“Ele só assassina a si-mesmo”.
(Comentário de Lacan do filme O músico assassino, de Benoît Jacquot)
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Nós nos propomos atualizar o texto de Lacan “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, escrito em 1950. Esta data mítica da história da França é também tão mítica para a psicanálise? Não totalmente, se a subversão lacaniana começa com o estruturalismo, ou seja, em 1953. No entanto, os problemas jurídicos agitam bastante a época e o pós-guerra para que se considere o artigo de Lacan contextualizado, e, ao mesmo tempo, canônico. Diante dos problemas sociais levantados nos dias de hoje não é pouco dizer que este artigo encontra muito do seu frescor: os manicômios judiciários, a penalização do doente mental, a modificação do código civil, a intervenção dos psicanalistas na prisão, etc. Todos esses problemas são abordados, desde esta data, por Lacan, revelando um sintoma social. Quer dizer, a modernidade da formulação, a despeito de uma conceituação pós-freudiana anterior. Antes de Michel Foucault, Lacan demonstra até que ponto o tratamento e a penalização do crime dependem da estrutura do poder estabelecido. No cruzamento da clínica e da política, o crime questiona uma realidade social que tem, na época, o papel que será atribuído mais tarde ao Outro simbólico. Uma realidade que prima sobre a psicologia do criminoso; razão a mais para sublinhar a homologia entre a formulação daquela época e a implicação da psicanálise na cidade atualmente (Miller, 2008). O texto nos orienta, não somente sobre uma clínica do ato criminoso, mas ele põe à prova, ao mesmo tempo, a necessidade de introduzir na psicanálise o conceito de responsabilidade.
O artigo faz parte do período “sociológico” do Lacan pré-estruturalista, se entendemos desse modo os textos dos anos de 1938 a 1950, antes do Congresso de Roma. Ainda se percebe nele os ecos do texto “Os complexos familiares na formação do indivíduo” (1938) e de sua inspiração durkheimiana. É sobre o fundo do declínio paterno e da decomposição da família que a questão do direito e da justiça intervém em tensão com o supereu individual. O direito vem primeiro e o crime lhe é relativo antes de sê-lo o ato do criminoso. Lacan conduz, nessa ocasião, à palavra de São Paulo: não existe pecado antes da lei. A dialética do crime e da lei atravessa, assim, a maioria dos capítulos.
Como fato social, no sentido de Durkheim, o crime constitui o objeto de representações coletivas, que definem o campo da responsabilidade. Essa noção é socialmente relativa, uma vez que a instância reconhecida como culpada (o indivíduo ou o grupo) varia, evidentemente, com as sociedades. Um durkheimiano como Paul Fauconnet, evocado em “Complexos familiares” (Ibid., p. 32), busca assim definir um conceito de responsabilidade sem relação às disposições psicológicas dos sujeitos, em conformidade com as visões de seu mestre, como fenômeno social normal: “Uma análise puramente psicológica não poderá jamais conduzir, por ela mesma, à determinação da idéia de responsabilidade. Pois a responsabilidade é manifestamente uma coisa jurídica ou moral. Se supomos que não existe nem direito nem moral, jamais a psicologia será levada a falar de responsabilidade, mas somente de pessoas, de vontades normais ou doentes” (Fauconnet, 1928, p. 33-34). Não demora muito para que a própria sociologia dê lugar ao “assentimento subjetivo” (Lacan, 1950a, p.128) requisitado na significação da responsabilidade, como estabelece Malinowski na sua obra O crime e o costume nas sociedades selvagens (1926).
A publicação, em 1950, de L’univers morbide de la faute de Angelo Hesnard, também companheiro de Lacan em seus conflitos políticos com a SPP, reintroduz o lugar da ética individual e da culpa na sua tensão com a lei social. A morte de Marcel Mauss, neste mesmo ano de 1950, contribui para evidenciar a subordinação do ato criminoso à representação coletiva; tal como Lacan o diz no título do capítulo II, é questão “da realidade sociológica do crime e da lei e da relação da psicanálise com seu fundamento dialético” (Lacan, 1950a, p. 128).
O supereu empuxo-ao-crime
A contribuição específica da psicanálise à criminologia reside, essencialmente, na refutação dos “instintos criminosos” (Ibid., p. 148) e de toda abordagem constitucionalista, em proveito de um complexo específico que Lacan encontra em Kate Friedländer, o “caráter neurótico”, concernindo, especialmente, ao psicopata. Trata-se, realmente, de uma identificação. Após os trabalhos de Aichhorn (1973) sobre os delinqüentes, Lacan aquiesce à efetividade de uma instância superegóica que empurra ao crime e à transgressão. Ele refuta assim todo inconsciente criminoso ao qual aderem ainda os freudianos Alexander e Staub (1938). É a identificação da criança ao adulto criminoso que justifica um Ideal do eu viciado com relação à norma paterna. Lacan recorre ainda ao conceito de Kate Friedländer, característico dos efeitos produzidos pela posição associal do grupo familiar (1998). São nas formulações de 1938 que encontramos justificativas para as frustrações pulsionais “que estariam como que retidas num curto-circuito na situação edipiana” (1950a, p. 136). O sintoma de roubo na criança atesta esta articulação com o simbolismo pulsional (Klein, 1968).
É no supereu que se reflete o complexo familiar e, particularmente, a anomalia de estrutura (Lacan, 1950a, p. 135), presente em sua tese de 1932, assim como em “Os complexos familiares”. O desregramento dessa instância está ligado às “condições sociais do edipianismo” (Ibid., p. 137). O supereu é definido como “esta raiz truncada da consciência moral” (Lacan, 1950b, p. 128), que a norma edipiana não pôde regular. Ele estará claramente disjunto do Nome-do-Pai e da lei em 1954, em O Seminário, Livro 1: o supereu provoca discordância e cisão da ordem simbólica (1953-54, p. 226-227). Ele inclui uma versão autopunitiva que os pós-freudianos, como Theodor Reik (1997), tinham contribuído para elucidar. Essa hiância na estrutura do simbólico faz toda a ambigüidade do conceito de culpa, que desencadeia a manifestação psicopática.
