Crime, violência e responsabilidade na clínica psicanalítica contemporânea1
Crime, violence and responsibility in contemporary psychoanalytical clinic


Maria José Gontijo Salum

Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Professora adjunta da PUC Minas
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
Diretora de Ensino do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais
mgontijo.bhe@terra.com.br

Resumo


Partindo do texto de Lacan “Contribuições teóricas às funções da psicanálise em criminologia” e tomando como referência a releitura do mesmo feita por Serge Cottet, no artigo intitulado “Criminologie lacanienne”, este texto pretende atualizar a contribuição da psicanálise à criminologia, considerando o cenário da violência contemporânea no Brasil. Para isso, recorre aos conceitos lacanianos de passagem ao ato e acting-out para propor uma clínica do ato criminoso. O crime foi considerado na neurose e na psicose, mas o que se pretendeu destacar foi dimensão do ato criminoso na perspectiva dos novos sintomas.


Palavras-chave: crime, passagem ao ato, acting-out, delinquência, novos sintomas.

 

Abstract


Based on the text by Lacan “Theoretical introduction to the functions of psychoanalysis in criminology”, and the study of this work by Serge Cottet, in the paper named “Criminologie Lacanienne”, the present research intends to update psychoanalysis’s contribution to criminology by analyzing the contemporary violence scenario in Brazil. For that matter, we look into the concepts by Lacan of passage to the act and acting-out, in order to propose a clinic of the criminal action. The crime was considered in neurosis and in psychosis, but what was aimed to be pointed was the dimension of the criminal act in the perspective of the new symptoms.


Keywords: crime, passage to the act, acting-out, delinquency, new symptoms

 

Lacan escreveu o texto sobre criminologia numa época de seu ensino em que ele considerava a instância simbólica como prevalente. Atualmente, podemos extrair outras considerações teóricas e orientações clínicas desse texto, quer dizer, levar em consideração um cenário com semelhanças, mas também com grandes diferenças dos anos 1950. Jacques-Alain Miller, comentando este texto lacaniano na lição n. 9 de 2 de fevereiro de seu Seminário de Orientação Lacaniana do ano de 2005, intitulado Pièces detachées (Miller, 2005), ressalta sua atualidade e afirma que se trata do texto lacaniano mais próximo do artigo de Freud sobre o mal-estar na civilização.

Serge Cottet (2008), em recente publicação na Revista Mental n. 21, intitulada “Criminologie lacanienne”, fez uma releitura desse texto de Lacan e afirma que, apesar de ser canônico, é preciso atualizá-lo. Portanto, a proposta deste artigo é atualizar o texto lacaniano sobre criminologia, considerando o cenário da violência no Brasil no século XXI. Inicialmente, recorreremos às contribuições de Cottet (2008) no artigo citado neste parágrafo.

De acordo com Cottet, Lacan estava priorizando os sintomas sociais e isso equivalia a estabelecer um ponto de cruzamento entre a clínica e a política. Para a orientação lacaniana da psicanálise, esse é um problema bastante atual em nossos dias que o psicanalista deve levar em conta. Ele considera que Lacan privilegiava, assim como grande parte dos psicanalistas daquela época, as manifestações de delinquência advindas com o pós-guerra. A grande preocupação dos psicanalistas era como intervir nos casos de delinquência2 juvenil, advindos da situação de desamparo provocada pelas catástrofes decorrentes das guerras.

Seguindo o artigo de Cottet, a pergunta subjacente ao texto poderia ser formulada da seguinte forma: como sustentar a responsabilidade do sujeito num contexto de sintomas sociais? Por isso, ele afirma que Lacan procurou, a partir do conceito de responsabilidade, dar um estatuto menos contingente à noção de sujeito em psicanálise. A essa pergunta, acrescentamos a seguinte: como sustentar a responsabilidade na época do Outro que não existe, numa época que preconiza a satisfação sem restrições?

O sujeito em psicanálise é, antes de tudo, uma posição. Posição que deve ser sustentada em quaisquer condições e contextos, mesmo as que dizem respeito a um quadro de determinação social. A noção de sujeito em psicanálise implica que, apesar de ser um efeito contingencial, essa posição é da ordem do necessário, pois ela é sempre a de uma resposta, como reafirmou Lacan em seu texto “A ciência e a verdade” (1965-66). Por isso, diferente do direito penal, para o qual a responsabilidade é a possibilidade de imputação de uma pena, para a psicanálise, a responsabilidade é uma posição subjetiva.

Para abordar as determinações sociais, Lacan retomou as considerações de sua tese de 1932, conhecida como o caso Aimée (Lacan, 1932), e o texto de 1938 “Os Complexos familiares na formação do indivíduo” (1938), como observou Cottet em seu artigo citado acima. Lacan havia problematizado que as condições sociais do edipianismo levariam a um desregramento do supereu, o qual reflete o complexo familiar. Ele é fruto da ordem simbólica, mas, ao mesmo tempo, está em discordância com esse registro. Ele também veicula uma lei insensata que a norma edipiana não pode regular. Portanto, o supereu manifesta a tensão entre o sujeito e a lei social transmitida pelo Édipo. O declínio da imago paterna e a decomposição da família tornariam esta instância mais feroz, porque menos sujeita à transmissão, pelo edipianismo, da lei que veicularia o ideal social, teses sustentadas por Lacan nos “Complexos familiares” (1938).

De acordo com Cottet, Lacan fez referências aos trabalhos de Aichhorn com jovens delinquentes, para sustentar que a instância superegóica empurraria o sujeito para o crime e a transgressão. Ele, também, concordaria com Kate Friedländer para quem esses efeitos seriam produzidos pela posição associal do grupo familiar. Nesses casos, a família transmitiria uma modalidade de identificação que determina o caráter neurótico, a causa da delinquência entre os jovens.

Cottet afirma que a instância do “supereu” seria uma forma de condensação do geral no particular. Isto é, ela condensaria, numa significação subjetiva, o que é transmitido socialmente. Portanto, não seria possível considerar a criminalidade dos jovens daquela época sem conceber seus atos como consequência da particularidade do contexto familiar na instauração da instância superegóica. Assim considerados, esses atos podem ser vistos como uma forma de sintoma – eles veiculariam uma falha no campo do Outro familiar.

Cottet lembra que Lévi-Strauss havia comentado o artigo lacaniano sobre a família, em seu prefácio da obra de Marcel Mauss (Lévi-Strauss, 2008). Neste comentário ele afirma que nenhuma sociedade é integral e completamente simbólica, pois, embora haja a exigência de que todos os membros de uma sociedade se integrem da mesma maneira, nenhuma oferece para todos eles, e nas mesmas condições, os meios de utilizar plenamente os recursos da estrutura simbólica. Em nossa sociedade, da mesma forma que há a exigência de integração forçando a colaboração social, existe um ideal individualista que põe em contradição dois ideais: o social e o individual. Portanto, Lacan vai considerar que as manifestações mais degradadas do “supereu” são decorrentes das tensões agressivas promovidas pela exigência de integração social, em desacordo com o indivíduo.

A tendência à agressividade surge no contexto dos complexos familiares, na articulação do indivíduo com seus semelhantes – seus familiares e o meio social – e, em determinadas situações, essa tensão agressiva é manifestada pela instância superegóica. Por isso, Lacan falou de crimes do supereu, considerando que essa instância empurra para o crime, lembra Cottet. Esses crimes estariam em consonância àqueles cometidos em consequência de um sentimento de culpa, que Freud já havia trabalhado.

 

No encontro com o Outro, culpa e autopunição.

Relacionando estas duas concepções, a de Freud e a de Lacan, podemos considerar que se trata de atos cometidos a partir do impasse entre a lei, o gozo e o Outro. A lei que causa o desejo provém do Outro. Consentir com ela indica a instauração de um sujeito do inconsciente. A exigência de gozo que empurra ao ato criminoso diz da falha da lei em passar o gozo para o inconsciente, isto é, em operar com a satisfação por meio do recalcamento. O ato criminoso empurra para uma satisfação direta, que não entrou nos circuitos do desejo, da simbolização e da castração como falta.

