha uma especial pertinência diante da técnica psicanalítica extraível de Lacan, centrada na função da fala e no campo da linguagem. Através dessas premissas, proponho uma discussão sobre como seria possível conceber o campo da técnica, onde há o impasse de que tanto variantes quanto invariantes são imprescindíveis.

Por que falar de técnica?


Se anteriormente poderia ser percebido – até mesmo no volume de seus títulos – que os trabalhos psicanalíticos tratavam do tema técnica, percebe-se atualmente a predominância do emprego do termo e da abordagem do tema clínica. Essa mudança vai além do preterimento de um termo em preferência de outro, uma vez que clínica e técnica não são sinônimos. Houve, portanto, uma troca de tema, um desvio do interesse dos psicanalistas da técnica para a clínica e há de haver razões para tanto. Será uma consequência do ensino de Lacan? A técnica foi um tema central nos seus primeiros escritos e seminários e, mesmo assim, há um costume muito maior em abordar temas como arte, política e clínica – também comentados por Lacan – do que propriamente a técnica. É fato também que Lacan nunca, ou melhor, muito raramente, abordou a técnica em termos de recomendações tal qual Freud chegou a fazê-lo. Tampouco tomou a técnica em si como objeto de seu estudo, tal qual o fez Ferenczi. Parece-me que, no início da obra lacaniana, a técnica foi muito mais um meio do que um fim. Um meio para criticar muitos pós-freudianos, de colocar-se numa posição de destaque e diferença perante seus contemporâneos e, principalmente, de começar seu retorno a Freud relendo os conceitos fundamentais. Retomarei mais adiante o olhar lacaniano sobre a técnica dos pós-freudianos.

Em que diferencio clínica de técnica, então? A clínica psicanalítica é uma modalidade específica que se diferencia de outras clínicas como a médica, a fisioterápica, a odontológica, etc. Muito embora dela não exista uma definição em termos finais, há características que lhe são intrínsecas e fundamentais. Tais características são determinadas pela sua ética, sua teoria e a técnica que lhe é própria. Ética, teoria e técnica psicanalíticas, porém, estão interligadas, são campos que se atravessam e, por isso, a técnica enquanto objeto de pesquisa se torna algo complexo. Será, no entanto, devido a tal complexa interligação que o desvio de interesse comentado anteriormente se deu? A técnica psicanalítica tornou-se um tema redundante, dado que não pode ser abordado isoladamente?

Retorno a Lacan a fim de lançar alguma luz sobre essas questões. Se, em sua obra, a técnica não foi um fim em si, mas, antes, um dos muitos aspectos da psicanálise abordados para reler os conceitos freudianos, por que o tema técnica prolifera menos que os demais? Se comentá-la implica expor casos clínicos, podem-se supor aí razões de sigilo. Não haveria também dificuldades dos psicanalistas em debaterem com seus pares (mais nas comunicações científicas do que nos cafés) aquilo que é mais íntimo de sua prática, como as intervenções realizadas com um determinado paciente, ou as invenções nada ortodoxas que certas situações clínicas exigem, por exemplo? Teríamos desenvolvido uma censura ou mesmo um pudor diante disso?

Freudianos, como Ferenczi, não foram econômicos na publicação de casos dos analisantes que mais inventividade lhes exigiam; é um exemplo deixado por Freud, que abordou frontalmente as questões que punham em xeque a sua teoria. Smirnoff junta várias perguntas pertinentes no mesmo trecho, que divido em duas partes:

Pode-se perguntar por que os analistas sentem um mal-estar quando se trata de explicar sua prática interpretativa. Alguma incerteza seria percebida quanto ao uso que fazem de seus oráculos? Seriam incrédulos quanto aos efeitos de sua prática interpretativa ou realmente insatisfeitos com as formulações que eles proferem relacionadas ao que eles inspiram idealmente? (Smirnoff, 1977, p. 65).

O termo interpretação, por exemplo, que denomina uma operação central à técnica, parece ser utilizado para as mais diversas intervenções. Da mesma forma, uma psicanálise exige várias intervenções que não podem ser consideradas interpretações. Estão os psicanalistas em consenso sobre o que é uma interpretação e quais outras ferramentas técnicas existem numa situação clínica? Trata-se de uma questão técnica, de elementos íntimos da prática clínica, campo onde diferenças radicais se manifestam sem, contudo, ganharem muito espaço de discussão. Tal reserva seria, como diz Smirnoff (1997), devido a um pudor diante da distância entre a prática e um suposto ideal de prática? Essa situação expressa uma grande diversidade de entendimentos dos fundamentos da técnica. Expressaria também certa incompreensão? Retomo a citação:

O que quer que seja, eles se julgam e temem ser julgados – acerca de suas aptidões ao interpretar. Ao ler e ao ouvir os analistas trazerem seus casos, tem-se sempre a impressão de que eles não se sentem nada seguros e que uma tonalidade justificadora nunca está ausente. E, aliás, poderia ser diferente? A menos que o analista não se mantenha na impostura de ser o depositário da verdade. Na sua relação com a verdade, o analista está sempre pisando em falso (Smirnoff, 1977, p. 65).

Smirnoff situa assim o referido pudor dos analistas em expor sua técnica diante de outros que certamente terão posições e pensamentos diferentes. Tais singularidades podem ser tomadas pelos outros analistas como diferenças “de escola”, de estilo, ou simplesmente como erros. O que destaco, porém, é que a referida reserva em expor as questões mais íntimas do trabalho do analista, isto é, técnicas, priva a psicanálise da possibilidade de que eventos clínicos novos e ricos reformulem suas bases.