A entidade “neurose de caráter” indica que o artigo não é nem especialmente orientado pelas relações do crime com o delírio, como é o caso de sua tese de psiquiatria (1932), nem sobre os crimes sexuais, e, ainda menos sobre os serial killers. São os problemas da delinqüência após a guerra que orientaram os psicanalistas: a lei sobre os menores, o fim das casas de correção, etc. A responsabilidade é um conceito trans-clínico, e, ao mesmo tempo, jurídico e ético. Fora sua definição pela lei positiva, Lacan busca para este conceito um estatuto menos contingente no sujeito.
Dir-se-ia, hoje, que é uma falha no simbólico que religa o supereu ao social. Se o artigo de Lacan tem seu ponto de partida na neurose, os efeitos do supereu valem também para os psicóticos e para os perversos. A orientação clínica, realmente, é trans-estrutural; trata-se da tensão entre o sujeito e a lei social e não da presença ou da ausência de um significante do Outro. O supereu tem ao menos um pé no Outro social. Não é certo que, nessa época, Lacan faça uma distinção clara entre crime neurótico e crime psicótico. Bem entendido: nem todo crime revela uma psicose. O conceito de psicopata, que cruza com os dois precedentes, é largamente utilizado na época. Para além da crítica das concepções sanitárias e profiláticas concernindo à criminalidade, Lacan centra sua formulação sobre a simultaneidade dos progressos da época com a desumanização do condenado. De fato, “a significação expiatória do castigo” se atenua: a sociedade não consegue mais justificá-la (Lacan, 1950a, p. 139). A propósito de Nuremberg e, particularmente, do julgamento dos crimes nazistas, Lacan tem reservas sobre o efeito sanitário desse processo (Ibid., p. 136, 139, 148). Ele deixa entender que a culpa objetiva dos criminosos não toca verdadeiramente as intenções, enquanto que o testemunho de uma Melitta Schmideberg dá acesso ao “mundo imaginário do criminoso” (Ibid., p. 137). Mais à frente, ele observa o próprio apagamento das noções de criminoso e de responsável (Ibid., p. 147).
O relativismo social e jurídico da definição de responsabilidade pode ser, desde então, contradito pela psicanálise: “a psicanálise, pelas instâncias que distingue no indivíduo moderno, pode esclarecer as vacilações da noção de responsabilidade em nossa época e o advento correlato de uma objetivação do crime para o qual ela pode colaborar” (Ibid., p. 129). Essas vacilações são mais fortes na medida em que a falta não é a mesma, seja o crime considerado como utilitário ou como expressão de um gozo pulsional (Miller, 2007, p. 13). Elas refletem a ambigüidade que a psicologia dá à avaliação da responsabilidade. Ela patina entre o que vem do indivíduo e o que vem do meio familiar ou social. Essas questões cruciais, na época, podem ser esclarecidas pela psicanálise, que desnuda, desde Freud com a segunda tópica, os conflitos entre as instâncias: uma espécie de tribunal subjetivo. Para esquematizar: eu, isso, supereu. Na sua tese, Lacan distinguia assim os crimes do eu e os crimes do isso (1932, p. 306). Esta distinção já recobre os crimes de autopunição, como aquele de Aimeé, e os crimes impulsivos e imotivados dos esquizofrênicos, descrito por Guiraud (Guiraud & Cailleux, 1928, p. 352-359). Uma tipologia da responsabilidade deverá ser deduzida dessa distinção.
A tese de 1932 defende a necessidade de uma avaliação que “precise” o perigo, em função do diagnóstico (Lacan, 1932, p. 307). Sobre este ponto, lembramos que Lacan afirma quanto ao perigo das reações agressivas da psicose paranóica e fala de sua “preferência pela aplicação comedida de sanções penais para esses sujeitos” (Ibid., p. 308). No entanto, os artigos de 1950 não se apóiam, essencialmente, sobre a psicose, mas sobre a contribuição que a psicanálise pode trazer para a avaliação da responsabilidade, noção ainda bastante relativa à pressão da opinião, e à vontade de punir, mais do que de cuidar. Ele faz aparecer a cena imaginária do crime, confundida, na época, com “a” simbólica.
Simbólico do crime
Subordinando o ato criminoso a um cenário simbólico, poder-se-ia considerar que Lacan “põe lenha na fogueira” da irresponsabilidade. No entanto: “se a psicanálise irrealiza o crime, ela não desumaniza o criminoso” (1950a, p. 131). A fórmula pode parecer paradoxal. Pensa-se, principalmente, que a irrealidade reclama em favor da responsabilidade.
A irrealidade é uma palavra da época, marcada pelo existencialismo sartriano. Lacan faz alusão a Lagache que, em sua tese sobre o ciúme amoroso (Lagache, 1987)2, se refere às condutas mágicas de Sartre, à “função irrealizante” da consciência (Sartre, 1938 e 1940). O que ele mesmo chama de as “condutas imaginárias” encontra, certamente, sua referência na fenomenologia de Sartre e de Merleau-Ponty, que também não ignora Hesnard.
Portanto, a referência à sociologia domina as teses existencialistas. Ela permite a introdução do simbólico como estrutura. Realmente, se o imaginário está referido ao indivíduo, o simbólico concerne à estrutura da sociedade: “as estruturas da sociedade são simbólicas; o indivíduo, na medida em que é normal, serve-se delas em condutas reais; na medida em que é psicopata, exprime-as por condutas simbólicas” (Lacan, 1950a, p. 134).
Essa frase resume a teoria antropológica do simbolismo elaborada por Marcel Mauss. Como se sabe, Lévi-Strauss escreveu um célebre prefácio a sua obra Sociologie et anthropologie (Mauss, 1950), que Lacan, necessariamente, leu. Ele afirma claramente que “as condutas individuais normais não são jamais simbólicas por elas mesmas: elas são os elementos a partir dos quais um sistema simbólico, que só pode ser coletivo, se constrói. São apenas as condutas anormais que, por serem de-socializadas e, de alguma forma, abandonadas a si mesmas, realizam, sobre o plano individual, a ilusão de um simbolismo autônomo” (Lévi-Strauss, 1950, p. XVI-XVII).