A lógica de Freud, seguida por Lacan, quer dizer que pela atuação seria encontrada uma lei no real que faria a função de barrar o gozo. Em outros termos, os chamados crimes do supereu, ou em decorrência da culpa, seriam realizados para chamar no real da lei jurídica o que falhou na simbolização da lei edipiana. Por isso, Lacan não diferencia esses crimes quanto à estrutura psíquica de quem os comete. Eles podem ser realizados por neuróticos e psicóticos. Contudo, mesmo que decorrentes de uma causa que parece ser semelhante, a justiça os avalia de forma diferente.

Os crimes cometidos pelos neuróticos serão responsabilizados penalmente, os cometidos pelos psicóticos serão considerados inimputáveis. De acordo com Cottet, Lacan, nos anos 1950, estava propondo uma nova clínica. Nesta, seria preciso verificar a presença ou ausência do determinismo autopunitivo. Caso este determinismo fosse encontrado, melhor seria aplicar uma sanção penal, mesmo para os casos de psicoses.

Para Cottet, na relação com o ato criminoso, a psicanálise teria o papel de demonstrar o caráter simbólico do crime que, na época, queria dizer o reconhecimento pelo sujeito da estrutura edipiana de seu ato. O sujeito seria humanizado e seu ato reinscrito no universal edipiano, mesmo se ele desse uma interpretação privada do Édipo, como nas psicoses. A interpretação do ato pela psicanálise ressaltaria as tensões, a função criminógena da sociedade, como Lacan escrevera no artigo “A agressividade em Psicanálise” (Lacan , 1948), lembra Cottet.

Nas questões referentes à responsabilidade penal, Cottet também recorda que Lacan tomou partido de Gabriel Tarde. Este jurista, procurou separar a determinação de responsabilidade da noção de livre-arbítrio. Segundo suas concepções, a responsabilidade deveria ser avaliada a partir da identidade pessoal e da similitude social. Lacan segue as posições de Tarde, ele concorda que a responsabilidade não pode ser medida em função da liberdade, isto é, verificar se a pessoa ao praticar o ato, o quis livremente, ou se ela era alienada mental, como se dizia na época. Contudo, Lacan vai questionar em Tarde a noção de identidade pessoal, pois para a psicanálise, a implicação do inconsciente divide o sujeito de sua identidade. No empuxo ao ato, a psicanálise vai perguntar que força desencadeou o ato e quem o realizou.

Ao contrário da psiquiatria, a psicanálise lacaniana não considera o ato um absoluto nele mesmo. Cottet observa que é diferente um ato desencadeado por ideal justiceiro num delírio, ou por uma impulsividade como nos crimes imotivados.

Podemos considerar que nos crimes por sentimento de culpa, presentes na neurose, e nos delírios de autopunição, nas psicoses, o sujeito encontra-se às voltas com o Outro. Obviamente, um Outro distinto e que assume formas distintas, já que se trata de diferentes estruturas. Nesses casos, o problema é transposto para uma querela com outrem e, nessa, o sujeito sai perdedor. Por isso, uma sanção seria indicada para eles, segundo Lacan, pois, nesses crimes haveria a presença de um Outro a quem o sujeito se dirige.

A causa do crime

O ato criminoso, como qualquer ato, tem uma causa – a força que o desencadeou. Essa força parte de uma convicção que, certamente, não provém das mesmas instâncias nem produz as mesmas conseqüências. Como já foi abordado, no texto sobre criminologia, Lacan tratou dos crimes do supereu, em consonância com os trabalhos dos psicanalistas de sua época que estavam interessados nos atos infracionais cometidos pelos jovens. Ele considerou os crimes do supereu também na perspectiva da psicose, ao fazer referência à paranóia de autopunição. Mas, ele também tratou dos crimes do eu e do isso.

Jacques-Alain Miller, na lição já citada do Seminário Pièces detachées (Miller, 2005), vai se referir às diferentes modalidades de crimes desencadeadas pelos três registros. Os crimes do imaginário, ou do eu, seriam aqueles provenientes da agressividade presente no estádio do espelho; os crimes do simbólico seriam demonstrados nos assassinatos de presidentes e monarcas; nestes, também podemos considerar nos crimes em decorrência do supereu, que apresentam um ponto de discordância entre a lei e o ideal. E, por último, os crimes do real, que poderíamos considerar os crimes do isso, ou do gozo, que ele diz se tratar de um misto dos crimes do imaginário e do simbólico. Para exemplificar esse último tipo, ele fez referência aos assassinatos em série, cada vez mais comuns nos nossos dias; todavia, ele vai tomar os crimes nazistas como o apogeu dos crimes do real.

O conceito de passagem ao ato orientou Lacan na teorização do ato criminoso. Inicialmente, ele trabalhou esse conceito na perspectiva da psicose no caso Aimée, a partir da noção de autopunição. Nesse caso, houve um apaziguamento do delírio após a prisão. Posteriormente, Lacan trabalhou a passagem no ato na paranóia, tomando-a como uma defesa diante da onipotência do Outro. A perseguição no delírio paranóico justificaria o ato. Nessas duas perspectivas, o sujeito, após o ato, responderia reconhecendo, de alguma forma, a incidência da lei. Por isso, Lacan afirma que uma sanção seria indicada para esses casos. Em sua tese, ilustrando com Aimée, ele justificou seu argumento ao afirmar que após a prisão, o delírio cessou. Nos crimes em decorrência de um delírio de perseguição paranóico, o sujeito se posiciona por meio do argumento de que agiu em legítima defesa, por exemplo, e, dessa posição, responde à lei. Lacan sustenta que a partir do castigo, o sujeito poderia advir responsável porque a responsabilidade penal humanizaria o ato – através da punição o ato poderia ser inscrito no universal da castração.

Nos crimes decorrentes do Édipo, em conseqüência de um sentimento de culpa, assim como nos crimes em função de um delírio de perseguição ou de autopunição, a ação do psicanalista poderia verificar a presença ou ausência de um determinismo autopunitivo, seja na psicose, ou na neurose. A presença desse determinismo deveria servir de base para o estabelecimento da responsabilidade penal e do acompanhamento da responsabilização. Nesses casos, a prisão seria preferível à decretação de irresponsabilidade, ou de um tratamento, pura e simplesmente, como sonhavam alguns dos psicanalistas pós-freudianos que trabalhamos no capítulo anterior.

A partir da responsabilidade penal poderia se promover a assunção subjetiva da falta e, então, a responsabilidade, no sentido psicanalítico. Responsabilidade, para a psicanálise, é a resposta de um sujeito frente ao real. No caso do crime, a resposta seria a articulação de um ato à sua subjetividade, já que o ato é sem sujeito.

Visando a responsabilidade, Cottet (2008) lembra que o praticante da psicanálise poderia ajudar no despertar do sujeito daquilo que o condena. Sabemos que não se trata da sentença do juiz, mas do universo mórbido da falta – expressão de Hesnard (1949). A intervenção da justiça poderia ser um chamado a essa condenação, que é de todos, pois diz respeito ao universal da castração. Contudo, caso a caso, é preciso verificar se o sujeito pode responder ou não e de que formas.

Portanto, trabalhando na interface com o direito penal, a psicanálise trataria de acompanhar a possibilidade de que o sujeito possa promover a assunção de sua responsabilidade. Por isso, para a psicanálise, a responsabilidade é universal. A responsabilidade é o chamado para que o sujeito possa responder, frente aos seus semelhantes, pelo ato que praticou.

Mesmo tentando atualizar a prática da psicanálise, a partir de Lacan, estamos mantendo a dimensão de castigo, que foi ressaltada por ele, devido a seu aspecto de constrangimento feito àquele que praticou o ato criminoso. Trata-se da função de um chamado ao sujeito para responder por sua posição. E, em nossa experiência, vemos que esse chamado pode se dar de várias formas – pela prisão, pelas penas alternativas, por medidas sócio-educativas, no caso dos adolescentes, ou do acompanhamento por meio de uma medida de segurança, nos casos de psicoses.

A responsabilidade, concebida como a resposta de um sujeito, é o que visa a psicanálise. Ela pode acontecer, a partir da entrada do Outro da lei, preservando o semblante do direito penal que diz que a justiça se faz porque há uma distinção fundamental: há coisas que são permitidas porque existem algumas proibições. Nesse sentido, estamos considerando a dimensão simbólica da lei que instaura uma diferença. Porém, outras modalidades de passagens ao ato acontecem nas psicoses e, nestas, devemos fazer uma ressalva quanto à responsabilização penal.