Uma pesquisa de Edward Glover, comentada por Lacan (1955) e Fédida (1988), constata que numa mesma sociedade psicanalítica não havia nada próximo de uma suposta “identidade técnica”. Muito pelo contrário, as respostas dos psicanalistas participantes foram quase tão variadas quanto o número destes. Nada faria pensar que a mesma pesquisa realizada atualmente encontraria resultados diferentes da de Glover. Isto não é, evidentemente, mau. Mesmo assim é um acontecimento a ser analisado, visto que os psicanalistas cujas práticas técnicas tanto diferem têm como fundamento a mesma literatura psicanalítica. Não penso também que um extremo seja possível, isto é, dado que a teoria psicanalítica está sujeita a diferentes interpretações, e que essas podem ser tão variadas quanto o número de psicanalistas, qualquer técnica é legítima, qualquer coisa é possível numa psicanálise. Isto seria dizer que as obras de Freud e Lacan se desdobram para qualquer sentido e servem para qualquer propósito que se queira. Deve haver, porém, uma ética que serve de cerne tanto ao campo da técnica quanto ao da teoria de modo a permitir que esses campos sejam modificados pela experiência psicanalítica e que sejam influenciados pelas diferentes singularidades. Mas como conceber tão intrincados movimentos entre teoria, técnica, ética e as diferentes subjetividades dos analistas?

As diferentes perspectivas técnicas devem estar calcadas em determinados axiomas que possuam certos pontos suficientemente estabelecidos como a associação livre, por exemplo. É o que parece propor Fédida (1988, p. 103) quando comenta que, segundo Fenichel, “Tudo é permitido com a única condição de que se saiba por que”. Fédida (1988, p. 101) também coloca que se é impossível uma uniformização objetiva da técnica e há liberdade para diferentes singularidades deve haver, entretanto, o “corolário corretivo” de que “o analista pense metapsicologicamente o que faz e que a metapsicologia forme as bases ‘doutrinárias’ de um discurso consensual da comunidade analítica”. Isto é diferente de afirmar que qualquer coisa é possível, já que haveria bases metapsicológicas estabelecidas com rigor.

Fédida (1988, p. 105 e 106) ainda questiona qual estatuto atribuir às diferenças como a duração das sessões (diretamente associadas em oposições entre Lacan, Klein, Winnicott e outros) ou entre o analista “silencioso” e o mais “interpretativo”, por exemplo. No que estão fundamentadas tais divergências? Isso leva aos seguintes apontamentos: (a) há distintas técnicas que são resultados de diferentes entendimentos e acréscimos teóricos (existe apenas uma obra freudiana, mas não se pode dizer que exista uma única teoria psicanalítica), (b) outras que são diferenças de “escola” (podendo agir de maneira muito complexa através da tradição, o que corre o risco de ser a reprodução não criticada de um modelo vigente e já aceito) e (c) diferenças técnicas que são expressões das singularidades dos psicanalistas.

Com todas as ressalvas que devem ser consideradas, a história da psicanálise é marcada por uma intenção de cura, de tratamento. Percebe-se, por exemplo, nos “Estudos Sobre Histeria” (1895), como a descoberta da dissociação da consciência levou Freud a pensar que todas as memórias podem ser acessadas, desde que se encontre a técnica correta para evocá-las e encadeá-las. Nesse texto dialogam com enorme intensidade as descobertas teóricas com as novas opções técnicas. Embora com muito menor volume, o diálogo jamais cessou na obra de Freud, pois não há a proposta de uma técnica que fosse a última, inteira, ideal. A partir dessa indeterminação, entendida como elasticidade, proponho uma discussão com Lacan.

Os escritos técnicos de Lacan

Talvez a inquietude de Lacan tenha sido o traço mais marcante tanto de sua prática clínica quanto de seu ensino. Mesmo declarando-se freudiano e incumbindo a si mesmo a tarefa de resgatar o verdadeiro sentido dos conceitos fundamentais da psicanálise, suas manifestações jamais tiveram o objetivo de mantê-los em sua compreensão mais comum. Muito pelo contrário, seu retorno a Freud é caracterizado por um grande caráter crítico que propõe uma leitura inovadora dos conceitos. Ruptura feita através de um movimento contrário a muitas organizações psicanalíticas que buscavam manter a “palavra freudiana” como algo sagrado e intocável; o que teria uma série de consequências indesejáveis para instituições e para formação de psicanalistas em geral.

A que dizem respeito as fórmulas da psicanálise? O que é que motiva e modula esse deslizamento do objeto? Existem conceitos analíticos de uma vez por todas formados? A manutenção quase religiosa dos termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica, a que se remete ela? Tratar-se-á de um fato muito surpreendente na história das ciências – o de que Freud seria o primeiro, e permaneceria o único [...] a ter introduzido conceitos fundamentais? (Lacan, 1964a, p. 17-18).

Portanto, a proposta de Lacan é de ir além de fazer comentários ou acréscimos à teoria psicanalítica, mas trabalhar sobre suas bases fundamentais, dissipando sua crescente estagnação. Em seus escritos psicanalíticos, predominantemente situados na década de 1950 (os que chamo de “escritos técnicos”), talvez o principal objeto de sua crítica endereçada aos pós-freudianos da época tenha sido a técnica. Ali é afirmado que através desta estava se manifestando uma perigosa cristalização dos conceitos freudianos, resultando em práticas clínicas supostamente empobrecidas, incapazes de trabalhar verdadeiramente com o inconsciente. Há aí o alerta de que, para evitar a degeneração da técnica psicanalítica, é necessário então resgatar o sentido da experiência psicanalítica (Lacan, 1953, p. 268). Lacan ainda acrescentaria: “A verdade é que as flagrantes incertezas da leitura dos grandes conceitos freudianos são correlatas às fraquezas que oneram o labor prático” (1958, p. 618).