Lacan faz sua esta subordinação da psicologia ao social, que será substituída, na época estruturalista, pela subordinação do sujeito ao significante: o que substitui a discordância entre significante e significado é o supereu e o lugar da significação pessoal. Como o sintoma obsessivo é uma religião privada, segundo Freud, e como a emoção é “uma conduta mágica”, desde Sartre, o crime participa da mesma condensação do geral no particular. Aqui, a gênese social do supereu, já empregada na tese, é confirmada. Na época, é a interpretação edipiana que fornecia a chave do caráter simbólico do ato. Se o crime é real, isso não impede que ele seja “realizado numa forma edipiana”. A forma edipiana (Ibid., p. 133) é, em suma, por antecipação, o mito individual, o coletivo interpretado pelo complexo.
O caso de Mme. Lefebvre, publicado por Marie Bonaparte (1927) ilustra da melhor maneira esse avatar individual do Édipo. Em 1925, Mme. Lefebvre assassina sua nora grávida. Marie Bonaparte só tem à sua disposição os significantes edipianos para esclarecer essa patologia: ódio da mãe, complexo de castração, frigidez. Todavia, reconhece Bonaparte, ela não compreende nada disso. No entanto, a conjuntura do ato pode ser reconstruída a partir de uma estrutura quadrangular do tipo esquema Z. Na medida em que o filho pertence à nora, Mme. Lefebvre desenvolve em relação a ela uma hostilidade ciumenta. O ódio assassino só se cristaliza a partir do momento em que a presença real do falo entra em cena. Mais uma vez, é a natureza da cura que explica a natureza da doença, a saber: o desaparecimento dos sintomas hipocondríacos, tão logo o assassinato concluído (os órgãos descidos após a menopausa acompanham o alívio do dever cumprido). É a “cura pelo crime”, diz ela, “eu não tenho mais aborrecimentos”. A imagem invertida do ventre fecundo assinala o transitivismo de sua relação, a agressão suicida, o ideal que ela toca. O caso pode ser simplificado sem o recurso de uma selva de símbolos, como faz o “velho Freud” e com a qual Marie Bonaparte orna o caso. Ainda que a interpretação da imagem fálica do revólver não pareça supérflua, como quarto elemento no trio: mãe, filho, nora. A qualificação de mãe incestuosa por Marie Bonaparte é acompanhada de uma observação que Lacan não desaprovaria: “em toda mãe, bem no fundo do inconsciente, existe, mesmo que inexprimível, um pouco de Jocasta e de Mme Lefebvre” (Bonaparte, 1927, p. 161).
O ato, por mais horrível que seja, se encontra humanizado pela integração do sujeito no universo da falta. O incesto é universal. É no mesmo sentido que os homicídios imotivados, descritos por Guiraud, demonstram seu caráter “de agressão simbólica”: “o sujeito quer matar aqui não mais seu eu ou seu supereu, mas sua doença ou, mais geralmente, “o mal”, o kakon” (Lacan, 1932, p. 307). A “cena do crime” é, conseqüentemente, simbólica, no sentido edipiano. É um traço que o opõe ao crime do “isso” de Guiraud. Mesmo que Lacan o qualifique de “agressão simbólica”, permanece-se na relação imaginária. Assim, no caso Aimeé a equivalência entre simbólico e imaginário é confirmada: as perseguidoras são as “‘tiragens’ de um protótipo” (Ibid., p. 253). Realmente, “o objeto que Aimeé atinge só tem um valor de puro símbolo” (Ibid., p. 254). Em 1950, Lacan insiste sobre essa irrealidade como elemento para levar em conta na avaliação da responsabilidade do sujeito.
Os especialistas Sérieux e Capgras (1909) foram encarregados, para a defesa de Mme Fefebvre, de fazê-la beneficiar-se do artigo 64, sem sucesso. Lacan deve se lembrar disso quando constata que, em muitos casos, o especialista psiquiatra conclui a favor da normalidade, a despeito de signos evidentes de paranóia.
A psicanálise é então investida de um duplo papel: primeiramente, demonstrar o caráter “simbólico do crime”, quer dizer, na época, o desconhecimento no sujeito da estrutura edipiana de seu ato. O sujeito é assim humanizado e reinscrito no universal edipiano, mesmo se lhe dão uma interpretação privada. Segundo, numa intenção polêmica, a interpretação do ato revela mais ou menos as próprias tensões da sociedade ou, mais ainda, “a função criminogênica” da sociedade; é o que ele já tinha estabelecido no artigo de 1948, “A agressividade em psicanálise”.
Função criminogênica da sociedade (Lacan, 1950a, p. 146)
O artigo “A agressividade em psicanálise” faz parte dessa intenção crítica característica do pós-guerra. Ele permanece solidário às referências sociológicas. Lévi-Strauss cita esse artigo no seu prefácio a Marcel Mauss. O comentário valoriza a incompletude do simbólico: “resulta que nenhuma sociedade jamais é integral e completamente simbólica; ou, mais exatamente, que ela jamais chega a oferecer a todos seus membros, e no mesmo grau, o meio de se utilizar plenamente da edificação de uma estrutura simbólica” (Lévi-Strauss, 1950, p. XX). Lacan combina a dialética hegeliana com o que ele chamará ainda “agressão suicida do narcisismo” (Lacan, 1948, p. 176). Estabelece-se, desde “Os complexos familiares”, que a sociedade reforça essa tendência que faz do homem “liberado” da sociedade moderna a vítima de um despedaçamento, que “revela, até o fundo do ser, sua pavorosa fissura” (Id., 1938, p. 126). Nesse contexto, as seqüências sociais de fracasso e de crime costeiam a neurose de autopunição, os sintomas histérico-hipocondríacos, as inibições funcionais. A esse respeito Lacan evoca uma “fraternidade discreta”, em oposição à “galé social”, de onde surge esse “ser de nada” (ibid.). As manifestações mais degradadas do supereu resultam, em todo caso, das tensões agressivas prometidas pelas exigências da integração. A contradição é evidente entre o ideal individualista e o peso da colaboração social. Está estabelecido que: “os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” (Lacan, 1950a, p. 146). Pelo ideal individualista, Lacan considera nem mais nem menos que o ideal proposto revela “uma implicação crescente das paixões fundamentais pelo poder, pela posse e pelo prestígio nos ideais sociais” (Ibid.). Uma vez mais, o crime sustenta suas coordenadas simbólicas na sociedade. É o microcosmo da alma em relação ao macrocosmo da cidade de Platão.