Lacan também considera a passagem ao ato realizada a partir da cristalização hostil. Essa modalidade foi discutida por ele no caso conhecido como o das irmãs Papin (Lacan, 1933). As irmãs Lea e Cristine realizaram a passagem ao ato no encontro com o semelhante tal como formulado no texto lacaniano sobre o estádio do espelho - cada uma atacou seu duplo, a patroa delas e sua filha.

Uma outra referência de passagem ao ato foi retirada dos chamados crimes imotivados, como Paul Guiraud (1994) os nomeou. Os crimes desse tipo visariam à extração de kakon, o mal interior. Em termos lacanianos, esses atos criminosos realizariam a extração do objeto sendo, portanto, considerados crimes pulsionais, pois visam a liberação de um mal interior.

Para essas modalidades de crime – cristalização hostil e crimes kakon - a sanção não seria adequada. Ao contrário, seriam os crimes para os quais a inimputabilidade penal estaria indicada e formas de tratamento poderiam ser realizadas por meio de um acompanhamento com um psicanalista, além de outros profissionais.

Serge Cottet (2008) afirma que Lacan parece destacar a categoria dos crimes do eu nos anos 50 porque esses crimes fazem prevalecer a identificação imaginária em detrimento da social, um problema que ele estava desenvolvendo nessa época. Somente depois, ele teria se ocupado da noção de assassinatos imotivados.

Dando sequência à atualização da leitura do texto lacaniano, Serge Cottet vai afirmar que a frequência desses crimes imotivados tem aumentado. Segundo ele, podemos ver indicações desse aumento nos assassinatos em massa, cada dia mais comum. Eles podem ser considerados como crimes imotivados, não somente porque são imprevisíveis, mas também porque o único sentido a lhes dar é o gozo da destruição. Esses crimes são também nomeados crimes de gozo, ou crimes do real, tal como Miller nomeou os crimes nazistas. Ainda de acordo com Cottet, o assassinato em massa visa atingir a humanidade e parece vislumbrar que existe um programa de liquidação que visa a raça humana.

Cottet afirma que, dentre os crimes em série, os sexuais têm se demonstrado os mais atrozes e sua gratuidade mobiliza a vingança pública. Nesses casos, tanto os peritos, quanto o público não querem considerar a incidência de uma psicose. Esses criminosos são apresentados como calculistas, manipuladores, perversos, inteligentes. São tudo, menos loucos, comenta Cottet. Em geral, esses crimes de gozo são designados como perversão, ao contrário do que deixa entender a psicanálise. Por isso, a justiça os tem penalizado. Para Cottet, o problema é saber se um castigo poderia despertar a responsabilidade desses criminosos. Ele lembra que suscitar uma crise subjetiva pelo castigo, em certos casos, poderia ser uma aposta. Em outros, principalmente nos que indicam a presença de um traço perverso, levar ao tribunal pode significar uma nova oportunidade para prosseguirem gozando e ele duvida que o julgamento possa lhes humanizar.

Portanto, o ato criminoso não é desencadeado sem uma causa, o crime ocorre devido ao encontro com algo que o causa. Diante desse encontro, o sujeito responde com um ato que, definido como crime, toma o estatuto de um fato social. Por isso, há uma resposta jurídica ao ato criminoso. A justiça vai constranger aquele que cometeu o delito para que pague seu ato com uma sanção, ou vai encaminhar para um tratamento. Portanto, a passagem ao ato tem uma causa e produz um efeito. A psicanálise, no encontro com aquele que cometeu um crime, a partir da responsabilização penal, vai buscar a assunção do sujeito frente ao ato. Em suma, vai buscar uma produção subjetiva onde um ato imperou.

Lacan também faz referência ao caso Landru. Com esse caso, podemos extrair, a partir da orientação lacaniana de Jacques-Alain Miller, uma clínica do real, como trabalhou Francesca Biagi-Chai (2007). Cottet sustenta que esse caso mostraria a perspectiva de kakon no último ensino de Lacan. Ou seja, um ensino que não considera mais o privilégio do registro do simbólico, como nos anos 50.

Embora seja possível afirmar que Lacan estava destacando os casos de delinquência juvenil no pós-guerra, ele também fez diversas considerações sobre as passagens ao ato nas psicoses. Portanto, o ato criminoso pode ser considerado na perspectiva das duas formas de apresentação dos atos – a passagem ao ato e o acting-out. Na sequência, será feita uma discussão desses dois modos de agir.

 

A passagem ao ato, o acting-out e o crime

Como foi abordado, o interesse de Lacan pelo crime veio, inicialmente, da passagem ao ato na psicose. Ele trabalhou a autopunição como causa do crime no caso Aimée e, posteriormente, acrescentou uma outra explicação para as passagens ao ato na paranóia: o delírio paranóico de perseguição. O caso das irmãs Papin trouxe uma outra causa para a passagem ao ato – a cristalização hostil, quer dizer, os crimes em decorrência do imaginário. Por fim, os crimes de kakon, considerados por Guiraud (1994) como imotivados, constituem uma outra causalidade e visam a extração do objeto a.

No texto sobre criminologia, aparecem os crimes do supereu, que demonstram a tensão entre o sujeito e a lei social. Como observou Miller (2005), no seminário citado anteriormente, Lacan também fez referência aos crimes que não demonstram nem o simbolismo do supereu e do Édipo, nem a agressividade imaginária ao semelhante, por isso, são nomeados crimes do real. Neste sentido, atualizar o texto de criminologia seria dar um privilégio à leitura desses crimes ditos imotivados, e isso equivale a dizer que são crimes motivados pelo objeto, pela presença do objeto. Não mais um objeto colocado no Outro perseguidor, como na paranóia, nem como um rival como na cristalização hostil.

Portanto, a leitura de Lacan dessas causalidades distintas dos crimes nos permite avançar na relação desses com o objeto que o ato visaria atacar. Cada um desses modos são formas diferentes de encontro com o objeto; por isso, se constituem em respostas distintas. Demonstrar estas diferenças é a tarefa que nos orienta ao longo deste artigo.

Antes de nos dedicarmos a essa tarefa, nos deteremos na pesquisa dos conceitos que concernem ao crime a partir da referência dos atos. A atuação de um crime será abordada nas perspectivas da passagem ao ato e do acting-out, tal com Lacan os considerou no Seminário 10 – A Angústia (1962-63). Neste seminário, os atos são considerados uma forma de resposta diante de uma causa – o encontro com um objeto a.

Lacan começa o seminário citado acima, abordando as conseqüências subjetivas da angústia – ela afeta o sujeito. Um afeto não pode ser recalcado – ele pode ser deslocado, substituído, invertido, metaforizado. Segundo ele, a angústia é o fenômeno fundamental e o problema capital da neurose, pois ela é o afeto diante do que na estrutura não pode ser simbolizado: o objeto a.

No encontro com o desejo do Outro, deparar-se com sua falta, é correlato ao encontro com o Outro que não há. A angústia é o sinal deste encontro, é o confronto com a ausência de relação sexual. Na lição de 19 de dezembro do seminário citado, Lacan vai explicar a relação da angústia como sinal desse encontro (1962-63). O sujeito neurótico se protege estabelecendo uma relação com a falta de objeto através da construção da fantasia; com esse recurso ele enquadra a angústia e vela a falta. Para ilustrar este artifício, Lacan faz referência a uma metáfora que ele já havia utilizado a respeito da fantasia – a colocação de um quadro no caixilho de uma janela. Ele afirma que não importa o que esteja pintado no quadro, o importante é não ver o que está por trás da janela.

Segundo Lacan, a angústia surge quando aparece no enquadramento, não algo novo, inesperado, mas o que já estava ali, velado, por trás. Portanto, a angústia acontece quando, súbito, de repente, há o encontro com o heimlich/unheimlich, numa referência ao familiar/estranho do texto freudiano, “O estranho” (Freud, 1919). O surgimento deste (un)heimlich no enquadre causa o fenômeno da angústia, por isso, para Lacan, a angústia não é sem objeto, ao contrário do que afirmava Freud (1926 [25]).

