O Pequeno Hans e a construção do objeto fora do corpo1
Little Hans and the contruction of the object out of the body


Geert Hoornaert

Psicanalista
Membro da New Lacanian School
Membro da Associação Mundial de Psicanálise

hoornaert.geert@yucom.be

Resumo

Este artigo interroga qual é o objeto cuja localização varia com a estrutura e, cuja possibilidade de cessão determina a natureza da ligação ao corpo e ao Outro. Que estofo tem ele, qual é seu modo de existência? Baseado no caso do Pequeno Hans, abordado por Lacan em 1956-1957, relido por ele em 1969 e em 1975, o autor submete aos leitores duas hipóteses. Primeiramente, este objeto não é um dado a priori, deve ser construído pelo sujeito. Em segundo lugar, a extração é, de certa forma, apenas esta construção.

Palavras-chave: psicanálise, fobia, objeto a, caso Hans.

 

Little Hans and the contruction of the object out of the body

Abstract


This article questions the object whose location varies with the structure, and whose possibility of giving it up determines the nature of the connection between the body and the other. What is it made of, what is its mode of existence? Based on the case of Little Hans, approached by Lacan in 1956-1957, and re-read by him in 1969 and 1975, the author submits two theses to the readers. First, this object is not available data from the beginning; it must be built by the subject. Second, the extraction is, in some way, just this construction.

Keywords: psychoanalysis, phobia, a object, Hans case.


Qual é este objeto cuja localização varia com a estrutura, e cuja possibilidade de cessão determina a natureza da ligação ao corpo e ao Outro? Que estofo tem ele, qual é seu modo de existência? Ao fazer esta pergunta com respeito ao caso do Pequeno Hans, abordado por Lacan em 1956-1957, relido por ele em 1969 e em 1975, lhes submeto duas hipóteses: um, este objeto não é um dado a priori, deve ser construído pelo sujeito. Dois, a extração, de certa forma é só esta construção.

Partamos do Seminário IV privilegiando um pedaço de real, que Lacan coloca no princípio do caso do Pequeno Hans, antes que este pedaço fique preso na articulação da linguagem e nesta ligação ao Outro que é a sua neurose.

1. Este pedaço, traumático, mantido nas diversas releituras, é a “entrada em jogo do gozo real com seu pênis real” (Lacan, 1956-57, p. 241). Desta “intrusão da função sexual em seu campo subjetivo” (1968-69, p. 322), “ele não entende exatamente nada” (1975b, p. 13). Resultado: angústia.

2. Angústia, porque este gozo faz dele o objeto da pulsão e cativo das significações do Outro (1956-57, p. 227).

3. O que obriga o Pequeno Hans – é uma urgência subjetiva – a construir uma resposta – um complexo de castração, diz Lacan (Ibid., p. 222), que consiste em colocar o pênis real fora do golpe (Ibid., p. 227).

 

Sua resposta é em duas partes:

A primeira parte será a fobia. Sua ação, reduzida a um mínimo operatório, é a colocação em operação de “uma série de limiares” que “instauram uma nova ordem do interior e do exterior”. Seu “sentido” segundo Lacan, é de “desenhar um campo, um domínio, uma área” (Ibid., p. 246). Notemos que a questão do topos e do limiar corporal é central. A problemática do “fazedor de pipi” concerne de fato o conjunto do corpo; por seu estado angewachen, enraizado, Hans arrisca ser reduzido ao puro suporte apassivado deste pedaço que começa a se mexer sozinho. Com esta “positivação” do gozo erótico se produz correlativamente a positivação do sujeito enquanto dependência do desejo do Outro (1968-69, p. 322); a paranóia está no horizonte (1956-57, p. 227 e 259). O que se deve obter é uma separação do “excesso de vida” deste órgão e encontrar o estágio do “fazedor de pipi” como separado do corpo para que ele possa, a partir daí, circular e investir-se de um valor simbólico. É nessa passagem ao simbólico que reside a eficácia da fobia do pequeno Hans (1968-69, p. 323).

O pivô da fobia é o cavalo “cuja função é a de um cristal em uma solução supersaturada: em torno dele, vem se espalhar em extensas ramificações, o desenvolvimento mítico no qual consiste a história do pequeno Hans” (1956-57, p. 337). Mas, antes de ser o símbolo chave de onde a articulação significante vai se irradiar, ele é um lugar onde uma coisa que cai do corpo deverá se alojar.

Lacan insiste realmente no fato de que “o cavalo não é o pênis real”. “Ele é o lugar onde, não sem provocar medo e angústia, vem se alojar o pênis real” (Ibid., p. 281). Portanto, ele é um lugar antes de ser um símbolo. Ele participa de uma cessão, e seu caráter de objeto é correlato a um “pathos de corte” (1962-63, p. 248). E este corte se produz numa extração sobre o corpo. Notemos que, de fato, para Lacan, o cavalo é “um objeto completamente diferente dos objetos no sentido pronto. É um objeto que está em um estágio fundador e formador dos objetos, muito diferente dos objetos reais, pois ele é extraído do mal-estar” (1956-57, p. 395, grifo nosso). Isto é, o estofo desse objeto reside em um elemento integrador extraído do corpo ligando-se a um elemento de lalangue. O cavalo não faz só parte do que circula em torno de Hans, ele também é uma “cristalização material” (Lacan, 1975a, p. 16) que carrega a marca da particularidade de seu meio parental, dos cuidados e desejos e carências que particularizam seus pais, sendo que, ao mesmo tempo onde ele relincha, corre, vira, cai, escorrega, ele é a “encarnação” de “tudo o que há de mais exemplar para ele daquilo com o que ele está às voltas (encontro com a ereção) e do qual ele não entende nada, graças ao fato, evidentemente de que ele tem um certo tipo de mãe e um certo tipo de pai” (1975b, p. 13).