É assim que a “anarquia [...] das imagens do desejo” se encontra caricaturada no exemplo do Senhor Verdoux de Charles Chaplin. A complacência de Chaplin em relação a Landru, muito mal percebida nos Estados Unidos, após a guerra, ilustra a responsabilidade da ideologia do grupo familiar e sua intrusão nos grupos funcionais (Ibid.).
Em seu livro consagrado a Landru, Francesca Biagi-Chai mostra bem que o criminoso não escapa a uma concepção de dever. Landru tem o sentido de família.
“Faz tudo por sua família, no entanto, não obedece a nenhuma lei simbólica, mas funciona como um postulado, um dogma. O imperativo que preside seu dever familiar, que, em outros tempos, teria se qualificado de superegóico, é considerado, nessa obra, como propriamente delirante” (Biagi-Chai, 2007, p. 49-50).
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Quer dizer que o criminoso que Lacan descreve, naquela época, não está desinserido, como se diria hoje. Os recursos da identificação simbólica existem nele: ideais de justiça, de onipotência, idealista apaixonado, reivindicador. Tais são as figuras privilegiadas. Ressaltam-se os criminosos do eu, e não do isso, os crimes de interesse, e não de gozo. Como em Durkheim, existem os suicidas com bastante integração da lei e existe o crime que não é um fato associal.
Essa normalidade do crime conduz Lacan a prestar atenção nos casos revelados por Hesnard, segundo o qual, sobre uma importante fração dos criminosos, não se encontra “absolutamente nada que se destaque como anomalia psíquica” (Lacan, 1950b, p.128). O argumento é semelhante àquele utilizado em sua tese a propósito de um caso de psicose com impulsão-suicida. Uma hiper-normalidade serve, de fato, de defesa contra uma pulsão criminosa “recalcada”. Em determinado momento, “o futuro se lhe afigurou fechado. Ele não quis abandonar os seus às suas ameaças, e começou o massacre”. Este sujeito tinha levado uma vida exemplar até aí: “pelo controle de si, pela doçura manifesta do caráter, pelo rendimento laborioso, e pelo exercício de todas as virtudes familiares e sociais”. Apenas o exame analítico revela a submissão aos imperativos morais, servindo de cobertura, desde a infância, à efervescência do ódio (Id., 1932, p. 303).
No entanto, Lacan não sustenta Hesnard até o fim e faz a diferença entre a descrição de um psicopata pelo psiquiatra e pela investigação psicanalítica. O psicanalista reconhece aí, por certos traços do eu, as características da paranóia: “idealismo egocêntrico, sua apologia passional e essa estranha satisfação do ato consumado em que sua individualidade parece encerrar-se em sua suficiência” (Id., 1950b, p. 129).
Aí, ainda, é a hipernormalidade que domina como a psicanálise descobrirá no idealismo passional a estrutura paranóica. Esses “criminosos do eu” não são menos “as vítimas sem voz de uma crescente evolução das formas diretivas da cultura rumo a relações de coerção cada vez mais externas” (Ibid.). Vítimas: a palavra é forte. É na medida em que a sociedade os toma como bodes expiatórios para inocentar uma opinião pública “que se compraz tanto mais em tomá-los por alienados quanto mais reconhece neles a intenção de todos” (Ibid.). Observa-se, a propósito do caso de Mme Lefebvre que, quando de seu processo, levantou gritos da vingança popular. Lembremos também do caso de Christine Villemin, cuja acusação infanticida parecia plausível para um grande público, mas não sem a fascinação por esse horror, a exemplo de Marguerite Duras. Entre a alienação mental que a falta de provas conduz e a condenação sob a pressão de uma ideologia, o psicanalista segue a estreita via que atribui responsabilidade ao criminoso.
A responsabilidade
Na sua tese, Lacan colocava o problema assim: a psicanálise é a única capaz de avaliar os modos de resistência do sujeito às pulsões agressivas. Esta “avaliação rigorosa”, essencial à imputação da responsabilidade penal, é perfeitamente ignorada do ponto de vista positivista. A nova clínica introduzida por Lacan, a saber: a presença ou a ausência do determinismo autopunitivo, é a única “base positiva, que requer uma teoria mais jurídica da aplicação da responsabilidade penal” (Lacan, 1932, p. 308). São as psicoses de autopunição na sua especificidade que justificam para Lacan “nossa preferência pela aplicação comedida de sanções penais para esses sujeitos” (Ibid.).
Parece que essa posição deve muito a Tarde. Pode-se ficar surpreso com essa referência a sua Philosophie pénale (Tarde, 1890)3. Considerado como sociólogo anti-durkheimiano e ainda muito célebre na época, Tarde, magistrado, juiz de instrução em Sarlat nos anos 1900, filósofo em alguns momentos, procura avaliar a responsabilidade individual fora de toda sugestão de grupo; a imitação não priva o homem de sua identidade. Tarde, cuja erudição filosófica é importante, se confronta com a questão do livre arbítrio. O positivismo da época o leva a opor responsabilidade e livre arbítrio. Tarde pergunta: “Serei eu menos, realmente, porque eu sou necessariamente?” (Ibid., p. 69). Ele acrescenta que: “Os psicólogos atribuíram importância demais ao sentimento que nós temos de nossa liberdade e não o bastante ao sentimento, bem mais sólido, que nós temos de nossa identidade” (Ibid., p. 70). Não temos razão para privilegiar os graus de liberdade à custa dos graus de identidade. Donde os aforismos: “A grande questão, teórica e prática, ao mesmo tempo, não é de saber se o indivíduo é livre ou não, mas se o indivíduo é real ou não” (Ibid., p. 24). A importância do conceito de irrealidade se mede com esta declaração.
