Se a psicanálise fosse somente uma ética do desejo essa prática se reduziria a nos habituar à insatisfação, conformando-nos ao fato de que o gozo seria impossível. Para recordar as palavras de Freud, ao final da análise chegaríamos a nos contentar em “trocar a miséria neurótica pela infelicidade comum”. Na contemporaneidade, tendo em vista os impasses crescentes do sujeito na civilização de que a violência é a maior testemunha, a prática da psicanálise precisa formular uma resposta à altura da exigência de gozo que habita o ser falante. Uma ética do desejo veio responder ao recalque e ao sentimento de culpa – formas modernas do mal-estar na civilização - que nasciam das restrições morais ao usufruto da sexualidade. A liberação da sexualidade e o afrouxamento das obrigações sociais traduziram-se no crescimento do isolamento individualista e no incremento da indiferença, da intolerância, da segregação e da violência entre os indivíduos. Não se sofre mais em conseqüência do sentimento de culpa. O ato do analista deve incidir sobre o ponto mais íntimo do sujeito, o pudor, na expectativa de despertar a responsabilidade pelo gozo.
Este novo número de asephallus é dedicado ao tema da responsabilidade pelo real em jogo no inconsciente. Três temas se destacam: o real da pulsão, o ato infracional e o ato analítico e a responsabilidade.
Em sua conferência sobre Família e responsabilidade, proferida no Congresso Brasileiro de Direito da Família, este ano em Belo Horizonte, Jorge Forbes retoma o tema dos laços sociais horizontalizados na contemporaneidade. As contribuições da psicanálise ao estudo da família que ainda estão sendo utilizadas por médicos, pedagogos e juristas envelheceram. Elas datam de um mundo que está deixando de existir, foram muito úteis, se nos basearmos na popularidade alcançada, mas são fracas para as questões fundamentais da família atual, a do início do século XXI.
A família de hoje se diferencia em um aspecto fundamental da família de ontem: ela é fruto de uma era onde o laço social é horizontal, enquanto, na anterior, era vertical. Argumenta que é necessário atualizar nossa perspectiva sobre a estrutura da família. Só assim seria possível uma interpretação legítima dos novos sintomas sociais.
Também Serge Cottet propõe-se a atualizar o texto de Lacan “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”, escrito em 1950. No cruzamento da clínica e da política, o crime questiona uma realidade social que tem, na época, o papel que será atribuído mais tarde ao Outro simbólico. Uma realidade que prima sobre a psicologia do criminoso; razão a mais para sublinhar a homologia entre a formulação daquela época e a implicação da psicanálise na cidade atualmente. O texto nos orienta, não somente sobre uma clínica do ato criminoso, mas ele põe à prova, ao mesmo tempo, a necessidade de introduzir na psicanálise o conceito de responsabilidade.
Maria José Gontijo toma como referência esta releitura do texto de Lacan, extraindo dela seus efeitos de atualização da perspectiva lacaniana. Ensaia em seguida uma nova compreensão do cenário da violência contemporânea no Brasil. Servindo-se da distinção entre os conceitos de passagem ao ato e acting-out, demonstra que se pode fazer uma clínica do ato criminoso. Embora tenha abordado com essas ferramentas a diferença entre o crime na neurose e na psicose, pretendeu destacar a dimensão do ato criminoso na perspectiva dos novos sintomas.
Christiane Zeitoune traz os resultados preliminares de sua pesquisa de doutorado sobre o atendimento de adolescentes que cumprem medida sócio-educativa. Interroga a possibilidade de responsabilizar o sujeito, com recurso ao discurso psicanalítico, nesse campo onde predomina o discurso jurídico, correcional e repressivo. Esses jovens, submetidos às contingências da pobreza e à fragilidade dos laços familiares, respondem aos impasses da sexualidade – a identificação ao ideal do eu e a escolha de objeto – passando ao ato infrator. Seu trabalho permite verificar as conseqüências dos impasses do sujeito diante da diferença sexual na determinação do ato infracional.
Oportunamente, Jamille Mascarenhas desenvolve um comentário acerca das conseqüências éticas da prevalência fálica na sexualidade infantil. A evidência da dessimetria entre os sexos, no que diz respeito ao complexo de Édipo e à castração, aponta para a impossibilidade da relação sexual. Na ausência das ferramentas da lingüística, das quais Lacan se utilizou para dar conta dessa diferença, Freud se detém na relação imaginária entre ter ou não ter o pênis. Lacan retoma a análise do falo a partir da articulação significante e, posteriormente, examina a castração pela vertente da angústia. Nessa perspectiva, o falo é alçado à condição de significante da falta e se presentifica na relação entre os sexos a partir da sua negativização, ou seja, como (-φ). Essa mudança de perspectiva conduz Lacan a diferenciar o modo masculino e feminino de se posicionar na partilha sexual.