Lacan faz referência ao sonho de angústia do homem dos lobos, relatado por Freud (1918 [14]) – abre-se a janela e o objeto por trás dela é desvelado. No caso do sonho relatado, os lobos. Nesse seminário, Lacan também se refere a um desenho de uma paciente psicótica, atendida por Jean Bobon. Este desenho foi reproduzido no Seminário A angústia e nele pode-se ver uma árvore com olhos e a frase: “eu sou sempre vista” (Lacan, 1962-63, p. 201). Lacan afirma que esse desenho mostra o objeto olhar e também o sujeito como objeto. Assim, para Lacan, o grande problema da angústia é se deparar com a presença do objeto, ou seja, quando a falta de objeto, isto é, o desejo, falta. Nesses momentos, o próprio sujeito aparece como objeto, quer dizer, é desvelada para o sujeito sua vertente objetal.

Ao fazer referência ao enquadre, Lacan está considerando a rede de significantes que gera o mundo para cada um e pelo qual somos enganados, como ele diz. A angústia, ao contrário, é o que não engana. O encontro com o objeto causa angústia e desordena o mundo. Na certeza da angústia, pode-se recorrer à ação. Busca-se evitar essa certeza assustadora do encontro com o objeto que faz furo na rede dos significantes que ordenam o mundo. Afetado pelo encontro com o objeto, o sujeito não pensa, nem tenta compreender, ele age.

Os atos são considerados, nesse seminário, uma forma de defesa contra a angústia. Nele, Lacan vai montar um grafo para localizar esse afeto, partindo do texto de Freud “Inibição, Sintoma e Ansiedade” (1926-25) para dizer que ele está no fundo dessas manifestações. Quer dizer, a angústia é o afeto que designa o encontro com o objeto. Por isso, quando ela surge, sinaliza um encontro com o real que pode desencadear sintomas e inibições, bem como a passagem ao ato e acting-out, Lacan acrescenta.

Essas diferentes saídas frente à angústia serão determinadas por circunstâncias distintas, no que diz respeito à possibilidade de simbolização. Uma resposta sintomática pode ser desencadeada quando o sujeito encontra, em sua história, coordenadas simbólicas para subjetivar a falta, a sua e a do Outro, ou seja, quando ela surge articulada no dispositivo simbólico. Fazendo uso da fantasia, que articula a presença do objeto em conjunção e disjunção com o significante, pode-se substituir o encontro com o objeto que angustia por um sintoma, assim esse encontro é metaforizado.

Nos casos dos atos – passagem ao ato e acting-out – o sujeito não encontra o apoio simbólico para inscrever a castração como falta. Portanto, ou ele reproduz a situação em uma encenação, ou seja, ele encena a falta por meio da fantasia, colocando um objeto como falta, caso do acting-out, ou sucumbe a esse encontro, como na passagem ao ato. Levando em consideração a temporalidade lógica – instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir – no primeiro caso, o sujeito ficaria paralisado no instante de ver e no segundo, passaria, instantaneamente, ao momento de concluir; ambos elidiriam a simbolização e subjetivação presentes do tempo de compreender. Não abordaremos as saídas a partir da inibição, pois nosso objetivo é avançar nas considerações do crime como um modo de atuação que recorre a um dos dois tipos de atos abordados por Lacan no Seminário 10 (1962-63).

No caso das psicoses, já abordamos as diferentes formas de passagem ao ato ao longo da obra de Lacan – autopunição, delírio de perseguição, cristalização hostil, extração do objeto. Com a publicação da tese Francesca Biagi-Chai (2007) sobre o caso Landru, podemos considerar a leitura dos crimes kakon, da extração de objeto, a partir do último ensino de Lacan, ou seja, uma clínica do real. Nestes casos, Biagi-Chai propõe que consideremos a passagem ao ato pela função de S1 e a. Foracluído do simbólico, sem articulação em um discurso, o sujeito apresenta um S1 sozinho, sem relação com um S2. No caso de Landru, “tudo pela sua família” constitui uma ordem, sem vacilação, um S1 ao qual ele está submetido. Trata-se de um dever que o comanda, sem relação a um ideal. Portanto, suas passagens ao ato – roubo e assassinato – vão se configurar como recuperação do objeto, no caso, os bens das mulheres solitárias que ele assassinava.

A essa variedade de passagens ao ato que podemos apreender no ensino de Lacan, acrescentamos os acting-outs, presentes nos casos de delinquência cujos crimes simbolizam a tensão entre o sujeito e a lei social. Concluindo, é preciso que consideremos o crime como uma espécie de ato referido ao objeto a, seja na modalidade de uma passagem ao ato ou de um acting-out.

Tradicionalmente, a psicanálise associou a passagem ao ato às psicoses em decorrência da foraclusão do significante do Nome-do-Pai nessa estrutura. Esse significante é o que possibilita a significação do desejo como falta, articulado ao falo, permitindo o deslizamento do sujeito e do desejo na cadeia significante. No caso das psicoses, os fenômenos delirantes e alucinatórios vêm ocupar o buraco no simbólico conferindo uma proeminência do imaginário. Nas situações onde o objeto se apresenta, seja de forma persecutória, seja de forma invasora, a passagem ao ato pode ser uma saída para extraí-lo. Essa extração em ato vem no lugar da extração simbólica não operada.

Nos casos de neuroses, o sujeito mostra o objeto pela encenação, num acting-out, ou se identifica imaginariamente com esse objeto e se lança numa passagem ao ato, quando a defesa de sua fantasia é transposta de uma maneira selvagem. Nessas circunstâncias, um sujeito neurótico pode fazer uma passagem ao ato.

No grafo que Lacan propõe no Seminário 10, o acting-out é localizado como uma ação que acontece na conjunção de um impedimento com uma efusão. Trata-se de uma ação que se aproxima do sintoma porque nela existem coordenadas simbólicas, ainda que inoperantes. Esse tipo de atuação serve-se do recurso da fantasia para mostrar uma cena dirigida ao Outro – representa uma história em ato. O Outro é convocado e, em cena, lhe é mostrado o objeto da angústia; obviamente, não o objeto, mas uma falácia colocada em seu lugar. O acting-out é um apelo em ato para que um outro produza uma ordem, ordene o mundo do sujeito, refaça o enquadre desarranjado. Nas chamadas delinqüências juvenis encontramos a proeminência desses atos. Os atos infracionais na adolescência, em sua grande maioria, devem ser localizados dentro da perspectiva do acting-out.

A passagem ao ato acontece quando se conjuga a emoção no momento de mais intenso embaraço. Jacques-Alain Miller (1993), retomando o conceito lacaniano de passagem ato, vai dizer que a passagem ao ato é o suicídio do sujeito. Nela, faltam coordenadas simbólicas e o sujeito sucumbe se identificado imaginariamente ao objeto. A passagem ao ato é, em geral, um ato mudo, de sentido mais trágico e de maior risco. Geralmente, são atos solitários e sem público.

Nestes atos, a angústia sobrepõe ao sujeito, ele fica identificado ao objeto causa de sua angústia e, ao pretender expulsá-lo da cena, pode expulsar a si mesmo, como nos demonstram os casos de auto-extermínio. Nos casos de passagens ao ato contra outrem, pode-se atacar no outro, seu eu, seu supereu, ou a si mesmo. São formas diferentes de fazer a extração, o excesso, quando o objeto está localizado no outro. Na primeira modalidade, temos o caso das irmãs Papin, no segundo, Aimée e no último, os crimes de kakon.

Devemos demarcar que estes dois conceitos - acting-out e passagem ao ato - nos mostram a dimensão de um atuar no lugar de dizer. Atuar no lugar de dizer é também a definição que Jacques-Alain Miller nos dá dos chamados novos sintomas – os quais ele denomina patologias do ato. Nessa nova perspectiva, o sintoma – como resposta de um sujeito do inconsciente – não se formula, não apresenta uma formação sintomática articulada ao desejo inconsciente. Quando o significante do desejo falta, seja por estar foracluído, seja por não estar relacionado a um ideal simbolicamente articulado, a resposta que deveria ser subjetiva não acontece. Em seu lugar surge um ato. Por isso, no ato não há um sujeito, prevalece a versão do objeto.