Lacan vai trazer à tona dois princípios célebres, que são: a identidade individual e a similitude social na avaliação subjetiva da responsabilidade (Lacan, 1950a, p. 140). À propósito da similitude social, Tarde escreve:
“Uma condição indispensável [...] para que o sentimento da responsabilidade moral e penal seja despertado é que o autor e a vítima de um fato sejam e se sintam mais ou menos compatriotas sociais, que eles apresentem um número suficiente de semelhanças, de origem social, quer dizer, imitativa. Esta condição não é preenchida quando o ato incriminado emana de um alienado, de um epiléptico no momento do acesso” (Tarde, 1890, p. 71).
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Realmente, o conceito de autopunição implica paradoxalmente essa identidade. É o que resume a fórmula “é a ti mesmo que atinges” (Lacan, 1950a, p. 149) que domina todos os escritos de Lacan sobre o imaginário da criminalidade. Assim, a concepção psicanalítica de alienação não escapa tanto ao princípio de Tarde. O desconhecimento implica o sujeito na medida em que a alienação dos psiquiatras é sempre mais ou menos ligada à degenerescência.
Em contraponto a Lombroso, Tarde refutará as invariantes físicas do criminoso-nato e se interessará pelos grupos mafiosos. Ele distingue assim o louco do criminoso, o primeiro “ser isolado, estranho para todos, estranho para si mesmo, é por natureza não-sociável [...]. O criminoso, ele é anti-social, e em seguida, sociável num certo grau” (2004, p. 44).
Tarde concluía que “A pessoa é tão mais culpada [...] quanto mais adaptada a si mesma e ao seu meio [...], quer dizer, se é mais maduro e mais verdadeiramente si mesmo” (1892, p. 321). Dentro de um espírito dialético, ele considera que identidade pessoal e similitude social progridem em sentidos opostos:
“a similitude social sentida vai se estendendo sem cessar, a ponto de abraçar a humanidade inteira [...] a outra condição da responsabilidade, a identidade pessoal, se aprofunda, graças às descobertas da medicina mental.” (Ibid., p. 331).
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Sabe-se que Lacan não tira as mesmas conclusões: a implicação do inconsciente dá a extensão da identidade pessoal, dividindo o sujeito. É por isso que, tratando-se do caráter coercitivo da “força” que acarretou o ato do sujeito, é necessário descobrir: “quem sofreu a essa coerção?” (Lacan, 1950a, p.141). Lacan assinala que a psiquiatria coloca essa força como um absoluto e não como uma vontade. Não é a mesma coisa estar sob as ordens de um ideal justiceiro no delírio de querelância e ser o sujeito de uma brutal impulsividade sem lei como nos crimes imotivados. Toda a concepção mecanicista é criticada através do conceito de personalidade; a pulsão criminogênica não pode ser assimilada a uma força superior ao eu. A força deriva de uma convicção. Com relação a isso, o gozo e o imperativo categórico são uma só e mesma coisa (Id., 1963, p. 794). Do axioma segue-se o ato, como diria De Clérambault.
Que se queira que os móveis e os motivos do crime sejam compreensíveis, e “compreensíveis para todos” (Id., 1950a, p. 140), é importante que um conceito os esclareça no lugar de referências sentimentais em que se afrontam ministérios públicos e advogados; pouco valor é dado à avaliação objetiva do especialista.
Este último é, freqüentemente, incapaz de estabelecer um diagnóstico favorável a uma conclusão de irresponsabilidade. Lacan dá o exemplo de um ato de exibicionismo em um obsessivo. O especialista, em desespero de causa, dado que o sujeito é capaz mentalmente, quer demonstrar a irresponsabilidade a partir de um exame apenas físico. Não quer ver o sentido inconsciente do seu acting out. Lacan recorre sempre à “compreensão”, mas da boa maneira: dialetizando as relações entre o ato e a coerção da força a partir de uma doutrina do acting out, quer dizer, de uma travessia selvagem do fantasma quando as referências simbólicas se dissolvem. É o que Lacan estabelecerá no seu Seminário sobre a relação de objeto (1956-57, p. 165).
Entretanto, essa demonstração vale, sobretudo, para os crimes de alienação, aqueles que traduzem um desconhecimento pelo sujeito do apelo à punição. Pode-se, no entanto, interrogar o conceito de psicose autopunitiva como testemunha da acessibilidade dos criminosos a uma lei distinta da do supereu. Sem dúvida, o fato de que o delírio de Aimeé se dissipa quando esta é internada, marca a dialética que existe entre o crime e sua punição. O problema é saber até que ponto essa dialética existe. De fato, numerosos crimes paranóicos testemunham um alívio e uma satisfação pelo ato, enquanto dever cumprido. No entanto, o delírio de prejuízo ou a paixão ciumenta não se esvaziam por causa disso (Lacan, 1932, p. 305). É o caso de Mme Lefebvre. É também o que se destaca dos exemplos fornecidos por Lagache na sua tese sobre o ciúme amoroso Lagache, 1987, p. 605). Os crimes passionais se alimentam todos de um forte sentimento de injustiça. Infelizmente, sob a influência do médico legista De Greff (1937) e de sua referência à intersubjetividade, esquece-se da pulsão, da “homossexualidade” e do interesse pelo rival, fundamento da teoria psicanalítica do ciúme.