Tais incertezas eram notadas por Lacan nas diversas interpretações que os psicanalistas faziam da obra de Freud sem, contudo, realizá-las com o rigor e a competência que se julgavam necessários. De alguma forma, Lacan parece ter percebido e acusado uma grande carência da qual sofria a psicanálise desde a morte de Freud.

A teoria, ou melhor, o repeteco que leva esse nome, e que é tão variável em seus enunciados que às vezes parece que somente sua insipidez mantém neles um fator comum, não passa do preenchimento do lugar onde se demonstra uma carência, sem que sequer saibamos formulá-la (Lacan, 1966, p. 234).

Essa incoerência teórica, cujo resultado direto é o empobrecimento da técnica, apresenta, desde então, uma relação com a verdade. Aqui o termo é tomado como o saber do inconsciente, cuja produção as sociedades psicanalíticas estariam estancando na medida em que a verdadeira descoberta freudiana encontrava-se desvirtuada, perdida de seu propósito. É uma opinião que Lacan manteve durante muitos anos e que pode ser encontrada em textos bastante posteriores aos escritos da década de 1950, como “O aturdito”:

Assim formulado, o dizer de Freud justifica-se desde logo por seus ditos, pelos quais ele se prova (coisa que eu disse), pelos quais se confirma, por ter se confessado pela estagnação da experiência analítica (coisa que denuncio), e se desenvolveria pela retomada do discurso analítico (coisa em que me empenho), já que, embora sem recursos, isso é da minha alçada (Lacan, 1972, p. 456).

A referida estagnação, ou seja, a prática e a disseminação da doutrina freudiana, não devidamente compreendida em seu rigor tampouco submetida a uma visão crítica, criou instituições encarregadas de perpetuar certos conceitos de maneira dogmática. Segundo Lacan (1951, p. 216), a verdade que Freud nos ensinou a escutar “inspira um temor crescente” nos psicanalistas, na medida em que ela abala os dogmas das instituições em questão. Assim, noções vigentes como “contratransferência” foram altamente repudiadas, uma vez que tinham sido identificadas como signos de inconsistência através dos quais o psicanalista “furta-se de considerar a ação que lhe compete na produção da verdade” (Lacan, 1955, p. 334).

Abordando criticamente as técnicas difundidas da época, Lacan se fez ouvir logo no início de seu ensino. Além de alguns de seus escritos mais antigos, o primeiro seminário – sobre os escritos técnicos de Freud – demonstra igualmente a preocupação em reler ou, melhor dizendo, reconstruir o sentido da técnica de Freud. Na verdade, é um traço da obra lacaniana que se manteve até suas últimas manifestações. Assim, o autor propõe uma retomada do “poder do símbolo”, a fim de promover “a via de um retorno ao uso dos efeitos simbólicos numa técnica renovada da interpretação” (Lacan, 1953, p. 295).

As regras técnicas

Em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan afirma que “[...] as regras técnicas, ao se reduzirem a receitas, suprimem da experiência qualquer alcance de conhecimento e mesmo qualquer critério de realidade” (1953, p. 241). Mais adiante (p. 245), no mesmo texto, ainda há o alerta sobre o perigo da técnica sofrer uma aplicação obsessiva que se compararia ao cerimonial dos ritos religiosos, o que não permitiria qualquer arejo crítico. Assim, é afastada a possibilidade da existência de uma formalização da técnica, qualquer espécie de protocolo ou “catálogo de intervenções”. De alguma maneira, ela deve sustentar-se em relação a uma referência ética:

Trata-se, sim, de um rigor de alguma forma ético, fora do qual qualquer tratamento, mesmo recheado de conhecimentos psicanalíticos, não pode ser senão psicoterapia. Esse rigor exigiria uma formalização, a nosso entender teórica, que não conseguiu satisfazer-se até hoje senão ao ser confundida com um formalismo prático, ou seja, com aquilo que se faz ou que não se faz. Eis por que não é mau partir da teoria dos critérios terapêuticos para esclarecer essa situação (Lacan, 1955, p. 326).

Mais do que acusar a caracterização da técnica como uma distinção entre intervenções “corretas” ou “erradas”, Lacan remete à ética psicanalítica. Por enquanto, destaco a questão dos critérios terapêuticos evocada no final da citação anterior, onde é considerada como o efeito de uma análise que questiona o formalismo da prática e da teoria, o que não quer dizer que seja uma finalidade última. Isso é esclarecido na sequência quando alerta: “Que esses critérios se desvaneçam na medida mesma em que se invoca uma referência teórica é grave, quando é a teoria que se alega para conferir ao tratamento seu status” (Ibid., p. 327). Ou seja, é preferível avaliar uma intervenção pelos seus efeitos do que pela sua correspondência à teoria. Essa posição dá lugar ao referido arejo crítico e a uma constante renovação da técnica, abertura que igualmente permite que a teoria seja questionada e atualizada.

É interessante, porém, que Lacan propõe que a situação de tratamento seja esvaziada de diretrizes, mas antes a põe em questão. Em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” há o seguinte trecho, o qual divido em três partes, que evoca justamente em que consistiria a direção do tratamento:

Consiste, em primeiro lugar, em fazer com que o sujeito aplique a regra analítica, isto é, as diretrizes cuja presença não se pode desconhecer como princípio do que é chamado “a situação psicanalítica”, sob pretexto de que o sujeito as aplicaria melhor sem pensar nelas (Lacan, 1958, p. 592).