Na clínica clássica, o objeto a aparece como o resto ou o produto do discurso do mestre, o discurso do inconsciente. Como efeito, o objeto na neurose encontra-se velado na fantasia inconsciente. Na clínica dos atos, o objeto não surge da mesma forma, ou seja, articulado em discurso no inconsciente: ele é atuado.

Para que o mundo do sujeito seja articulado em discurso, é preciso que ele seja estruturado no mundo dos significantes e, para isso, é necessária a intervenção do significante do Nome-do-Pai, que este significante intervenha como Outro. No caso das psicoses, a foraclusão desse significante impossibilita que esta operação, chamada por Lacan de metáfora paterna, seja realizada, o que aumenta a promessa das passagens ao ato. Nos casos que apresentam atuações, mas que não se tratam de psicoses, podemos considerar que estas podem acontecer a partir do que Lacan (1938) designou de declínio da imago paterna.

A clínica contemporânea, segundo Miller (1996-97), é a clínica do Outro que não existe. Isso quer dizer que o grande Outro que deveria veicular o ideal articulado à sublimação e a renúncia e que promoveria o laço social, não é encontrado de forma hegemônica. Ou seja, o ideal do eu configurando um tipo para que o sujeito possa se identificar e localizar seu gozo como fálico, da forma como Lacan (1958) nomeou em seu escrito “A significação do falo”, isto é, o tipo ideal de seu sexo.

A partir desse Outro se estabeleceria a articulação entre o grupo vital e o funcional que Lacan faz referência do texto da criminologia. Correlato ao declínio desse Outro do ideal, surge uma figura feroz que exige satisfação, o supereu. Portanto, nessa clínica dos atos, temos que considerar as conseqüências das novas formas de apresentação do objeto para o sujeito. Ou seja, considerar que o tipo exigido não é o da sublimação e da renúncia, mas aquele que usa os objetos produzidos para gozar, sem restrição. Esse tipo dificultaria o estabelecimento de laço social, já que sua incidência se daria a partir da falha existente na relação entre o grupo vital e o grupo funcional, como já foi ressaltado.

Podemos seguir as indicações dos trabalhos realizados pelos psicanalistas diante dos sintomas sociais no pós-guerra e vermos, de certa forma, um cenário parecido com o nosso. Quer dizer, as condições daquele tempo propiciavam sintomas articulados ao contexto social, econômico e político da época, cuja manifestação nos jovens era chamada de delinquência. Contudo, parece que a comparação termina por aqui. O mundo não é mais o mesmo, ou o Outro não funciona da mesma forma. Ele não é mais o Outro da transcendência, dos ideais, da renúncia ou da crença. Um Outro que transmitia a castração e estabelecia o objeto como causa de desejo. As modificações no campo do Outro acarretam mudanças na clínica.

Fizemos referência às diferentes formas dos crimes nas psicoses, mas também vamos considerar as diferenças na apresentação da delinqüência nos jovens, com o objetivo de comparar as distintas causas do crime.

 

Novos sintomas: novas formas de delinquência

Em certo aspecto, a delinquência, pode ser considerada, comparando ao sintoma clássico, a um novo sintoma, de acordo com a definição que Jacques-Alain Miller (1996-97) deu a esse conceito. Um novo sintoma é aquele que demonstra a prevalência do atuar no lugar de dizer, é aquele que não faz uso da barreira do recalque para se defender da angústia; por isso os novos sintomas são considerados patologias do ato. Essa nova forma de apresentação do sintoma rompe com a significação fálica em relação à questão do desejo e do gozo. Assim, são apresentados atos no lugar de utilizar a estrutura simbólica. Portanto, vamos desenvolver a seguinte questão: em que medida os atos, quando considerados crimes ou delitos, respondem ao encontro com o objeto que causa angústia, de forma semelhante a que foi abordada?

A clínica clássica da neurose mostrava o seguinte: um ideal era instaurado no sujeito e esse, marcado pela falta, deveria se dirigir ao campo do Outro para encontrar o objeto de sua fantasia. Na psicose isso se faz de forma distinta, pois o psicótico não vai recuperar o objeto, visto que ele não o perdeu, não houve a extração simbólica do objeto para que se constituísse a causa do desejo – segundo expressão de Lacan, o psicótico tem o objeto no bolso. Por isso, nessa estrutura não haveria uma fantasia para ligar o sujeito ao campo do Outro visando o objeto. Ter o objeto, para qualquer um, é um estorvo. Sobretudo, porque, no lugar do objeto funcionar como causa do desejo do sujeito, a presença do objeto excesso exige mais gozo. Em decorrência desse excesso, vemos as passagens ao ato nas psicoses visando sua extração no real.

Lacan aborda no Seminário 10 (1962-63) os problemas que surgem quando a falta falta e, a este aspecto, já fizemos referência acima. Nesse seminário ele também lembra a constituição do objeto como o estranho familiar. Embora o objeto seja buscado porque falta, ele não é para ser encontrado, para que o sujeito do desejo esteja operando, é no estatuto de causa que o objeto deve ser mantido. Do contrário, figurando no lugar de mais gozar, surge a angústia como assinalando a presença do real do gozo.

Todo ato tem relação com o objeto, inclusive o que estamos aqui designando como ato criminoso – na atuação de um crime, o objeto é visado. Mas, não se trata do objeto na sua relação com a falta, com o desejo. Sem o amparo do desejo, no crime o objeto se apresenta, ele se manifesta. Portanto, ao atuar, um crime é uma forma de fazer um curto – circuito na articulação do objeto com sua falta, com a castração. Com seu ato, o criminoso vislumbra ter acesso ao objeto fora de sua significação fálica. Porém, isso se faz de modos distintos, quer se trate da neurose, da psicose e da perversão, já que essas estruturas apresentam maneiras distintas de lidar com a castração, com o Outro e com o objeto.

Sabemos dos trabalhos que atualizaram a clínica psicanalítica de orientação lacaniana no campo dos atos criminosos, na psicose e na perversão. No campo da psicose, temos, principalmente, o trabalho de Francesca Biagi-Chai a partir do caso Landru. No campo da perversão, a psicanálise de orientação lacaniana tem mostrado que, em sua maioria, os casos que são apresentados como monstros e perversos são, na verdade, casos de sujeitos psicóticos. O livro de Silvia Tendlarz e Carlo Dante García, A quién mata el asesino (2006), mostra isso.

Nos casos que são considerados perversão, há uma discordância entre a orientação lacaniana da psicanálise e outras leituras psicanalíticas. Nessas últimas, vemos uma tendência de manter o diagnóstico de perversão para casos que, sob a orientação lacaniana, seriam considerados psicóticos. Fazemos aqui referência ao livro de Susini, L’auteur du crime pervers (Susini, 2004). Tudo indica que os casos apresentados nesse livro tratam de psicose, embora a autora afirme que são perversos. Assim, vemos prosseguir atualmente a tendência iniciada por alguns psicanalistas pós-freudianos, sob influência de Melitta Schimideberg (1956), de considerar os atos criminosos na perspectiva dos atos perversos.

Então, em nossa época, a psicanálise de orientação lacaniana tem atualizado a leitura dos atos criminosos nas psicoses, como foi apresentado, mas, também, é preciso atualizar a leitura dos casos de neurose. Atualmente, da mesma forma que na psicose, haveria para o neurótico a apresentação do objeto, como Jacques-Alain Miller demonstrou na conferência “Uma fantasia” (2004). Nessa conferência, Miller considerou os efeitos para a subjetividade contemporânea de não estar orientada por um ideal, mas comandada pelo objeto da satisfação. Por isso, torna-se relevante investigar os atos criminosos comandados pelo objeto, na perspectiva dos novos sintomas. Mais ainda, verificar se esses atos poderiam ser considerados os crimes do real, mesmo na neurose.

Estamos considerando que, também na neurose, vemos casos nos quais sobressai a dimensão do objeto, numa perspectiva que nos parece nova. A delinquência, em sua forma tradicional, apresentava, geralmente, o ato de furtar um objeto do Outro. Este objeto valia para fazer um furo no Outro, ou para conferir um brilho fálico a seu portador, inserindo-o no campo do Outro por meio de um objeto desejado. Nesses casos, sobressai a presença da falta: em relação ao objeto, ao desejo, ao Outro e à lei. Esses casos também apresentam uma resposta subjetiva, a partir das consequências do ato. São os casos onde o sujeito responde conectando seu ato ao universal da castração. Por isso, essa forma de delinquência tem relação com a lei. Trata-se de alguém que se relaciona à lei do desejo e que o ato chama para que ela se apresente. Isso quer dizer que se trata de alguém que cai sob a lei do Outro. Mesmo numa agressão, num assassinato, esta relação se estabelecia – a dimensão de alteridade estava presente, ao se culpar, por exemplo.

