Depressão ou angústia? Embaraços do desejo em um processo analítico
Depression or anxiety? Embarrassments of desire in a process analytical


Andréa Máris Campos Guerra

Psicanalista
Professora do Departamento de Psicologia da UFMG
Doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ) com Études Approfondies em Rennes II (França)
Mestre em Psicologia Social (UFMG)
aguerra@uai.com.br

Resumo

Capturada pelo discurso contemporâneo acerca da depressão, analisante retoma tratamento psicanalítico em grave estado de angústia, que a paralisava. A instalação da angústia deu-se por conta do nascimento da filha, que atualiza o ponto traumático de sua inserção no desejo do Outro, tornando-o insuportável. Posicionada e identificada ao desejo materno, interpretado como desejo de morte, sua posição no laço social era equivalente à do estudante no discurso universitário: continuar a saber sempre mais. A paralisação de sua produção profissional leva-a a crer que está deprimida. A saída subjetiva que encontra opera analiticamente através do trabalho significante e do resto recolhido pela elaboração de dois sonhos, que permitem o enquadramento da fantasia e a abertura ao desejo.

Palavras-chave: angústia, depressão, psicanálise, desejo.

 

Abstract

Identified to the contemporary discourse about the depression, the patient takes psychoanalytic treatment in severe state of distress, which paralyzed her. The installation of the anxiety occurred due to the birth of her daughter that updates the traumatic point of its insertion in the Other's desire, making it unbearable. Positioned identified to the maternal desire, interpreted as a desire for death, its position in the social bond was equal to the position of the student in the university discourse, according to J. Lacan: continue to learn ever more. The stoppage of its production at work led her to believe that she is depressed. The analytical and subjective solution that she finds operates through the significant development and the analysis of two dreams, which allow the framework of fantasy and the overture to the desire.

Key words: anxiety, depression, psychoanalysis, desire.

 

 

Sob o semblante de depressão, a instalação da angústia na entrada em análise

O nascimento da filha: “Vejo a vida como um deserto. Sem cor. Lido com as pessoas como se as visse despidas das roupagens sociais, daquilo que elas gostariam de apresentar. É como se tivesse acesso a seu esqueleto psíquico, afetivo. Não há roupagem que disfarce o que elas são em seu cerne. É difícil caminhar, avançar; parece que estou paralisada.” O osso nu e cru do deserto do real1 apresenta-se sem vestimentas imaginárias após o nascimento da filha da analisante.

Aparentemente deprimida, identificada com a literatura leiga sobre as depressões, ela assim se apresenta à analista. Como diz a música: “E assim vou/vou meio que indo/findo/ainda vou// Vou no meio do quando/ando, vou e ando/ no quando, no meio” (Rodrigo Guimarães). Marcando uma disjunção identificatória, a analista nomeia: é angústia.

Com o nascimento da filha, a analisante retoma sua análise no exato ponto em que outro nascimento se associava: o nascimento de sua irmã. Com isso, ela perdera seu lugar. De menina linda, dedicada, prendada, de preferida como destaque na escola e em casa, torna-se preterida. Episódios e lembranças infantis desse período em que se torna uma merda para o Outro, então, se destacam. Ela se dá conta de sua posição no laço: se cede ao Outro, é amada; se assume seu desejo, perde tudo. É um paroxismo, aponta-lhe a analista, uma prisão alternativa.

Sua posição face ao Outro: o nome da depressão é servidão

Antes da paralisação de sua vida profissional e até mesmo de sua vida afetiva, a analisante trabalhava compulsivamente, revelando sua posição diante do Outro do saber. A partir da posição de serva, sustentava com seu saber (S2) o discurso do mestre (S1) como verdade. Dedicava-se vorazmente à produção de conhecimento. Não havia demanda do Outro que não forjasse e em relação à qual não se sentisse igualmente na obrigação de responder. Compulsiva. Impulsiva. A paralisação de sua produção profissional levou-a a crer que estava fortemente deprimida. Mas sabemos que:

o amor à verdade é o amor a essa fragilidade cujo véu nós levantamos, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração. [...] A verdade é, a saber, a impotência. [...] O amor é dar o que não se tem, ou seja, aquilo que poderia reparar essa fraqueza original (Lacan, 1969-70, p. 49).