A denominação “cavalo”, local da “coalescência da realidade sexual e da linguagem” (Ibid., p. 14), introduz, decerto, uma certa temperança ao nível do corpo. Lacan considera entretanto que a solução fóbica é limitada: o objeto permanece muito preso no campo de retorção entre a mãe e Hans, embolado na significação natural da mordida. É necessário que o falo entre em um sistema em que ele é mobilizável além da mãe.

 

Como Hans o obtém?

A resposta de Lacan é extremamente preciosa. Ele a obtém pela via lógica. Hans mobiliza três noções lógicas: o enraizado, o perfurado e o amovível, e mais além, um “instrumento lógico” que vai, segundo Lacan “trazer a verdadeira solução do problema” (1956-57, p. 266): o parafuso. Resolução, pois é dentro e pela intervenção destas categorias lógicas que o objeto vai se constituir como sendo destacável. A saída encontrada para o problema do pênis real ancorado no corpo se encontra na mobilização de um pequeno corpus lógico que torna pensável a noção do que pode se cedido e do que pode ser trocado. A construção do objeto destacável, que permite a “passagem do objeto enraizado à sua maneabilidade no sentido dos objetos comuns, dos utensílios” (1962-63, p. 107) “acabará por tornar inútil este elemento de limiar que era sua fobia” (1956-57, p. 284).

Notemos que essa construção, essa articulação lógica é mais algo que cunha o objeto como se cunha a moeda, do que uma linguagem sobre ele. É a própria articulação que ataca o real através de uma seleção. O objeto não é, não existe, não surge antes de ser, segundo a bela fórmula de Lacan, “extraído do mal-estar”. E ele se extrai com a intervenção de certo número de elementos que impregnam sua história: cavalo, banheira, charrete, pai, mãe, pinça, perfurador... Estes elementos de sua lalangue são a matéria prima de uma fabricação lógica. A questão do corpo é construída pelo pequeno Hans com e dentro desses elementos, e a construção é nela mesma algo fora do corpo! A ordenação lógica dos significantes “extraídos do mal-estar” é de certa forma o próprio objeto; é ele que “cunha as funções sexuais” (Ibid., p. 397).

Assim, é obtido o que se tinha de obter, arriscando a paranóia: a retirada do órgão real da equação através de sua passagem ao simbólico via construção de um objeto destacável. Mas qual é o destino do objeto assim caído? Um traço da observação do pequeno Hans atraiu a atenção de Lacan desde o início: o objeto recolhido sobre o substrato corporal é rapidamente capturado em uma “máquina formal” (1962-63, p. 249). No Seminário IV ele se diz “capturado pela maneira como esta criança se utiliza, como instrumentos lógicos, de elementos muito elaborados na adaptação humana” (1956-57, p. 284). Hans formaliza sua questão ao trabalhar as “funções lógicas” de certos “instrumentos fabricados” (Ibid.) pela técnica. No Seminário X ele se interessará muito mais pelo destino lógico da parte da carne extraída; ela se põe a “circular no formalismo lógico” para lá funcionar como “substrato e o suporte de toda função da causa” (1962-63, p. 249). Ali “alguns órgãos do corpo, diversamente ambíguos e difíceis de apreender, pois alguns são apenas dejetos, se encontram localizados numa função de suporte instrumental” (1967-68, p. 206) do funcionamento de um organon. Esse organon é um verdadeiro aparelho lógico que inclui a noção de causa e das leis que dela se depreendem. O “wegen dem Pferd”, o “por causa do cavalo” do Pequeno Hans dá um exemplo disso. Lá vemos, em um atalho extraordinário, tanto a passagem do órgão dentro de um organon, quanto a passagem de uma letra de gozo na “coordenação gramatical do significante” (1956-57, p. 317), quanto o momento em que Hans se faz sujeito de uma causa que preside desde então sua pulsão tornada tão intelectual.

Tradução: Catarina Coelho dos Santos.

 

Nota


1. Publicado originalmente sob o título Le Petit Hans et la construction de l’objet hors corps, em La Cause freudienne, Revista da École de la Cause freudienne. Paris: Navarin Editeur, n. 69, p. 31-33.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LACAN, J. (1956-57). Le Séminaire. Livre IV: La relation d’objet. Paris: Le Seuil, 1994.

_________. (1962-63). Le Séminaire. Livre X: L’angoisse. Paris: Le Seuil, 2004.

_________. (1968-69). Le séminaire, livre XVI: D’un Autre à l’autre. Paris: Le Seuil, 2006.

_________. (1975a).Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines (24/11/1975). Scilicet 6/7. Paris: Le Seuil, 1976.

_________. (1975b). Conférence à Genève sur le symptôme. In: Le Bloc-Notes de la psychanalyse. Genève, 1985, n. 5, p. 5-23.

 

Texto recebido em: 20/09/2008
Aprovado em: 30/10/2008