Atualmente, estamos diante de uma profusão de objetos ofertados para o gozo. Jacques-Alain Miller (2004), na conferência citada acima, sustentou que o sujeito contemporâneo, ao contrário do que se afirma, não é um desorientado em função da inexistência de um Outro, ele continua orientado, não mais pelo Outro, mas pelo objeto.

Hoje, se faz presente o declínio dos ideais e ascensão dos objetos de consumo. Cada vez mais, a relação com o objeto que não se faz pelo desejo. O objeto como falta era buscado no campo do Outro, porque ele se constituía como alteridade. Se o Outro não se articula como um campo de alteridade, quando o estranho é avistado, é preciso eliminá-lo. Isso está de acordo com a profecia de Lacan da escalada do racismo (Lacan, 1973, p.532).

Para exemplificar esse movimento, ressaltamos o aumento dos crimes onde o corpo é o objeto – na forma de espancamentos, lesões corporais e, mesmo, homicídios – principalmente entre os jovens. Ressaltamos também os casos de adolescentes que expõem seu corpo, de forma mortífera, para ser golpeado. Trata-se de atos que demonstram, muito mais, uma desordem pulsional que se apresenta na forma de atos de violência, não uma ligação com o objeto a ser visado no campo do Outro. Esses atos indicam que podem ser tomados como provenientes do real. Melhor dizendo, indicam novas formas de apresentação do sintoma de delinquência.

No caso do Brasil, ironicamente um país que preconiza que não há racismo, é possível considerar que esses crimes têm se tornado típicos. Nos Estados Unidos e em outros países, os assassinatos em massa, praticados por sujeitos psicóticos, têm sido considerados por vários autores os crimes do real. Aqui, talvez possamos considerar o extermínio praticado pelos jovens, os principais exemplos desses crimes. Especialmente ligados à droga, mas não somente, o extermínio, como o nome indica, visa eliminar o estranho a cada vez que ele aparece.

Cottet (2008), como foi dito, colocou um problema para a responsabilidade nos casos dos crimes que trazem a marca da sexualidade e que são considerados como perversos. No nosso caso parece serem esses atos – os de extermínio – que colocam, atualmente, um problema no que diz respeito à responsabilidade. Os criminosos nazistas afirmavam que estavam cumprindo ordens, esses jovens também: eles se encontram na iminência de se depararem com o inimigo, com o estranho, encontram-se justificados pelo medo, o objeto fóbico se apresenta e eles têm que se defender. Da mesma forma que os criminosos nazistas, eles se justificam pelas intenções, não pelas conseqüências. A punição, para eles, não guarda a relação de um sujeito a um ato. Luis Eduardo Soares (2006) comenta as práticas justiceiras realizadas pelos jovens nas favelas. Nessas práticas, não há como um sujeito responder, não há procura pela verdade, pela reposta, há uma eliminação. Não basta matar, é preciso dominar o objeto, por isso, o corpo é retalhado, esquartejado, dominado e seus pedaços exibidos. Só assim o estranho é eliminado.

Apesar de referirmos à droga e ao tráfico, não vamos considerar as conseqüências específicas desses fenômenos para a criminalidade juvenil – isso demandaria uma outra direção nesse trabalho. Por ora, vamos considerá-los como objetos a serem consumidos, como qualquer objeto que se preste a isso: drogas, armas, corpos, crianças. A oferta dos objetos em profusão e eles estarem em posição de comando, foi o fator que modificou o cenário de constituição dos atos de violência.

Portanto, um ato infracional, quando considerado um desvio, na perspectiva do objeto, é um extravio da regulação da norma fálica. Por isso, a delinqüência, de certa forma, pode ser considerada um novo sintoma. Como afirmamos, o novo sintoma, de acordo com o que nos apresenta Jacques-Alain Miller, apresenta um gozo fora do recalcamento. Contudo, nas chamadas delinquências tradicionais – articuladas ao significante, a uma história, a um romance familiar - encontrávamos uma articulação do desejo presente. Comparando o sintoma tradicional com a atuação, o neurótico comum retorna a castração para si, simbolicamente, através de uma formação do inconsciente, enquanto o delinquente atuava, principalmente, através de acting-outs.

As novas formas de apresentação da delinqüência, ao contrário, apresentam a passagem ao ato. Dessa forma, a própria nomeação de delinquência pode ser questionada. Não se trata de um desvio da norma para nela se inserir, mas, de uma ruptura. Por isso, é possível considerar que não se trata de crimes – atos relacionados a uma lei – mas, do retorno da violência em ato.

Hoje em dia, a orientação lacaniana de Jacques-Alain Miller tem como desafio pensar a manutenção da psicanálise como avesso do discurso do mestre. Esse desafio se mantém na clínica dos atos criminosos. A lógica que orienta os crimes não é a da falta, mas do excesso. Mesmo que esses crimes sejam cometidos em lugares precários, do ponto de vista econômico e social, encontramos uma profusão de objetos, inclusive o corpo.

 

A causa do crime: ato e responsabilidade


Afirmamos que o ato tem uma causa – a presença do real do gozo. O ato criminoso se constitui uma defesa contra a angústia que sinaliza a presença do objeto. Então, o ato é uma espécie de resposta. Todavia, é uma resposta que exclui o sujeito: em seu instante, o ato não comporta a presença do sujeito. Aliás, os atos se produzem quando um sujeito não pode aparecer. Nas atuações há um curto-circuito do inconsciente do sujeito, há uma destituição subjetiva e uma submissão ao objeto. O ato é um efeito de uma causa – a presença do objeto – mas, ele, também, produz conseqüências. A partir das conseqüências do ato o analista irá operar, buscando produzir um sujeito onde estava um ato. Essas consequências deverão estar, necessariamente, relacionadas ao que desencadeou a atuação. Contudo, a operação analítica não se fará da mesma forma em cada um dos casos. Como já foi abordado, um ato criminoso não é o mesmo, ele pode ser realizado a partir de um acting-out ou de uma passagem ao ato, e cada uma dessas modalidades não se faz da mesma forma caso estejamos diante de uma neurose, de uma psicose ou de uma perversão.

O criminoso neurótico definido por Freud respondia com atos a partir do Édipo e neles era possível verificar o matiz do sentimento de culpa regularizando sua subjetividade. Freud postulou dois tipos de criminosos, basicamente: os criminosos por falta – em conseqüência de um sentimento de culpa, quer dizer, aqueles que estavam em falta com o Outro. Ele também abordou aqueles que se consideravam exceções – que demonstravam um excesso.

Pensar uma clínica com sujeitos que praticaram atos infracionais, a partir da referência do Édipo conduzia a uma lógica específica da direção do tratamento. Implicava em fazer valer um tipo de resposta sobre o ato que tinha no Édipo sua coordenada. O tempo da clínica do Outro que não existe e da submissão ao objeto, implica numa modificação da direção do tratamento com esses sujeitos.

O pensamento freudiano que se estrutura em torno do Édipo, em última instância, está hoje bem assimilado pelas instituições judiciais. De certa forma, ele está de acordo com os ideais preconizados pelas instituições judiciais. Mudar o paradigma acarreta em um desafio para o trabalho com a psicanálise nas instituições judiciais. Com Lacan, o paradigma não se coloca em torno do sentimento de culpa, mas da responsabilidade.

Para Lacan, a relação da psicanálise com a criminologia pode ser vista em duas perspectivas, de acordo com o artigo “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia” (1959). Primeiramente, do ponto de vista da terapêutica: para ele, a psicanálise pode lidar com esses casos porque, ao contrário dos outros discursos, não desumaniza o criminoso; ela o tem como sujeito. A partir da operação analítica, ato e subjetividade são passíveis de serem articulados. Em segundo lugar, ele considera essa relação do ponto de vista do progresso da psicanálise. No artigo citado, ele afirmou que um dos objetivos ao escrevê-lo era repensar a doutrina psicanalítica, em função desse novo objeto. Isso nos permite fazer uma inversão em seu título e tomá-lo como uma contribuição que a criminologia pode fazer à psicanálise. Essa contribuição pode ser vista como a possibilidade de, por meio desses casos, fazer avançar a teoria e a prática analítica além da referência edipiana.