Na tese, Lacan mostrava a que ponto a pulsão criminosa é homogênea ao delírio. O doente veste sua intenção homicida com motivos sublimes, éticos e políticos. Assim, Aimeé recai no delírio depois de ter percebido, algumas semanas depois do crime, quando estava na prisão, que ela atingira a si mesma (Lacan, 1932, p. 254). Ela testemunhava então uma certa assunção subjetiva de sua falta e, portanto, de sua responsabilidade. A prisão a protege de suas tendências criminosas e, ao mesmo tempo, a pune. No entanto, a pulsão infanticida permanece absolutamente desconhecida; ora, sua loucura é emprestar ao Outro a intenção criminosa. Lacan evoca a “perversão do instinto materno com a pulsão de assassinato” (Ibid., p. 266), mesmo se em 1932 o infanticídio não ocupe o centro da demonstração (Alloouch. 1990, p. 244-245)4. Poder-se-ia, então, centrar o delírio em torno da fuga para longe da criança. Assim, diz Dominique Laurent, pode-se compreender “a cura como ligada à realização da perda de seu filho no processo de autopunição” (Laurent, s/d, p. 137). Que lição tirar da solução de Aimeé? Em um artigo consagrado à criminologia lacaniana, F. Sauvagnat matiza a imputação de “juridicismo” que se poderia fazer a Lacan (Sauvagnat, s/d, p. 50-55). As relações de Lacan com o artigo 64 do Código penal deram lugar a comentários, segundo os quais Lacan não seria favorável à sua aplicação sistemática. É um entrave com o qual se deparam os extremistas da responsabilidade, que vêem no artigo 64 uma “dupla foraclusão”. Não tendo que responder ao Nome-do-Pai, o criminoso louco não seria, ao mesmo tempo, sujeito da lei positiva. É recusar-lhe toda responsabilidade.
Tal argumento se funda no texto que segue, em alguns meses, a “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. Lacan lembra que o “homem se [faz] reconhecer por seus semelhantes pelos atos cuja responsabilidade ele assume” (1950b, p. 127). Regozija-se do fato de que a morbidez verificada num caso permita ao delinqüente evitar a prisão.
No entanto, a punição tem um papel na retificação subjetiva. Lacan ressalta que a cura do delinqüente passa pela “integração, pelo sujeito, de sua verdadeira responsabilidade” (Ibid., p. 128). Que esta lhe seja acessível, se verifica nos casos em que se pode demonstrar que a passagem ao ato era o apelo a uma punição. É para esse tipo de crime que a psicanálise é requisitada, pois ela é a única capaz de, nesses casos, “libertar a verdade do ato, comprometendo com ele a responsabilidade do criminoso, através de uma assunção lógica, que deverá conduzi-lo à aceitação de um justo castigo” (Ibid., p. 129). É verdade que Lacan tempera esse tom de procurador, ressaltando uma teologia da liberdade.
Lacan não perde a esperança por um despertar possível do criminoso e não vê o psicótico, necessariamente, como incurável. Acontece que os paranóicos se desarmam, ressalta ele, após Tanzi (Lacan, 1932, p.79, nota 96). Com relação a isso, ele se opõe a Kraepelin e a sua concepção de estado terminal: a evolução deficitária. Valeria mais que a psicanálise ajudasse no despertar, quando é possível; acontece também que a prisão ajuda no que se refere ao tempo para compreender, como o indica o caso de Juliette Boutonier, em 1950 (Lacan, 1950a, p. 145)5, em se tratando do “despertar do criminoso para a consciência daquilo que o condena” (ibid.).
O texto de Lacan é, então, matizado e não impele a prender os loucos; o argumento só concerne às psicoses ditas de autopunição. De resto, a teoria da psicose, naquela época, não inclui a foraclusão, quer dizer uma teoria do ato em ruptura com a personalidade. Freqüentemente ectópico a esta, o ato não é dialetizável com o imaginário. A psicanálise, aliás, não tem que intervir quanto à sanção do ato criminoso.
A humanização, dissemos isso, implica a responsabilidade. O que não quer dizer que a irresponsabilidade desumanize necessariamente. Nada é mais humano que um delírio passional. É a assunção da responsabilidade que visa o castigo: o irresponsável pode se tornar responsável. A implicação do sujeito no seu ato permanece, portanto, para Lacan, um elemento essencial da penalização. Sua crítica aos especialistas vai nesse sentido. Na época da psiquiatria “compreensiva” e anti-positivista, Lacan lamentava que se recorresse tão pouco às luzes da psicanálise.
Crimes e psicoses
Os historiadores da criminologia consideram que o século XX é marcado pelo declínio da loucura criminosa, quer dizer da imputação do ato a um delírio psicótico. Renneville reconstituiu em detalhe os meandros dessa história. Em 1968, George Heuyer se dedica a precisar que: “o psiquiatra não reivindica, a priori, como doentes os delinqüentes e os criminosos” (Renneville, 2003, p. 423). Para Heuyer, “não existem diferenças essenciais entre a psicologia de um doente mental, de um delinqüente e de um indivíduo considerado normal” (Ibid.). Ao menos, se dirá, essa continuidade clínica favorece uma tendência à humanidade. O criminoso será tão mais humanizado quanto se encontrar nele os recursos da psicologia mais geral. Desse ponto de vista, os psiquiatras que recusam os critérios da psicose, se baseiam numa psicologia da compreensão, critério lacaniano dos anos trinta. Lacan utilizava, ele mesmo, os conceitos da intersubjetividade, antes de chegar uma decifração da estrutura subjetiva caracterizada pelos fenômenos elementares e pela significação pessoal. A compreensão é o que todo mundo espera, tanto o público quanto os magistrados.
O mal-entendido persiste ainda mais quando “o crime dá a ilusão de responder a seu contexto social” (Lacan, 1950a). É o caso das irmãs Papin, cujo crime parece compreensível, sobre bases psicológicas ingênuas, tais como a vingança social.