Se as regras seriam mais bem aplicadas caso o paciente e mesmo o psicanalista não estivessem pensando nelas, isso é uma questão secundária. Preferirei colocar em primeiro plano o seguinte: terá mais sucesso o tratamento no qual as ditas regras forem mais “corretamente” aplicadas? É na direção da adaptação do discurso do paciente às ditas regras fundamentais que o analista deve dirigir seus esforços? Entendo que Lacan diz que, considerados como regras ou não, há princípios que regem um tratamento e que não podem ser confundidos com um conjunto determinável de medidas que o analista e o analisante teriam que ter sempre em mente durante as sessões. Eis a deixa através da qual resgato a elasticidade de Ferenczi. Segue a segunda parte da citação.

Essas diretrizes, numa comunicação inicial, revestem-se da forma de instruções, as quais, por menos que o analista as comente, podemos considerar que, até nas inflexões de seu enunciado, veicularão a doutrina com as quais o analista se constitui, no ponto de consequência que ela atingiu para ele (Lacan, 1958, p. 592).

Eis uma passagem que demonstra a importância da maneira como o próprio analista se relaciona com a psicanálise, o que deriva dos traços de sua subjetividade. Aqui há também uma referência ao chamado desejo do analista, ou seja, à posição subjetiva do psicanalista que de alguma maneira permitirá que alguém se analise. Isso quer dizer que não existe um ponto de neutralidade analítica, uma suposta posição onde a subjetividade e o desejo do analista não influenciam o tratamento. Pelo contrário, o campo da técnica, em sua constituição exige o estilo e o desejo do psicanalista. Outra questão que subjaz aí é: deve o analista sempre instruir o paciente acerca da(s) regra(s) fundamental(ais)? A parte final da citação:

O que não o torna menos solidário da profusão de preconceitos que, no paciente, esperam nesse mesmo lugar, conforme a ideia que a difusão cultural lhe tenha permitido formar acerca do procedimento e da finalidade da empreitada (Lacan, 1958, p. 592).

Os ideais que tanto o paciente quanto o analista podem formar acerca de um tratamento, questão que se manifesta nas expectativas de ambos em relação ao trabalho de análise, são capazes de criar uma certa pré-formatação dos lugares em jogo. Nada garante que um analisante comprometido em trazer sonhos e associar o mais livremente possível, ou seja, que se submeta fielmente ao que supõe que deva fazer, à regra, se analise “mais” ou “melhor”. Daí a preocupação de Lacan em questionar a adaptação à regra como um indício de análise bem conduzida.

Em “Intervenção sobre a transferência” há uma posição mais clara acerca do problema das regras, que também separo em três partes.

Numa psicanálise, com efeito, o sujeito propriamente dito constitui-se por um discurso em que a simples presença do psicanalista introduz, antes de qualquer intervenção, a dimensão do diálogo (Lacan, 1951, p. 215).

Isto é, a situação psicanalítica é estabelecida pelo diálogo, pela direção da fala ao outro, não pela obediência às regras. Basta que se considere que a transferência, por exemplo, foi um fenômeno que dispensou sua teorização para acontecer, assim como os pacientes de Freud já livre associavam antes mesmo de essa regra ter-se estabelecido como fundamental na técnica psicanalítica. O mesmo vale para os sonhos, pois, ora, Freud só descobriu sua importância porque os pacientes relatavam sonhos antes mesmo de que a psicanálise formulasse algo sobre eles – as regras fundamentais não antecederam a psicanálise. Eis uma passagem de Freud onde a questão é abordada:

É errado determinar tarefas ao paciente, tais como coligir suas lembranças ou pensar sobre um período específico de sua vida. Pelo contrário, ele tem de aprender, acima de tudo [...], que atividades mentais, tais como refletir sobre algo ou concentrar a atenção, não solucionam nenhum dos enigmas de uma neurose; isto só pode ser efetuado ao se obedecer pacientemente à regra psicanalítica, que impõe a exclusão de toda crítica do inconsciente ou de seus derivados (Freud, 1912, p. 132).

A regra tem seu valor se não for uma atividade racionalizada, se puder manter o caráter espontâneo da fala. Até esse ponto, Freud nos passa a impressão de que a obediência à regra é intransponível. O texto continua assim, porém:

Deve-se ser especialmente inflexível a respeito da obediência a essa regra com pacientes que praticam a arte de desviar-se para o debate intelectual durante o tratamento, que teorizam muito [...], evitam fazer algo para superá-lo (Freud, 1912, p. 132).

Embora Freud exija uma certa aplicação da regra, é notável que, em parte, isso se flexibiliza pela recomendação de que ela seja usada “especialmente” com maior rigor em pacientes cuja fala tende à tergiversação. Não é viável, então, afirmar que Freud propôs que em um momento de resistência seria possível valer-se da regra fundamental, ou seja, da própria enunciação da regra como uma intervenção? E, por outro lado, seria sempre essencial que o paciente tivesse conhecimento da regra, uma vez que ela mesma pode servir de pretexto à resistência? Retomo a citação de Lacan de “Intervenção sobre a transferência”, em sua segunda parte.

Não importa que irresponsabilidade, ou mesmo que incoerência as convenções da regra venham instaurar no princípio desse discurso, está claro que esses são apenas artifícios de bombeiro hidráulico [...], com a finalidade de assegurar a transposição de certas barreiras, e que o curso deve ser seguido segundo as leis de uma gravitação que lhe é própria e que se chama verdade (Lacan, 1951, p. 215).