Segundo Lacan, não há um vínculo entre sentimento de culpa e responsabilidade. Um dos postulados do texto sobre criminologia é o de que não existe sociedade para a qual não comporte uma lei positiva, e que em nenhuma delas deixa de ocorrer as mais diversas transgressões que constituem o crime. A forma de castigar as transgressões, para Lacan, denota a maneira como se pensa a subjetividade. Lacan considera que a idéia de homem que vigora em uma época pode ser inferida pela relação estabelecida entre o crime e a punição que lhe advém. Em todas as sociedades é mantida essa relação, portanto a responsabilidade é universal, ainda que isso exija uma ‘modalização’. Em decorrência disso, Lacan falou em assentimento subjetivo. O assentimento está articulado aos modos de resposta. Esse conceito revela a problemática do sujeito às voltas com a lei. Certamente, a lei que interessa à psicanálise não é a mesma que importa ao direito. Ela não é a norma. A lei jurídica se orienta pelo ideal, tem como objetivo a normatização das condutas. A lei que interessa à psicanálise é aquela que visa o singular, que institui a particularidade. É a isso que se refere o conceito de assentimento.

Parei aqui

 

As modalidades patológicas do assentimento

Jacques Alain-Miller dedicou seu Seminário do ano de 1987-88, Cause et consentement, ao tema de assentimento, como já foi abordado. Ele lembra-nos que, a partir de Freud, sabemos que o encontro do ser falante com a pulsão é sempre traumático. Frente ao traumatismo, o sujeito vai eleger um sentido, mas essa eleição é forçada pelo encontro. Segundo Miller, a estrutura já está lá e o sujeito – como efeito – advém como resposta. É um imperativo que obriga a assumir a causalidade e isso é um paradoxo. O que conhecemos como orientação subjetiva vai se constituir na problemática da posição primeira do sujeito diante da causa. Por isso, a causalidade, para a psicanálise, não é da ordem do significante, mas da pulsão. Do ponto de vista da pulsão, há a causa e, da perspectiva do sujeito, o assentimento. Como lembra Miller, o sujeito não é causa da estrutura, porque ela não é eleita pelo sujeito: o gozo é que a elege. O termo causa trata da conexão do gozo com os modos do assentimento. Neste seminário, Miller contrapõe o assentimento à psicose. Ele afirma que a alucinação ocorre porque, se não há crença, se a causa não adquire valor de existência para o sujeito, ela se faz ‘ex-sistir’ de fora e aparece no real. Todavia, é preciso considerar que o real tem estatuto de ‘ex-sistência’ para todos, não só para o psicótico. Por isso, anos depois desse seminário ele formulará o conceito de foraclusão generalizada.

Diante da emergência da causa, o sujeito se defende: a defesa é uma distância tomada em relação à causalidade. A operação do recalcamento se constitui como um modo de defesa. O sintoma do neurótico surge quando ele se depara com algo do real cuja presença determina uma resposta. De acordo com Miller, as coordenadas de resposta serão dadas pelo Outro e, em relação a esse Outro, o sujeito se posiciona. Nas respostas neuróticas, pode-se ver que, se algo não vai bem, é por um problema com o Outro. Isso configura uma forma de aparecimento do sujeito do inconsciente que demonstra um tipo de resposta que denominaremos como patologia do assentimento: o sujeito crê que as respostas para sua existência estão em Outro lugar. De forma correlata, pode-se considerar que a atuação, constitui também uma modalidade patológica do assentimento. A atuação é uma maneira do sujeito se esquivar do encontro com o trauma, porque encontrá-lo implicaria em tomar uma posição frente a ele. Para evitar o encontro, o sujeito repete e, repetindo, tudo se mantém, nada se modifica – no caso de um acting-out. Quer dizer, permanece o instante de ver o trauma, esquivando-se das conseqüências. Por outro lado, na passagem ao ato, há uma precipitação da conclusão, sem que haja uma subjetivação.

A categoria do inconsciente como sujeito, proposta por Miller no curso Los usos del Lapso (1999/2004), pode ser uma indicação clínica para os casos de transgressão e para o trabalho do psicanalista, nas instituições que se ocupam dos sujeitos que transgrediram as normas. Miller afirma que essa concepção obriga a pensar numa temporalidade que é diferente da repetição. A operação analítica é o que poderá propiciar a construção de um saber a respeito do que constitui o encontro com o gozo, com o trauma. Esse saber deverá ser construído e não encontrado, como se supunha.

O psicanalista que pratica nessas instituições lida com situações que permitem operar no trauma conforme proposto por Eric Laurent no artigo “O avesso do Trauma” (LAURENT, 2004): não mais considerá-lo como um buraco no simbólico cujo sentido deverá ser buscado. Conduzir um trabalho nessas instituições é encontrar formas de dar um tratamento ao gozo, e isso é uma operação de assentimento. No ato não há um sujeito e possibilitar que o sujeito se inscreva é promover o encontro do gozo com o assentimento. O assentimento, como asserção, é o aparecimento do próprio sujeito do inconsciente, no caso de uma neurose. Ou seja, a operação de assentimento visa fazer passar o gozo ao inconsciente. Nas psicoses, outras operações serão buscadas.

Ao longo deste artigo foram feitas referências a casos de psicóticos que cometeram passagens ao ato que os levaram ao encontro com a justiça. Algumas dessas passagens ao ato foram classificadas como crimes e quem os cometeu foi chamado a se responsabilizar penalmente: o caso Aimée, é um bom exemplo disso. Mas, também temos outros.

Abordamos que existem distintas formas de passagem ao ato nas psicoses. No caso de Aimée, Lacan considera a passagem ao ato no contexto de um delírio de autopunição e para esses casos ele afirma que, talvez, aquele que comete uma passagem ao ato levado por esta causa, seja melhor que encontre uma sanção. No caso de Aimée, a prisão promoveu o encontro com a significação de seu ato, um corte foi realizado. Isso quer dizer que os casos em que a passagem ao ato é realizada a partir de um delírio persecutório, de uma invasão do Outro, o sujeito, sendo chamado a dizer sobre seu ato, pode responder. Nesses casos, encontramos a articulação do ato a uma lei. O ato é considerado crime pela justiça, e pelo sujeito. Mesmo que ele diga que foi um dever, ele formula uma resposta em relação ao ato que o conecta a uma lei – mesmo que ela seja delirante. Portanto, nesses casos a passagem ao ato pode ser tomada como um crime, ou seja, algo que recebe inscrição no campo do Outro, e sobre o qual ele deverá responder. Ele poderá falar do ato, de suas causas e de suas consequências.

Em outros casos, isso não será possível. Um outro tratamento será preciso porque, principalmente, a passagem ao ato não será considerada um crime, nem para a justiça, nem para aquele que o cometeu. O trabalho do psicanalista, no acompanhamento desses casos, não será o de acompanhar os efeitos da lei para a responsabilidade do sujeito, verificar de que formas o sujeito poderá aparecer. Há um trabalho anterior a ser feito.

Isso acontece, sobretudo, em casos cuja presença da psicose pode ser detectada, não sobre um ponto foraclusivo, mas por meio de um gozo sem localização e que incide sobre o corpo do sujeito. Trata-se de sujeitos que não conseguiram um ponto de ancoragem, ou seja, um sinthoma3, para manter unidas as instâncias do real, do simbólico e do imaginário. Nessa impossibilidade, ele atua. Esses casos são aqueles que se configuram como os crimes do real, tal como aborda Biagi-Chai – atos orientados pela conjunção de S1 e a. Em alguns desses casos, ser nomeado como criminoso pode configurar um ponto de ancoragem e o sujeito se amarra nessa nomeação e, a partir dela, responde ao Outro. Em outros, um ponto de nomeação deverá ser produzido para que o sujeito possa se localizar e articular uma conexão ao campo do Outro.