Lacan falou pouco do crime depois de 1950, no entanto, seus avanços sobre a psicose e sobre o ato permitem considerar outras causas para o crime que aquelas da autopunição. Já criticada no texto “Formulações sobre a causalidade psíquica”, de 1946, Lacan a substituiu pela agressão suicida do narcisismo. A seqüência do ensino de Lacan sobre as psicoses é, como se sabe, rica de conceitos que se apresentam, todos, como alternativas para uma concepção do ato, explicada pela defesa ou pelo recalcamento. Furo na significação, hiância narcísica, onipotência do Outro, cujo gozo maldoso é persecutório. Todos percebem o ato pelo delírio.
É, principalmente, o conceito de “extração do objeto a” (Lacan, 1957-58, p. 559-560, n. 16) que domina o da autopunição do narcisismo. O alívio concernente ao que Lacan chama em sua tese de “crimes puramente pulsionais” (Id., 1932, p. 306) pode ser revisado à luz da extração de gozo.
Donde, o interesse renovado pelos crimes imotivados de Guiraud, nos quais a não motivação retém menos a atenção do que o sentimento de liberação que o acompanha. Mme Lefebvre, nós vimos, evoca, ela mesma, a cura pelo crime: não apenas ela não teve mais aborrecimentos, ela arrancou a erva daninha, mas também ela não teve mais transtornos físicos. Todavia, o delírio persiste, como é também o caso dos ciúmes de Daniel Lagache, no crime passional. O alívio que o crime ocasiona dá uma atualidade ao kakon de Guiraud, assimilável ao real do objeto a.
Jean-Claude Maleval (s/d, p. 39-45), quem ressalta essa analogia, vai até invocar a “função terapêutica” do assassinato, como Freud qualificava o delírio como tentativa de cura. O caso Eppendorfer põe em cena um jovem que matou uma amiga mais velha do que ele, durante um rapto, no dia em que esta o assediou; o gozo insuportável de sua mãe lhe apareceu então num real alucinatório. Nessas condições, a separação selvagem do objeto incestuoso coloca fim à angústia; o sujeito “procura fazer advir a castração simbólica no real” (Ibid., p. 42). No entanto, essa subtração de gozo operada sobre o Outro não é seguida de nenhum remorso nem crítica.
Pode-se considerar que é, principalmente, a prisão, o castigo, aliás, chamado pelo sujeito, que teve a função de limitar seu gozo, com um efeito de pacificação. A mediação de um padre vagamente psicoterapeuta teve um papel aí. O sujeito se tornou homossexual militante: ele substituiu um delírio por uma “perversão”? Parece, principalmente, que ele tenha passado de uma seita para outra, dos mórmons aos grupos homossexuais, sem que o delírio tenha sido abalado. Mesmo que o termo suplência (Maleval, 2000, p. 61) seja evocado, o real do crime não pode ser equivalente a um “sinthoma” no sentido do enodamento RSI. Constata-se somente uma nova amarração ao campo social, que uma declaração de irresponsabilidade não teria permitido.
A partir do momento em que Lacan recusa, de certa maneira, o conceito de alienação mental, a questão da responsabilidade é completamente renovada. O artigo 64, nós o vimos, se aplica ao alienado: o louco é necessariamente irresponsável. É sua liberdade que é alienada. No entanto, nos anos 1960, Lacan não opõe normalidade e alienação. É o normal que é alienado ao Outro e à linguagem. Ao contrário, se levamos a fundo essa lógica, o louco está desinserido da ordem simbólica. Ironicamente, ele não crê na lei. Nesse sentido, Lacan pode descrevê-lo, em todo caso, como “homem livre” (1967) e como fora do discurso. O problema é saber se essa liberdade do louco é equivalente a uma responsabilidade. Estamos longe das teses existencialistas em que livre quer dizer responsável. Com Lacan, o sujeito totalmente livre estaria, sobretudo, do lado da irresponsabilidade. No entanto, não se pode retirar dele uma certa responsabilidade no nível da escolha. Lacan, seguindo Freud, diz: “escolha da neurose”, inclusive, “escolha da psicose”. É preciso acrescentar que, se existe escolha, a escolha é forçada. Sabe-se que Lacan está mais próximo da necessidade spinozista, que da escolha pela liberdade. O homem livre não vê seu gozo limitado por nenhum obstáculo simbólico. Lacan retoma, então, os conceitos essenciais de Sartre, mas transformando-os em oxímoro.
Ele não deixa de sustentar um postulado sartriano: “Por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis.” (1964, p. 873) É também irônico: “o sujeito é feliz”. É verdade que Lacan considera a proposição como terrorista, posto que ele não a retoma, necessariamente, a seu modo. Por outro lado, Lacan pode recorrer a uma concepção do ato justamente exclusiva do sujeito. Donde a fórmula: “o ato não comporta, no instante em que acontece, a presença do sujeito” (Id., 1967-68, aula de 29/11/1967), e ainda: “todo ato [...] promete, àquele que toma a iniciativa, esse fim que eu designo como objeto a” (Ibid., aula de 24/01/1968). A passagem ao ato enquanto travessia selvagem do fantasma leva a um curto-circuito no inconsciente. Nessa situação de “destituição subjetiva” e retenção no objeto, a escolha do gozo torna obsoleta toda deliberação (Lacan, s/d).
Como dissemos acima, uma categoria de crime é privilegiada por Lacan em 1950: os crimes do “eu”. Eles fazem prevalecer uma identificação. É seu traço humano. Os crimes de gozo desafiam as identificações sociais (Miller, 2008).
As formas novas de criminalidade: serial killers, delinqüentes sexuais, pedófilos, etc, suscitam processos largamente mediatizados nos quais a figura do monstro, do perverso constitucional, retorna e vê-se ressurgir, da noite dos tempos, o atavismo criminoso de Lombroso. Para coroar tudo isso, vê-se que os hospitais psiquiátricos não estão dispostos a abrir largamente as portas aos criminosos delirantes. Quanto aos psiquiatras, constata-se, mais e mais, sua repugnância em tratar a passagem ao ato criminosa a partir do delírio. Donde, a inflação dos “perversos narcisistas”, que se defendem da psicose pelo crime6.