Afirmo que a técnica só adquire sentido se tomada em referência à verdade, sendo as convenções da regra opcionais, secundárias, como artifícios aos quais se pode ou não recorrer de acordo com a contingência. É esta referência à verdade que exigirá a elasticidade da técnica. A citação termina assim:

É esse [verdade], com efeito, o nome do movimento ideal que o discurso introduz na realidade. Em síntese, a psicanálise é uma experiência dialética, e essa noção deve prevalecer quando se formula a questão da natureza da transferência (Lacan, 1951, p. 215).

Aqui, Lacan acentua o caráter espontâneo da transferência que se instaura a partir da fala, que é endereçada a um lugar, e não o caráter da fala que se adapta a certas convenções técnicas. Passo agora a abordar essa função, a fala, acento principal que Lacan resgata na técnica de Freud.

A função da fala

Segundo Lacan (1953, p. 255), a fala estava sendo um objeto de crescente desvalorização tanto na teoria quanto na técnica psicanalíticas, o que o levou a resgatar fortemente a função dela a partir da premissa de que “a psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente” (Ibid., p. 248). Essa crítica dirigiu-se à tendência dos pós-freudianos em centrar suas intervenções num além da fala dos pacientes, em certo critério ambíguo de realidade que compreenderia também o comportamento do analisante.

[...] não há fala sem resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio, desde que ela tenha um ouvinte, e que é esse o cerne de sua função na análise. Mas se o psicanalista ignorar que é isso que se dá na função da fala, só fará experimentar mais fortemente seu apelo, e, se é o vazio que nela se faz ouvir inicialmente, é em si mesmo que ele o experimentará, e é para-além da fala que irá buscar uma realidade que preencha esse vazio. Assim, ele passa a analisar o comportamento do sujeito para ali encontrar o que ele não diz (Lacan, 1953, p. 249).

Assim, a fala não possui um caráter de descrição ou confissão da verdade, mas é ela mesma uma comunicação que evoca, que produz a verdade. Isso coloca o acento na função de enunciação da fala, no sentido de que não é a mesma que o enunciado, isto é, de comunicar um conteúdo. Vê-se como Lacan já caminha na direção de uma concepção de verdade diferente da adequação do enunciado à coisa, ou seja, por estar apoiada na fala, a verdade não pode exprimir-se como objetivação da realidade.

A fala, portanto, afigura-se tão mais verdadeiramente uma fala quanto menos sua verdade se fundamenta na chamada adequação à coisa: assim, a fala verdadeira opõe-se, paradoxalmente, ao discurso verdadeiro, distinguindo-se a verdade dos dois pelo fato de a primeira constituir o reconhecimento de seus seres pelos sujeitos, no que eles estão interessados nela, ao passo que o segundo constitui-se pelo conhecimento do real, tal como visado pelo sujeito nos objetos. Mas, cada uma das verdades aqui distinguidas altera-se ao cruzar com a outra em seu caminho (Lacan, 1955, p. 353).

Lacan alega a não existência de metalinguagem, uma vez que ela não apreende a si mesma sem ser ela própria linguagem, assim como a fala não fala de si mesma por outra via que a própria fala; lógica que alicerça a divisão do sujeito e a verdade sempre semidita. Em O mito individual do neurótico há uma passagem precisa acerca dessa questão: “A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la – e isso de forma mítica” (Lacan, 2008, p. 13).

Resumimos que: (a) mais do que comunicar alguma coisa, a fala servirá para evidenciar a existência da comunicação que estabelece lugares; (b) aquilo a que a fala se remete enquanto enunciado será menos importante do que aquilo que exprime em termos de revelação de verdade, o que dependerá de sua enunciação, contradições e de seu não-sentido. Tais são premissas fundamentais que Lacan reencontra em Freud, resgatando sua descoberta a partir dos equívocos produzidos na fala, produções alheias ao sentido. O que se propõe, portanto, é que para contemplar o “valor de evocação” da fala “essa técnica exigiria, tanto para ser ensinada quanto para ser apreendida, uma profunda assimilação dos recursos de uma língua [...]” (Lacan, 1953, p. 296), o que justificaria o intenso diálogo entre a psicanálise e a linguística estruturalista, característica do primeiro momento do ensino de Lacan.
Em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (Lacan, 1958, p. 647) ainda encontramos a seguinte lista:

1. Que a fala tem aqui todos os poderes, os poderes especiais do tratamento.

2. Que estamos muito longe, pela regra, de dirigir o sujeito para a fala plena ou para o discurso coerente, mas que o deixamos livre para se experimentar nisso;

3. Que essa liberdade é o que ele tem mais dificuldade de tolerar;

4. Que a demanda é propriamente aquilo que se coloca entre parênteses na análise, estando excluída a hipótese de que o analista satisfaça a qualquer uma;

5. Que, não sendo colocado nenhum obstáculo à declaração do desejo, é para lá que o sujeito é dirigido e até canalizado;

6. Que a resistência a essa declaração, em última instância, não pode ater-se aqui a nada além da incompatibilidade do desejo com a fala.

Com tais ideias, faz-se a técnica orbitar em torno da função da fala e sua relação com a verdade, o que terá várias consequências importantes, como a modalidade de interpretação e a suspensão da sessão, por exemplo. Essas consequências, embora originais, são extraídas da crítica à doutrina freudiana.

[...] a técnica não pode ser compreendida nem corretamente aplicada, portanto, quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam. Nossa tarefa será demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala (Lacan, 1953, p. 247).

O resgate da função da fala refunda a técnica psicanalítica, acentuando nela uma faceta nunca antes tão explorada. A partir daí, Lacan propõe uma série de intervenções – pontuação, citação, escansão, assim como a suspensão da sessão –, que permite uma comparação com as ferramentas freudianas, como construção e interpretação, ampliando e ressignificando a técnica.