Por essa mesma razão, como elabora Evacyra Viana Peixoto, Lacan será levado a redefinir o campo da psicanálise mais além da lingüística, como o da linguisteria. O inconsciente não é apenas estruturado como uma linguagem pois é entremeado pelas afetações do ser falante. Isso fala e não sabe o que diz. Para isso, Lacan lança mão dos anagramas de Saussure, mostrando que para o falante a fala serve para gozar e não apenas para significar. Abordar o inconsciente como uma linguisteria nos permite aproximar o discurso do falante do sintoma conversivo histérico pois, nesse caso, a dimensão do gozo do corpo prevalece sobre a dimensão do sentido.
Maria Ângela Maia examina o tema da virtualização dos corpos na contemporaneidade que pretende colmar a diferença que é por onde o sujeito pode apreender o real. Qualquer tentativa de homogeneização das formas singulares de gozo dos sujeitos provoca a própria dissolução da dimensão de sujeito. Os apelos lançados à ciência quanto à promoção de um saber que tampone essa falta estrutural de gozo visam, portanto, a anulação desse aspecto trágico que encerra o destino do homem: a castração. Se eternamente a ciência produz seus objetos, cabe ao homem valer-se desses objetos e usá-los como propulsores para suas produções desejantes, abstendo-se de usá-los como objetos de gozo — do pleno.
Nádia La Guardia e Ana Lydia Santiago assinam em co-autoria um artigo que avança uma reflexão sobre a função da escrita para a menina no despertar da puberdade. A puberdade, para a psicanálise, é um tempo lógico no qual o sujeito é convocado a realizar um trabalho psíquico. No confronto com o real do sexo, ressurgem as perguntas sobre o ser, sobre o sexo, sobre o próprio desejo e o desejo do Outro, inauguradas na infância e silenciadas na latência. A passagem do corpo de menina ao corpo de mulher leva ao surgimento da questão: o que quer uma mulher? Na ausência de um significante feminino, a adolescente constrói um semblante, velando a falta fálica. A escrita, para a adolescente, pode apresentar-se nesse momento como alguma coisa que visa à construção de um véu, como um semblante, que recobre o vazio. Esse trabalho de tessitura é ilustrado através do diário de uma adolescente.
Ednei Soares retoma os princípios e elementos conceituais de Lacan que circunscrevem a presença da psicanálise no mundo, sobretudo na “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”. Distinguindo a psicanálise aplicada à terapêutica da psicanálise pura, formaliza esse dois campos, respectivamente, como da psicanálise em extensão e o da psicanálise em intensão. Examina as condições da prática da psicanálise para abranger o real incurável do sintoma na formação do praticante. Esclarece que a psicanálise em intensão é o guia para sua aplicação na prática em extensão. Refere-se ao texto freudiano, “Explicações, aplicações e orientações”, ressaltando o rigor e a autenticidade da psicanálise no laço social. A extensão da psicanálise como experiência original orienta-se pela experiência analítica em intensão. Somente essa última está à altura de responder, graças à sua ética, aos imperativos da atualidade, introduzindo no mundo uma dimensão da responsabilidade que não é apenas jurídica mas diz respeito ao real da pulsão.
Sérgio Mattos articula a responsabilidade pelo Real à formas atuais de uma antiga noção: o pecado. A antiguidade vivia sob o signo da fatalidade e da necessidade. Os personagens de Prometeu e Sísifo são figuras exemplares desta situação humana pensada de maneira hiper determinista. Entretanto, na Bíblia, a conhecida narrativa sobre o jardim do Éden e a “desobediência” do primeiro casal, o mal está parcialmente desfatalizado porque é historicizado e o ser humano é apresentado como responsável por certo número de males relacionais e disfunções históricas. Responsabilidade que é limitada. A nossa limitação é representada pelo mal que surge como irrupção imprevista, vinda de fora, como um excesso. O pecado após séculos de transformações - guerras, ciência, mercado - deixou de ser um problema de tribunal graças a uma “pesada superculpabilização” do ocidente. A gula, a luxúria, a avareza, a vaidade e a ira quase perderam o prestígio de vilões numa civilização devotada ao gozo e ao consumo. A soberba, considerada o pior dos pecados - pretender ser Deus –, deu lugar à tentação de não querer ser nada: indiferença negligente. Covardia moral por não tomar para si a responsabilidade possível.
Sérgio conclui que existe uma clínica do “espírito da nossa época”, a depressão, que desponta como a falta moral por excelência. Recorda que João Paulo II anunciou que o primeiro dos desafios para o começo do novo milênio seria um combate à indiferença.
Ana Paula Sartori, oportunamente, resenha o primeiro volume dos Carnets de Marie de la Trinité, destacando a relação analítica de Jacques Lacan com essa mística, o que nos oferece um excelente exemplo da incidência da psicanálise no campo da responsabilidade religiosa.
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