Os crimes de gozo se multiplicam, o número dos assassinos de massa ilustra a categoria de crimes imotivados; não que eles sejam imprevisíveis7, mas não saberíamos lhes dar “outro sentido” que o gozo pela destruição, no qual eles se incluem ignorando as premissas. A saída suicida freqüente é sem relação com o heroísmo paranóico dos anos trinta8. É a própria humanidade que visa o mass murderer; um programa de liquidação que visa à raça humana e que suplanta a irrealidade do fantasma.
Poderemos pensar que os crimes sexuais são os mais atrozes: eles não têm a desculpa do supereu. É sua gratuidade mesma que suscita a justiça pública. Donde, a incompreensão do público diante das faltas de prova e das avaliações de irresponsabilidade. O público não está disposto a reconhecê-los como doentes mentais. Calculador demais, manipulador demais, perverso demais, inteligente demais, etc., para ser louco; é sempre o déficit intelectual ou a confusão mental que serve de critério. A avaliação contemporânea se junta à opinião pública com relação a isso. Tudo, menos louco! O crime de gozo designa o perverso. O gozo gratuito deve pagar. O perverso não poderia, então, ser irresponsável. O problema é principalmente saber se uma punição pode ou não lhe fazer recuperar o sentido de suas responsabilidades. Lacan, na época, não perdia a esperança nessa responsabilidade, citando o exemplo já citado de Mme. Boutonier. Seria difícil fazer justiça com essa categoria de esquizofrênico, da qual faz parte esse canibal japonês comedor de crianças, recentemente enforcado. O que se dirá de uma mãe infanticida que abandonou os recém-nascidos no congelador?
Lacan se opõe a uma concepção sanitária da penalização, mas não era, por princípio, hostil ao julgamento de certos doentes mentais acessíveis a uma pena, pela própria razão da identificação deles; eles mesmos podem reivindicar um processo. A modificação do artigo 64 em 122-1 vai nesse sentido; leva-se em conta a alteração do discernimento (Biagi-Chai, 2007, p. 219). Suscitar uma crise subjetiva através do castigo, em certos casos, era uma aposta. Era necessário julgar Fourniret sob o risco de que esse monstro ironize a justiça e escreva alexandrinos ao presidente do tribunal. Esperava-se que ele vertesse uma lágrima por suas vítimas enquanto a justiça lhe dá uma tribuna para continuar a traumatizar as famílias das vítimas? Pode-se duvidar que o tribunal queira humanizá-lo através de um processo; as associações de vítimas são ingênuas quando crêem estar no ponto de “compreender” o ato do julgamento: uma vez as motivações psicológicas esgotadas, encontra-se o muro do insensato. Esse limite faz do criminoso um monstro. A loucura ainda era um argumento contra a monstruosidade. O predador, ele encarna um mais-de-gozar impossível de suportar: ele resiste a toda identificação.
Portanto, seria preciso que os especialistas compreendessem, eles próprios, alguma coisa sobre isso, no lugar de reabilitar o “perverso constitucional” de Dupré (Debuyst et al, 1995) ou de fazer do crime uma defesa contra a psicose. Reencontramos aqui as preocupações profiláticas de Lacan nos anos 1930. Testar e prever a periculosidade concerne tanto mais à psicanálise quanto os especialistas se eximem disso. Donde uma nova distribuição de responsabilidade hoje.
Diante de uma “ordem de ferro” (1950b, p. 131), é a psicanálise que se incumbe hoje do papel de despertar.
O texto de 1950 (1950a) tem seus limites: não aqueles do humanismo, mas aqueles da compreensão que baseada no imaginário. Mais tarde, Lacan não dirá nada sobre as que medidas ele adotaria para tratar os criminosos, salvo que valia mais à pena não analisá-los. Fora da lei, da fala e da linguagem, não se os vê nem sobre o divã, nem num tribunal: não psicanalizamos “o canalha”, isso o torna um imbecil. É humano não cretinizá-los frente ao Nome-do-Pai. Quanto aos outros, é preciso ver caso a caso.
Tradução: Ana Paula Corrêa Sartori
Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos
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Notas
1. Texto publicado originalmente com o título de “Criminologie lacanienne” em Mental, n. 21, La société de surveillance et ses criminels. Revue Internationale de Santé Mentale et Psychanalyse Apliquée. Fédération Européenne des ècles de Psychanalyse, setembro / 2008.
2. Ver também Mucchielli (1994).
3. Citado por Lacan em Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade, (1932, p. 308) e em “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia” (1950a, p.140).
4. O autor busca aproximar o atentado que aconteceu e o infanticídio que não aconteceu, para explicar o alcance resolutivo do ato, sem a hipótese da autopunição.
5. Trata-se de “Reflexões sobre a autobiografia de um criminoso”, Revue française de psychanalyse, XXIII, p. 182-214.
6. É a tese do psiquiatra Claude Balier. O alienista inglês Henri Mandsley (1835-1918), partidário das degenerescências, dizia um pouco a mesma coisa: “eles se tornariam loucos, se não fossem criminosos e é porque eles são criminosos que não se tornam loucos” (Mandsley apud Tarde, 2004, p. 44).
7. Pensa-se no crime anunciado do pastor Wagner. Ver a esse respeito Vindras, Anne-Marie (1996) Ernst Wagner, Robert Gaupp, un monstre et son psychiatre, Paris: E.P.E.L., e também “Le cas Wagner”, tradução de Fabien Grasser, publicado em Sept références introuvables de la thèse de psychiatrie de Jacques Lacan, nº1, des Documents de la bibliothèque de L’École de la Cause freudienne, 1993.
8. Cf. o caso de Legrand du Saulle (1871), Délire de pérsecution, Paris: Plon, mencionado por Lacan em sua tese (1932, p.301, n. 60). Trata-se de um perseguido que se faz passar por um sodomita; ele se suicida pouco depois de suas palavras endereçadas ao médico: “minha família saberá que eu não era um sodomita. É vós que fareis minha autópsia” (Capítulo 11, observação LXXXV).
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Texto recebido em: 03/09/2009
Aprovado em: 25/12/2009
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