Se o discurso do mestre mascara a divisão do sujeito, o discurso universitário, dele originado, revela-a. Ele mostra onde o mestre pode pecar e, ao mesmo tempo, onde o discurso da ciência se ancora. “É impossível deixar de obedecer ao mandamento que está aí, no lugar do que é a verdade da ciência – Vai, continua. Não para. Continua a saber sempre mais” (Lacan, 1969-70, p. 98). Essa produção incessante, característica do discurso universitário, vela exatamente toda pergunta sobre a verdade – que, nesse discurso, é ocupada pelo significante mestre S1, como se pode verificar no matema logo abaixo. E quem deve fazer a verdade brotar é o a, estudante. Entretanto, sabemos que o imperativo “continua a saber” faz, sozinho, a máquina funcionar. “Não há mais necessidade de que ali haja alguém” (Lacan, 1969-70, p. 99).

A analisante, assim, operava incessantemente nessa produção. Exatamente nesse ponto, instalou-se alienada. Como serva, estudante – era assim que essa mulher dizia se sentir na vida e no trabalho –, colocava-se compulsivamente, melhor, compulsoriamente a trabalhar no campo das ciências para, sustentando a verdade do mestre, velar a pergunta sobre sua verdade. O efeito foi a angústia como fato incontestável do sujeito dividido pela castração (Lacan, 1962-63), que a conduziu a uma estagnação, nomeada, por ela, como depressão.

Dois sonhos: o desejo e a morte

Nessa retomada de sua análise, existe um sonho de véspera. “Estaciono meu carro numa rua proibida, na contramão e em cima da calçada. Vou, então, para uma festa. Lá os policiais entram, procurando-me pelo nome, aplicam-me uma multa e dizem-me que deverei apresentar-me ao juiz...” Lugar de julgamento, superegóico, e de mestria – o analista ocupa um lugar transferencial que parece deter o saber sobre a verdade do gozo desse sujeito. Atualiza sua posição no laço: o saber está no Outro.

O segundo sonho, efeito do trabalho sobre o significante nascimento, veio meses depois de intenso trabalho analítico. Antes do sonho, a analisante se dá conta de que se fez necessária – significante destacado pela analista – para o Outro, justificando, assim, sua existência e seus feitos a partir de uma posição de excesso. Identificada ao discurso do Outro materno quando de seu próprio nascimento, a analisante lembra-se da citação da mãe que lhe designou um lugar no campo do Outro. “Quando nasci, minha mãe conta que quase morremos, ela e eu. Meu pai teria, então, se ajoelhado e rezado para que as duas sobrevivessem. Nossa Senhora teria aparecido para ele e lhe concedido esse milagre.” Esse período da análise é acompanhado da sensação de morte iminente em diferentes situações de vida. E também da constatação de um automaton2: a analisante antecipa seu desalojamento do campo do Outro para se fazer necessária.

Além disso, identificada como morta ao desejo do Outro materno, a analisante, de fato, vivia plenamente seu paroxismo, impossibilitada do acesso ao desejo: ou desejava e aniquilava o Outro, passando a estar morta para ele, ou cedia ao Outro, e aniquilava a si mesma, mortificando-se em seu desejo. É um ato falho que revela essa nesga de real. Intenciona relatar que, após o nascimento da irmã, ficou como “a morta tal qual a mãe desejava em seu nascimento”, troca, porém, a irmã pela filha. Encontro com o real traumático que atualiza a experiência original de desamparo e, posteriormente, articula seu encontro com a castração.

Vem, então, o segundo sonho. “Tive um sonho no qual estou com minha filha bebê, no colo, no alto andar de um edifício todo envidraçado, e vejo outra mãe no mesmo andar do prédio em frente, fazendo seu bebê dormir, ele também no colo. Parece haver uma grande vidraça na fachada da sala que ela ocupa. Mas, quando ela vai tocar esse vidro, talvez para fechá-lo, não há nada lá. Ela, então, desequilibra-se e cai com o bebê. Eles morrem. Nenhum grito é ouvido apesar de ela gritar. Evito que minha filha veja essa cena, pois estava exatamente levando-a para vê-los.”

