Refletir sobre o alcance e as limitações da prática analítica em seus usos possíveis nos conduz a retomar seus princípios. Ponderar sobre as noções de aplicação à terapêutica e psicanálise em extensão permite reexaminar as condições nas quais a psicanálise pode ser colocada em prática. As obras de Freud e Lacan revelam aí o desejo fervoroso e consagrado de manter viva e autêntica a psicanálise no mundo, instigando seu avanço, estendendo-a e acolhendo o mal-estar. Lacan, protegendo a invenção freudiana, fundou sua Escola no real enigmático deste desejo, recolhendo aqueles que a ela se dedicam.
Foi do real como autêntico fundador, que a “Proposição...” sobre o psicanalista da Escola de Lacan criou operadores na formação do analista que coexistem à própria psicanálise e seu emprego na civilização lançando dois momentos de junção: “psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo, e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela” (Lacan, 1967, p. 261). Deste modo, o dispositivo do passe captura a amarração da intensão de cada um que pratica a psicanálise com a extensão desta prática no mundo: “é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intensão” (Lacan, 1967, p.261).
No espaço de sua Escola, Lacan (1964, p.241) já dera ao praticante a chance de assumir seu próprio risco toda vez em que se encontrar o meio de utilizar a psicanálise. Quando nos referirmos às diversas práticas de orientação analítica presentificadoras da psicanálise nos mais diversos âmbitos sociais com o uso do termo psicanálise aplicada, reportaremos-nos à seção de psicanálise aplicada presente no texto do “Ato de Fundação”. Lá tal seção e suas subseções caracterizam-se pelo domínio de termos particulares à terapêutica da clínica médica. Dois anos posteriores ao “Ato de Fundação”, Lacan, marcando o lugar marginal da psicanálise na medicina1, se assegura que a última está subjugada às demandas aceleradas do mundo científico na vida comum, fazendo da saúde objeto de organização social. É quando Lacan (1966) alerta que, de tempos em tempos, Freud criou algo que podia subverter a posição do mestre pela ascensão da ciência e evoca sua Escola como a única que interroga a obediência da medicina a esta demanda.
Seguindo a criação da Escola, Lacan desdobrou este traço inconfundível à psicanálise: falar do que não se sabe (o que é o analista da Escola) é parte de sua “Proposição...”, de 1967. Este escrito de Lacan sobre o analista da Escola enfrenta um impasse a que Lacan propõe o passe. Como Lacan fez constar na “Proposição...”, deve-se fazer do não sabido ordenado como o quadro do saber, formalizá-lo a partir de sua experiência em análise, aplicando a psicanálise ao que se passou no seu tratamento.
Se Lacan preconiza que, como terapêutica, tal “definição é impossível de enunciar na psicanálise” (Lacan, 1967, p.251), ao trazer em 1967 o dispositivo do passe, que examina a possibilidade de um término da análise, Lacan faz notória a distinção entre a prática analítica e a sua terapêutica. O passe, a noção de extensão e intensão são, portanto, operadores teórico-conceituais que revelam o que é mais nuclear na extensão da prática analítica: a inclusão da intensão do praticante e a singularidade do sujeito, oferecendo ai algo que possa ser “essencial para isolá-la da terapêutica, que não distorce a psicanálise somente por relaxar seu rigor” (Lacan, 1967, p.251). Partindo da função orientadora da intensão no que tange à extensão da psicanálise, penso haver possibilidades claras da extensão analítica sem que seus fundamentos sejam dissolvidos e apresentando notadamente rigor ético no sentido de sua política, guardando as diferenças táticas daquela que atua no espaço de seu enquadramento tradicional, os consultórios privados.
Na conferência de 1932, “Explicações, aplicações e orientações”, Freud discutiu possíveis aplicações da psicanálise e procurou desfazer enganos em relação à ciência, à cultura e aos equívocos gerados por seus discípulos, nomeando-a como uma prática primus inter pares. Embora bastante envaidecido por um triunfo da vasta aplicação analítica e tomando-a enquanto “um método (único) entre os demais”, temos na mesma medida, um Freud comedido em torno dos êxitos desta aplicação: “seus sucessos terapêuticos não constituem motivo, nem de orgulho, nem de vergonha” (Freud, 1932, p.185). Dada a heterogeneidade deste tipo de resultado, orienta Freud: “É mais correto examinar as próprias experiências do indivíduo” (1932, p.185).