Teoria, técnica e a sua elasticidade


Penso estar sendo prudente, contudo, em chamar estas regras de ‘recomendações’ e não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas. A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica (Freud, 1913, p. 139).

Proponho uma ilustração que representa uma estrutura onde dois campos, o da teoria e da técnica, se relacionam. Há nela um ponto êxtimo (neologismo de Lacan que expressa uma intimidade exterior) tal qual o vazio central da estrutura topológica do toro, onde o espaço central e íntimo encontra-se em continuidade com o periférico e exterior. É uma demonstração do campo do Outro, ou universo de discurso (A), em sua relação com a falta que lhe é intrínseca, o objeto a. Assim a linguagem é compreendida por Lacan (1968-69) como um campo que porta um ponto vazio, de falta de saber, lugar vazado (troué) onde está localizada a verdade (Lacan, 1968-69, p. 58). Desse ponto de falta depende toda produção de novos saberes, sem, porém, que a hiância seja preenchida.

Na representação seguinte o ponto central, um furo nos campos da técnica e da teoria, ocupa o mesmo espaço que é externo a ambos os campos. O quadrado que cerca a figura serve apenas para limitar o espaço no qual estamos trabalhando, mas não significa de forma alguma que esse espaço tenha limites determináveis ou medidas. O que a figura mostra não é a própria estrutura, mas sua representação. Não se considera, portanto, tamanho ou forma dos campos, tampouco a distância entre as linhas, o que significa que não há áreas maiores ou menores que outras. A abstração que permitirá abordar se tal estrutura está num espaço que prescinde de medidas. Eis a ilustração:

Primeiramente, o campo da teoria aparece contendo o campo da técnica. Se considerada, porém, a estrutura que a figura apresenta, vê-se que não é exatamente isso o que acontece. O buraco central no campo da técnica é ao mesmo tempo um ponto que circunda o campo da teoria. Tal ponto é êxtimo, portanto. Isso significa que, embora interior, ele está em continuidade com a área que é externa ao campo da teoria, de forma que o campo da técnica é ao mesmo tempo interior e exterior ao da teoria.

Com isso, busco demonstrar que o ponto mais íntimo à técnica é exterior à teoria, de maneira homóloga ao campo do Outro, no qual, enquanto campo de saber, sua essência é um ponto de falta. Existe uma teoria sobre a técnica, mas uma teoria impossibilitada de ser totalizada devido à inapreensibilidade daquilo que se encontra no cerne da prática psicanalítica. Isto é, na intimidade do campo da técnica aparece um ponto de vazio irredutível que impede sua determinação em termos finais. Há alguma concepção de técnica que não acolhe esse vazio central, que a mantém num campo aberto e que resulta no congelamento da teoria, tão combatido por Lacan, uma vez que qualquer modificação da teoria depende de que exista a área de indeterminação que ela pode vir a ocupar, embora nunca plenamente. Do ponto esvaziado que caracteriza essa estrutura, resulta a indeterminação radical que impede que tanto teoria quanto técnica cheguem a formalizações definitivas, permitindo seus avanços. É isso que chamo de elasticidade, a indeterminação sobre a qual estão relacionadas teoria e técnica.

Durante a obra de Freud, em vários momentos, a teoria teve que ser reformulada conforme a técnica encontrava impossibilidades que acabariam por promover mudanças. Os avanços da pesquisa freudiana são devidos, em grande parte, à insuficiência tanto da técnica quanto da teoria, diante de novos fatos clínicos. Segundo Fédida (1988, p. 97), por essa razão Freud preferia enunciar as regras “apenas a título de conselho sem exigir sua estrita observância”. Sándor Ferenczi abordou o problema no trecho seguinte, que divido em duas partes a fim de que seja analisado mais detalhadamente:

[...] a confiança em nossas teorias só pode ser condicional, pois o caso em questão talvez seja a famosa exceção da regra, ou talvez a necessidade de se modificar algo na teoria em vigor até então. [...] A modéstia do analista não é pois uma atitude que se aprenda, mas a expressão da aceitação dos limites do nosso saber (Ferenczi, 1928, p. 101, grifo do autor)

Ao comentar a afirmação freudiana de que cada analista pode encontrar diferentes referenciais técnicos, Lacan (1955, p. 364) entra em acordo com Ferenczi propondo que a relativização da técnica está além de uma “profunda modéstia” de Freud, mas antes calcada na chamada “douta ignorância”. Eis o trecho final de Ferenczi:

Deve-se, como um elástico, ceder às tendências do paciente, mas sem abandonar a pressão na direção de suas próprias opiniões, enquanto a inconsistência de uma dessas duas opiniões não estiver plenamente comprovada (Ferenczi, 1928, p. 102).

Compreendo que o conceito ferencziano de elasticidade abrange a ideia de que a técnica não deve ser um conjunto de regras; ou até pode, desde que uma das regras seja a abertura que possa mantê-la sob constante crítica e reformulação que os fatos clínicos exigem. Muito embora Ferenczi proponha que o psicanalista trabalhe com suas convicções, alerta para que esteja disposto a abandoná-las, se preciso. Horacio Etchegoyen também comenta tal questão:

Somente na psicanálise podemos ver como uma determinada abordagem técnica conduz, de modo inexorável, a uma teoria (da cura, da enfermidade, da personalidade, etc.) que, por sua vez, gravita retroativamente sobre a técnica e a modifica para torná-la coerente com os novos achados – e assim indefinidamente. Talvez nisso se baseie a denominação um tanto pretensiosa de teoria da técnica, que tenta não apenas dar um respaldo teórico à técnica, mas também salientar a inextricável união de ambas (Etchegoyen, 2004, p. 21).