O duplo especular é inevitável. Ela é a mãe e o bebê, mortos e vivos. Por associação ao que lhe evoca esse sonho, a analisante diz que lê, no desejo da mãe, uma filha morta com a qual se identifica, bem como vive o mesmo temor, como mãe, de perder sua filha, identificada ao discurso do Outro. Ela condensa, assim, no sonho, um lugar duplo, especularizado com o discurso do Outro: ela é o bebê que morre e a mãe que acidentalmente o mata (no discurso). Ao mesmo tempo, é espectadora da cena fantasmática, na qualidade de sujeito dividido pelo desejo de viver. Essa divisão toma forma no sonho a partir da relação com o objeto na fantasia fundamental, que aparece através do objeto voz, na evocação muda que acena para o desejo.

Seu sintoma, o trabalho compulsivo e excessivo para se fazer necessária ao outro/Outro é de onde extraía um gozo fálico que não se sustenta mais, tal qual a parede de vidro inexistente do sonho. O anteparo ou o véu que recobria a falta de sentido articulada como exigência do outro na significação fálica não consegue mais recobri-la. O engodo imaginário desfaz-se, instalando uma crise de sentido que aparece sob a forma de angústia, tocando a estrutura formal e simbólica de seu sintoma.

Ela associa esse sonho a outro no qual sua filha se afoga num rio que transbordava, inundando a cidade. E, após a filha desaparecer sob as águas, ela consegue reencontrá-la em uma margem do rio, junto a dejetos que ali se eram depositados. Milagrosamente, consegue salvá-la, ressuscitando-a. Impossível não evocar a escrita da letra que Lacan propõe como litoral, entre real e simbólico, nessa imagem descrita pela analisante. A letra seria litoral entre saber e gozo, posto que separa esses dois domínios que não têm absolutamente nada em comum, nem mesmo uma relação recíproca (Lacan, 1971). A letra escreve a radicalidade da diferença de consistências entre saber (dimensão simbólica), elucubração em torno da verdade, e gozo (dimensão real), desfrute do que essa verdade tem de inacessível.

Esse sonho reitera a escrita do gozo, extraída do primeiro, e avança na localização do sujeito. No litoral, entre a terra firme e as águas, a analisante encontra sua filha aparentemente morta, encarnando seu gozo. E ressuscita a filha. Na teia da associação significante em torno desse segundo sonho, ela evoca um quadro renascentista do primeiro milagre de Jesus – sua ressurreição –, que justamente sua mãe havia contemplado no Museu do Louvre, tendo ficado extasiada com a experiência. Esse êxtase era efeito de uma construção delirante, de cunho religioso, que animava a interpretação materna do quadro. “Só Jesus salva” é o que a mãe lê no quadro – assim como outrora a Virgem Maria havia salvado milagrosamente da morte filha e mãe no parto. Segundo relato da mãe, o pai havia ajoelhado aos pés da Virgem Maria, diante da iminente perda da esposa e da filha, e rogado pela vida de ambas. Seu pedido havia operado o milagre.

Assim, entre ficar morta e atender ao outro/Outro para se fazer existir, a analisante encontra um ponto de enquadramento do gozo disperso na angústia com essa imagem da ressurreição, que opera na qualidade de significante. A percepção do delírio materno permite ressignificar e nomear sua inserção no campo do Outro, através da fantasia, circunscrevendo o objeto voz. O quadro, portanto, permite fixar seu ponto de angústia, a partir do enquadramento da fantasia fundamental.

Nem depressão, nem servidão: o enquadre da fantasia e a abertura ao desejo como vias de solução

A fantasia é a própria ilustração da possibilidade original do sujeito do inconsciente, que:

a linguagem lhe permite [por] considerar-se como o maquinista ou o diretor de cena da captura imaginária da qual, de outro modo, ele seria apenas a marionete viva. [...] A fantasia, em seu uso fundamental, é aquilo mediante o qual o sujeito se sustenta no nível de seu desejo evanescente (Lacan, 1958, p. 643).

O sonho e a imagem, junto aos significantes por eles evocados, permitem a essa analisante organizar-se na escrita analítica, conferindo um enquadre à dispersão que a angústia lhe suscitava.