Tornar a aplicação da prática analítica legítima não seria pelo sucesso terapêutico, mas na prova única do sujeito mesmo, que valeria por si só. Segundo Freud, como prática de tratamento alargada abundantemente, a psicanálise não abandonou seu “chão de origem e ainda está vinculada ao seu contato com os pacientes para aumentar sua profundidade e se desenvolver mais” (1932, p.185). Ao destacar o rigor da prática analítica, diz: “A atividade psicanalítica é árdua e exigente; não pode ser manejada como um par de óculos que se põe para ler e se tira para sair a caminhar” (Id., Ibid.). Prossegue: “Aqueles psicoterapeutas que empregam a psicanálise, entre outros métodos, ocasionalmente pelo que sei, não se situam em chão analítico firme; não aceitaram toda a análise” (Id., Ibid.).
Vemos com Freud que os sucessos terapêuticos não constituem a diferença singular do tratamento analítico, ao passo que também não encontramos uma diferença radical entre psicanálise estrito senso e seus atributos terapêuticos. De certa maneira, trata-se aqui de um limite impreciso e pouco nítido em caracterizar essa prática entre o terapêutico e o analítico. Por outro lado, Lacan, com as noções de intensão e extensão na “Proposição...” de 1967 pensa condições do uso da psicanálise como experiência original no mundo. Parte-se aí de como assumir o risco e o desejo dos que a praticam ou daquilo de seu desejo que determina sua práxis como sendo analítica. Freud, não se considerando um terapeuta entusiasta orienta e revela algo de seu desejo em torno da Psicanálise dizendo que “Se não tivesse valor terapêutico não teria sido descoberto como o foi, (...) e não teria continuado desenvolvendo-se por mais de trinta anos” (Freud, 1932, p191). Entretanto, a respeito de outras práticas que estão na ordem do dia, diz Freud: “Se nos voltarmos para os competidores deste mundo, devemos comparar o tratamento psicanalítico com outros tipos de psicoterapia” (Freud, 1932, p185).
A singularidade do sintoma se perde nessa vertente do terapêutico como índice de propriedades curativas. Trata-se, pelo contrário, segundo Lacan, de “produzir o incurável em que o ato encontra sua finalidade própria, e aquilo que, do sintoma, assume um efeito revolucionário” (Lacan, 1967-1968, p. 378). Mesmo com a orientação freudiana desde 1918 (Freud, 1918) de adaptar a técnica psicanalítica às novas condições do mundo, absorve-se daí, com Freud e Lacan, que a orientação para a extensão da prática aplica o discurso analítico operando-o no avesso do discurso do mestre. Fora da padronização do sujeito, a psicanálise aplicada não seria aplicada senão ao sujeito mesmo em sua incurabilidade, pois, embora atue numa extraterritorialidade ela é aplicada ao próprio campo.
Vê-se que o que orienta a extensão da psicanálise como experiência original é a extensão de sua intensão que responde com sua ética aos imperativos de uma época, distinguindo-a de outros métodos. As práticas de extensão da psicanálise podem conservar o inconfundível da verdade qualificada como incurável sem a dissolução de seus fundamentos sendo estendidas a outros campos e mantendo rigor ético em sua política e guardando as diferenças táticas da atuação no espaço de seu setting habitual.
Assim se pode estender, ir mais além do que se enuncia fundando o incurável, esse elemento ético constitutivo da condição analítica que permite estendermos a massificação contemporânea dos sintomas que prescrevem os sujeitos via solução terapêutica, pois “A psicanálise aplicada deve diferenciar da terapêutica e seguir sendo psicanálise para que não termine sendo um tipo de psicoterapia.” (Cárdenas, 2003, p.105).
Nota
1. Segundo as notas da Revista Opção Lacaniana, trata-se do texto de sua fala no colóquio organizado por Jeanne Aubry sobre “O lugar da psicanálise na medicina”, publicado em 1966 no Cahiers du Collège de Medicine.
Referências bibliográficas
CÁRDENAS, M. H. (2003) A prática lacaniana e a Psicanálise aplicada, in Opção Lacaniana n°38, novembro de 2003.
FREUD, S. (1933) Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXXIV: Explicações, Aplicações e Orientações, in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1988, v.XXII, p. 167-191.
LACAN, J. (1966) O lugar da psicanálise na medicina, in Opção Lacaniana, São Paulo, n. 32, 2001, p. 8-14.
________. (1967) Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, in Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 248-264.
________. (1971) Ato de Fundação, in Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 235-264.
Texto recebido em: 03/09/2009
Aprovado em: 25/12/2009
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