Um exemplo seria como a hipnose catártica levou ao achado da dissociação da consciência e, a partir desse, ocorreram as elaborações teóricas que refundaram a técnica. Fato semelhante aconteceu no encontro de Freud com os doentes da Primeira Guerra Mundial, o que o lançou para novos problemas teóricos e assim por diante. Pierre Fédida também aborda o assunto de forma muito precisa:

[...] Freud não se interessou pela técnica psicanalítica a não ser na medida que tivesse valor de método e que a prática do método era, antes de mais nada, posta a serviço das descobertas teóricas sobre o psiquismo humano. Assim, a técnica elaborada por Freud desde o uso da sugestão hipnótica pode ser considerada como um método de investigação progressivamente deduzido de hipóteses teóricas sobre o funcionamento psíquico e, pouco a pouco, depurado através de suas aplicações na terapia das perturbações psíquicas neuróticas, com o intuito de ver se estas aplicações verificavam e enriqueciam a ciência psicanalítica (Fédida, 1988, p. 98).

A técnica não foi para Freud algo a ser teorizado e fixamente estabelecido, mas uma ferramenta mutável empregada para tratamento clínico e pesquisa do psiquismo. É nesse sentido que Fédida salienta o valor de método depositado por Freud na técnica, ou seja, ela deveria manter-se útil para a investigação dos processos mentais cuja crítica e elaboração darão origem à metapsicologia.

José Luiz Caon (1996a, p. 109) propõe a metapsicologia como dispositivo epistemológico próprio da pesquisa psicanalítica como “gênero literário de ensaios científicos”. Isso se sustenta na ideia de que a pesquisa psicanalítica, ao produzir de forma ensaística os textos que compõem a metapsicologia, refunda no relance (Nachträlichkeit) a experiência psicanalítica originalmente fundada na situação psicanalítica de tratamento. Assim, a metapsicologia, que equiparo ao campo da teoria da figura mais acima, uma vez que criada por Freud como teoria do conhecimento específico da psicanálise, “procede de fragmento em fragmento, deixando restos insolucionados; portanto, procede de rompimento em rompimento” (Caon, 1996b, p. 71). Essa concepção parece correta, pois se considerado o vazio exterior ao campo da teoria como o lugar onde a pesquisa psicanalítica avança, refundando a psicanálise, necessariamente sobram os referidos restos cuja não solução deve compor o cerne de campo da técnica. Salienta-se, porém, que a refundação só acontece no après-coup da situação de tratamento, o que significa que, assim como o ato do psicanalista, o ato do pesquisador psicanalítico é um momento posterior à sua experiência de psicanalisante. É o que Caon (1999, p.40) aponta ao dizer que não se é pesquisador ou psicanalista “se não tiver sido paciente, se não tiver fundado a experiência psicanalítica no lugar e no lagar das decomposições do amor transferencial”. É a partir de tal concepção de refundação que proponho que a impotência da técnica refunda a teoria que, uma vez modificada, refunda a técnica.

A estrutura acima é minha proposta de formalização de algo que Freud fez operar durante todo desenvolvimento da psicanálise, isto é, a pesquisa psicanalítica apoiada nos eventos surpreendentes da prática clínica, produzindo novos ensaios metapsicológicos e novas perspectivas técnicas. Nela se pode reconhecer a mesma estrutura teórica que concebe o conceito de verdade como apoiado sobre a falta de saber no universo de discurso, o objeto a. Esta insuficiência do Outro deve caracterizar a propriedade de elasticidade da técnica psicanalítica, orientada em torno de um ponto específico indeterminável. É dessa maneira que apresento a elasticidade da técnica a partir do mesmo ponto do qual depende a verdade, isto é, do objeto a. Com essa homologia, reafirmo o que diz Fédida (1988, p. 108): a técnica só pode ser pensada a partir de sua referência fundamental – a linguagem.

[...] a epistemologia própria à teoria psicanalítica – a episteme da psicanálise – não é de forma nenhuma dissociável da experiência da análise e, neste sentido, de sua techné, neste caso, da condição de linguagem do trabalho psicanalítico (Fédida, 1988, p. 107).

Lacan (1953, p. 247), em concordância com Fédida, afirma que os conceitos que fundamentam a técnica “só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala”. Por colocar-me de acordo com essa ideia é que entendo que a estrutura, onde estão relacionadas técnica e teoria, deve ser homóloga à estrutura da linguagem.

A subjetividade do psicanalista na técnica

Ferenczi também abordou a influência da subjetividade e dos processos mentais do analista na técnica. Atribui-se a ele, inclusive, aquela que seria a segunda regra fundamental da psicanálise. Eis um trecho de Elasticidade de Técnica Psicanalítica:

Houve, todavia, e ainda há, no interior da técnica psicanalítica, muitas coisas que se tinha a impressão de serem individuais, pouco definíveis com palavras; logo de início o fato de, neste trabalho, a importância que parecia ser atribuída à “equação pessoal” era bem maior do que o que se podia aceitar na ciência. O próprio Freud, em suas últimas comunicações sobre a técnica, deixava livre o campo para outros métodos de trabalho em psicanálise, paralelos ao dele. É bem verdade que essa declaração é anterior à época da cristalização da segunda regra fundamental da Psicanálise, de que quem quer que queira analisar os outros deve ser antes ele próprio analisado (Ferenczi, 1928, p. 97).