O que se quer ressaltar é que, assim como o ato criminoso não é único, ele também não responde a uma mesma causa, nem produz as mesmas conseqüências. Por considerar essas particularidades, a justiça incorporou algumas modificações na sanção ao ato criminoso. Os atos cometidos por infratores neuróticos e adultos serão penalizados, os atos cometidos por psicóticos terão um tratamento diferente, eles serão declarados inimputáveis e os adolescentes receberão medidas sócio-educativas.

O psicanalista, no encontro com o direito, irá trabalhar a partir dessas ficções jurídicas e, se for de orientação lacaniana considera que sua prática será exercida no encontro com o direito, ele não vai pretender substituir a resposta jurídica. A psicanálise poderá ser de benefício para que o sujeito possa aparecer a partir do ato e de suas conseqüências.

Sabemos que a resposta em ato não aparece de forma indistinta nas pessoas. Há algumas particularidades que favorecem as atuações. Por isso, destacarmos duas delas: o desencadeamento de uma psicose e a adolescência. Nessas duas situações, o sujeito se encontra às voltas com um real sem possibilidade de simbolização, cada uma de uma forma distinta. Por isso, ressaltamos cada uma dessas modalidades de encontro com o real como promovendo particularidades nas atuações, ou seja, respondem de forma distinta ao encontro com o real.

O encontro com o psicanalista visará uma resposta conectada à sua subjetividade, não um ato no lugar do sujeito. Por isso, a responsabilidade em psicanálise não diz respeito ao cumprimento da norma jurídica, ela está relacionada aos modos de resposta subjetiva. Na clínica psicanalítica em interface com a justiça, é preciso verificar se o sujeito aparece e de quais modos, ou seja, qual posição ele responde à emergência do real. A resposta pode estar conectada ao Outro, ou em ruptura com a rede de significantes. É preciso estar advertido de que determinadas condições produzem algumas respostas típicas, mas não se esquecer que a responsabilidade, para a psicanálise é sempre a de um sujeito.

Na sequência, passaremos a um fragmento de caso para ilustrar o que se pretende demonstrar – a delinquência como uma nova forma do sintoma.

“Hugo, jovem de dezoito anos, era considerado um bom jogador de futebol, o que lhe dava uma projeção entre seus colegas. Fazia sucesso entre as mulheres, era um conquistador – estava sempre com várias meninas. Havia uma cobrança familiar para que ele assumisse responsabilidades na vida – que ele voltasse a estudar e começasse a trabalhar. Ele não havia concluído o ensino fundamental e não procurava um emprego, justificava-se que queria ser jogador de futebol. Contudo, não fazia nenhum movimento mais efetivo para ser um atleta profissional. Havia conseguido ser recebido para testes em alguns clubes, mas não os levava a sério – chegava atrasado, começava a discutir com alguém durante os treinos. Sempre estava se envolvendo em brigas e discussões – durantes os jogos, nas festas, na família. Diante de um sinal de crítica, quanto a sua atuação no futebol, ou qualquer ponto, era recebido por ele como uma falha apontada e que não era suportada – reagia com agressividade. Nessas situações, causava estranheza aos conhecidos, afinal, era alguém considerado “tão gente boa”! Enquanto não resolvia sua vida, conseguia algum dinheiro fazendo algumas contravenções, pequenos furtos, arrombamentos e vendendo drogas. Essas atuações lhe valeram algumas medidas socioeducativas.

Em um final de semana, um sábado à tarde, saiu do futebol e foi tomar uma cerveja com os amigos, como sempre fazia. Sua intenção era ir para a casa mais cedo, não ia beber muito, porque havia combinado de sair à noite com uma garota que estava paquerando havia um tempo. Porém, começou a olhar, assim como os outros homens, para uma moça que estava no bar. Colocou para si a tarefa de conquistá-la. Começaram a conversar, a se abraçarem e beijarem e, depois, saíram do bar e foram no carro dele para um local afastado – um campo de futebol. Só se lembra que na manhã seguinte acordou com a polícia em sua casa, a garota havia sido encontrada morta em decorrência de um traumatismo craniano. Ele foi condenado a 16 anos de prisão por homicídio.

Na prisão fica tranquilo, entra no time de futebol, tem bom relacionamento com os outros presos e os funcionários, era considerado “sangue bom” por todos eles. Arruma várias mulheres para visitá-lo e recebe o apelido de Hugo dos colegas (Hugo: o gostosão). Tudo ia bem, não fosse sua agressividade: no futebol e quando sofria críticas no trabalho que executava na prisão. Procurou o serviço de Psicologia encaminhado por seu chefe – sua agressividade estava lhe prejudicando, já havia perdido alguns benefícios. Nos atendimentos, fala dos relacionamentos na prisão e da agressividade.

Quando começa a falar do crime, diz que não se lembrava, mas, não teve como se defender, tudo indicava que tinha sido ele. Conta depois que a única coisa que se lembrava era de ter ficado nervoso com a moça – lembra-se que ela estava rindo muito, estava bêbada. Ele achou que ela estava rindo dele, que ela começou a fazer gozações, a fazer brincadeiras com o sexo dele, com seu pênis. Eles estavam em pé, ao lado do carro, encostados em um poste. Lembra-se de começar a dar alguns “tapas” nela, na cabeça, para que ela parasse de rir dele, ela caiu no chão e ele, com raiva, foi embora, deixando-a ali machucada.”

Este caso apresenta, inicialmente, uma série de atos que demonstram uma forma de delinquência tradicional. Através dos acting-outs Hugo se fazia aparecer para o Outro. Suas atuações – furtos, venda de drogas, arrombamentos – eram tentativas selvagens de construir formas de atravessar a adolescência e ser um adulto. Para ele, se fazer respeitar equivalia a ter acesso aos objetos: carro, dinheiro, roupas, mulheres. Estes objetos eram ostentados em sua vertente imaginária. Mantinha, assim, sua posição de “sangue bom” para o Outro. Ele chega nos atendimentos ostentando este lugar na prisão. No entanto, esse sujeito “sangue bom” encontrava nos momentos de rivalidade imaginária, com o objeto estranho: sua agressividade demonstrava isso. Ela aparecia quando ele vislumbrava que os objetos ostentados não lhe garantiam ser alguém para o outro. Em um desses momentos, a passagem ao ato se fez.

A violência com que ele agrediu a moça levantou a suspeita de uma psicose, antes do julgamento. Motivado pelo encontro com o objeto, ele exterminou aquela que ele supôs ter visto o que ninguém via, que era velado, mas apresentado nos acting-outs.

Este fragmento de caso ilustra algo que temos ressaltado como característica da clínica contemporânea da delinquência. Cada vez mais a presença das passagens ao ato, do retorno da violência em ato. Uma profusão de objetos, um excesso, uma busca cada vez maior para colocar esses objetos em cena, por um lado. Por outro, a demonstração, através das passagens ao ato, da falência dessa estratégia. Na clínica vemos que são, geralmente, aqueles que recorrem aos objetos – armas, mulheres, carro, droga - para garantir sua posição, que encontram a impostura que esta estratégia tenta encobrir. Nesse encontro, não há mais o que fazer, nenhum objeto a sustentar a virilidade, resta a passagem ao ato.

 

Notas


1. Este texto foi extraído da minha tese de doutorado em Teoria Psicanalítica: A Psicanálise e o crime: causa e responsabilidade nos atos criminosos, agressões e violência na clínica psicanalítica contemporânea. Orientação: Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos. PPGTP/IP/UFRJ, 2008. Financiamento da CAPES para o estágio PDEE na Universidade Paris VIII.


2. Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, o termo delinquência tenha caído em desuso. Porém, vamos mantê-lo porque ele se presta, devido a sua raiz etimológica, a ressaltar o que queremos demonstrar, quer dizer, a relação do sujeito à lei. Delinquo quer dizer deixar cair.


3. Em seu Seminário 23 sobre Joyce, Lacan passou a grafar sintoma como sinthoma. Neste seminário ele ressalta o que havia começado a desenvolver no Seminário RSI – o pai como um sintoma, um artifício usado para manter enlaçados os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário. Através deste quarto nó, os fundamentos de uma subjetividade podem ser sustentados.

 

Referências bibliográficas


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Texto recebido em: 03/06/2009
Aprovado em: 25/08/2009