E, se o salvar/ser salva referentes à ressurreição implicavam o pai na fantasia, isso era pela via da abertura por ele operada em relação à possibilidade de dialetização do desejo mortífero do Outro materno. Ponto de conexão entre sujeito e desejo materno, o pai, enquanto Nome-do-Pai agenciou, nesse caso, uma possibilidade desejante para esse sujeito – já que marcado pela castração – à custa de uma dívida simbólica. Essa dívida ganhava corpo na culpa superegóica que acompanhava a compulsão sintomática da analisante.

Ela, nesse ponto, passa a colocar-se questões acerca da culpa, da mortificação, da identificação com a mãe e seu discurso, e de um suposto irmão, morto em aborto espontâneo, antes de sua concepção. Suas questões abriam-lhe a via do pai e do que está para além dele: “Fui salva pelo pai. Mas o que ele me deixou de possibilidades?”

Do encontro entre a tyché que implicou o real no nascimento da filha e o automaton do gozo da repetição significante, a analisante encontrou um tratamento para a angústia pela via do desejo. Com isso, retoma sua inscrição no laço social a partir de outra estrutura discursiva. Ela diz que já sabe que “um oásis é só um oásis, enquanto água é água – não um oásis, ainda que existam bons vinhos para se experimentar”. Autora e vítima da própria morte, ela não mais (des)culpa o Outro. Trata-se de uma primeira autorização, de um primeiro movimento subjetivo que lhe deixa como legado responder por si mesma, sustentando-se nesse laço disjunto do Outro – que começa a perder sua consistência.

Além do pai, ao mesmo tempo, o objeto voz, enquanto falta real entre sujeito e Outro presente no segundo sonho – ainda que sob a forma de uma ausência – mantém-se, naquele tempo, ainda mudo em relação a uma possível construção... Elementos de uma nova travessia que se dará, posteriormente, por conta do confronto com a inexistência do Outro e sua destituição subjetiva. Por ora, o efeito foi a perda de gozo, “alto grau de prazer” (Freud, 1919, p. 232), com o enquadramento de sua angústia, tratada pela via do desejo. Pois, como lembra a cantora-poeta Marisa Monte, “mesmo em todo deserto, há um olho de água por perto”.

Notas

1. Segundo Roudinesco e Plon (1998, p. 644-45), o real diz respeito a “termo empregado como substantivo por Jacques Lacan, introduzido em 1953 e extraído, simultaneamente, do vocabulário de filosofia e do conceito freudiano de realidade psíquica, para designar uma realidade fenomênica que é imanente à representação e impossível de simbolizar”. O real, o imaginário e o simbólico compõem o registro da realidade para J. Lacan, sendo o real concebido em diferentes versões ao longo de seu ensino. Aqui nós o tomamos como dimensão inapreensível pelo simbólico e irredutível à palavra e à significação, o que deixa a analisante diante de uma situação da qual não consegue se desembaraçar, pois não a apreende. Nessa qualidade, produz efeitos sobre o corpo e sobre o gozo.

2. A noção de acaso em psicanálise ganha formalização conceitual com J. Lacan através de uma teorização da repetição, sob a égide dos conceitos de tyche e automaton – extraídos da teoria da causalidade da filosofia aristotélica. Eles se associam às noções freudianas de compulsão à repetição e de pulsão de morte, revelando uma determinação que se estabelece na relação com o real. Enquanto tyche pode ser definida como “encontro do real” (Lacan, 1964, p. 56) – ponto obscuro em que a palavra não consegue domesticar o gozo –, automaton diz repeito à repetição enquanto retorno significante – “insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer” (Lacan, 1964, p. 56). Assim, enquanto tyche indica uma repetição orientada pelo real faltoso, automaton diz respeito à repetição significante.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1919) Uma criança é espancada: Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais, in: Edição Standart Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVII, pp. 221-253.

LACAN, Jacques. (1958) A direção do tratamento e os princípios de seu poder, in: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 591-652.

____________. (1962-63) Le séminaire, livre X: L’angoisse.Paris: Seuil, 2004.

____________. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

____________. (1969-70) O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

____________. (1971) Lituraterra, in: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 15-25.

ROUDINESCO, Elisabeth; Plon, Michel. (1998) Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

 
Texto recebido em: 20/01/2010
Aprovado em: 10/02/2010