Na sequência do texto, Ferenczi parece compreender, ou talvez desejar, porém, que a análise pessoal diminua as diferenças técnicas, pois eliminando as dificuldades subjetivas dos analistas, ela os tornaria capazes de controlar seu viés pessoal na aplicação de uma técnica uniforme. A chamada “equação pessoal”, a indeterminação, entretanto, permanece em questão. Ferenczi a chama de tato psicológico e afirma que aí estão implicadas variáveis como:

[...] saber quando e como se comunica algo ao analisando, quando se pode declarar que o material fornecido é suficiente para se tirar conclusões; que roupagem dar à comunicação se for o caso; como reagir a uma reação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar e esperar outras associações; em que momento o silêncio é uma tortura inútil para o paciente, etc. (Ferenczi, 1928, p. 97).

Muito embora a posição ferencziana aponte para a esperança de que a análise pessoal mais o saber adquirido com prática e teoria psicanalíticas possam permitir ao tato psicológico do analista decidir sempre “corretamente” diante das dificuldades de um tratamento, há um espaço de indeterminação da técnica que é diretamente associado à subjetividade do analista. Creio que seja preciso ressaltar que, embora não concorde que o chamado tato psicológico atinja um ideal que leve ao aniquilamento das diferenças e imprecisões técnicas, é importante reconhecer como a indeterminação técnica é diretamente relacionada à subjetividade do psicanalista.

O primeiro argumento contra a opinião ferencziana, bastante óbvio, é que, ao final de suas respectivas análises, os psicanalistas achamos soluções técnicas e estilos cada vez mais diferenciados, não mais pontos de encontro, pois, ora, cada psicanálise é uma experiência singular. Então, é óbvio para nós, como foi para Ferenczi, que análises suficientemente profundas e bem conduzidas produzam analistas de técnicas cada vez mais semelhantes? Fédida (1988, p. 101) afirma que, associadas à “equação pessoal” e à análise própria do analista, “não é realista esperar uma espécie de uniformização objetiva da técnica analítica”, mas antes a “legitimação de um estilo pessoal de trabalho de cada analista”, fazendo ainda a ressalva de que o fazer psicanalítico deve guiar-se pela metapsicologia enquanto “discurso consensual da comunidade analítica”. A metapsicologia, teoria específica e própria da psicanálise, porém, é ela mesma um campo mutável e aberto para novos saberes e, desse modo, permite que estilo e teoria não sejam mutuamente excludentes. Pelo contrário, estão diretamente engendradas a singularidade do analista e a impossibilidade de uniformização da teoria e da técnica. Afirmamos, portanto, que, para não ser mecanizada, a técnica exige o estilo singular do psicanalista, agindo – e permitindo também que o inconsciente do psicanalisante aja – no espaço de indeterminação do campo técnico e ampliando o campo teórico. Ao separar a autoanálise das questões técnicas e metapsicológicas, a prática clínica se torna um conjunto de regras; objeto privilegiado das críticas de Lacan.

Tomando-se a psicanálise como uma experiência fundada na situação de tratamento e refundada no relance da pesquisa que gera a metapsicologia, é necessária a segunda regra fundamental proposta por Ferenczi. Todavia, há que se discordar que ela tenha as consequências por ele desejadas, já que elas não são congruentes com as propriedades da linguagem que apresenta Lacan, ou seja, a uniformização da técnica não é compatível com a noção de universo de discurso que porta uma falta estruturante. Se orientada pela função da fala e pelo campo da linguagem, a técnica deve possuir uma inconsistência intrínseca capaz de acolher variantes.

Lacan, por sua vez, trabalha a subjetividade do analista dentro de outra perspectiva, propondo o desejo do analista não como a influência singular de cada analista na técnica, mas uma função que deve operar no âmbito da transferência. Por exemplo: “[...] é o desejo do analista que, em última instância, opera na psicanálise” (1964b, p. 868). Quais fundamentos subjazem tão concisa proposta?

Em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan, 1964a, p. 259), o desejo do analista é o que opera na transferência promovendo um movimento no sentido contrário a uma identificação idealizadora, face resistente da transferência. Ao apresentar ao sujeito a falta que lhe é intrínseca enquanto falta-a-ser, fazendo semblante de objeto a, o psicanalista age no sentido de esvaziamento do caráter imaginário e resistente da transferência. Eis o ato psicanalítico que, por presentificar o objeto a, é desalojador e fundador de uma nova sequência discursiva.

O desejo do analista não é, portanto, seu estilo, mas antes uma condição subjetiva que lhe permite psicanalisar, uma vez que ele mesmo tenha fundado sua experiência enquanto psicanalisante. Caon (1997) afirma: “O desejo do psicanalista, enquanto pesquisador psicanalítico, será sempre o desejo de que o paciente (analisante) se analise”. O elemento fundamental desse desejo é o objeto a, que é homólogo ao ponto de indeterminação do campo da técnica e do universo de discurso. A condição para psicanalisar será inaugurada pela transmissão do objeto faltante, ato que encerra uma análise e faz advir um psicanalista – o que Lacan chama de operação-verdade (1967-68).

A partir de Lacan, portanto, não há como conceber a técnica a não ser elasticamente, como as medidas tomadas pelo psicanalista que, autorizado por sua relação particular com a linguagem (operação-verdade), terá sua técnica moldada por seu estilo e sua formação, orientado por um “saber fazer” com a verdade. Por isso, não é demais retomar a afirmação de Freud:

Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta (Freud, 1912, p. 125).

Não sendo assim, cai-se novamente no conjunto de regras, na mecanização. A técnica não apenas permite, mas exige o estilo e o desejo do psicanalista orientado pela douta ignorância, isto é, guiado pela verdade.

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Texto recebido em: 03/09/2009
Aprovado em: 19/11/2009