A TopoLógica da verdade
The TopoLogic of truth


Marta Regina de Leão D’Agord
Psicóloga Mestre em Filosofia Doutora em Psicologia Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e pesquisadora junto ao Programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul mdagord@terra.com.br

Vitor Hugo Couto Triska
Psicólogo
Especialização em Psicanálise na Clínica de Atendimento
Psicológico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Mestrando do Programa de Psicologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
vtriska@terra.com.br

Resumo

Este estudo realiza uma leitura do seminário De um Outro ao outro enfocada no método lógico-matemático que ali é utilizado. Busca-se demonstrar que o uso desse método, por Lacan, é um recurso para a explicitação da inconsistência do universo do discurso, isto é, o ponto onde o saber não sabe de si mesmo. Através das noções de falha e falta são abordadas as conseqüências dessa utilização da Lógica. A primeira se refere ao campo da Lógica, a segunda, à estrutura. Um dos resultados deste trabalho é mostrar que o projeto lacaniano de fazer da psicanálise uma ciência acolhe a falha fundamental na Lógica, falha essa que revela a inconsistência do universo do discurso.

Palavras-chave: Psicanálise, verdade, saber, topologia, lógica.

 

The Topologic of truth

Abstract


This study presents a critical view about the Seminar XVI: From an Other to other, centered on the logic-mathematical method there applied. We intend to demonstrate that the use of this method, by Lacan, is a resource to demonstrate the inconsistency of the speech´s universe, the point where the knowledge don´t know itself. Through the ideas of fail and fault the consequences of this use of Logic are aproached. The first one is refered to the Logic field, and the second to the structure. One of this work´s results is showing that Lacan´s project of turning psychoanalysis into a science embraces Logic´s fundamental fail, the fail that reveals the inconsistency of the speech’s universe.

Keywords: Psychoanalysis, truth, knowledge, topology, logic.

 

Introdução

Este estudo realiza uma leitura do Seminário 16, de Lacan (1968-1969), De um Outro ao outro, utilizando o método lógico-matemático para explicitar a inconsistência do universo do discurso, isto é, o ponto onde o saber não sabe de si. Considerando essa questão já presente na hipótese freudiana do recalque originário (Urverdrängung), Lacan trata de dar a tal termo aquilo que compreende como sua função. Para tanto, utiliza uma noção de escrita que coloca em questão uma clivagem discursiva. Portanto, a noção de clivagem (Spaltung) é tomada aqui sob novo enfoque. Se Freud (1927) a utilizou para dar conta de uma divisão entre diferentes “correntes mentais” no eu, agora ela será tratada como processo que divide fala (parole) e discurso. Essa clivagem pode ser considerada um processo que dá origem à ciência moderna com Descartes, mas, se a ciência não se ocupa dessa questão, a teoria psicanalítica do sujeito vem justamente fundamentá-la.

Nessa formalização, que podemos dizer que é inspirada em Russell, a ferramenta lógica busca ser inequívoca ao abordar o campo da linguagem. Este, por sua vez, enquanto discurso, é fundamentalmente equívoco. Assim, para ser inequívoco acerca daquilo que é equívoco em essência, Lacan recorre ao formalismo, isto é, elabora uma escritura. Um discurso, enquanto formalizado como escrita, estará destacado da função da fala. Isso não é afirmar que a psicanálise prescinde da fala, afinal, o sujeito do inconsciente só se coloca em cena pela enunciação. Porém, o que Lacan propõe como discurso psicanalítico, isto é, seu corpo teórico, deve prescindir da fala e, portanto, de sujeito. É por isso que, no processo de formalização dos conceitos freudianos, a escrita operará como clivagem entre fala e discurso, eliminando a possibilidade do erro subjetivo. Lacan parte daí para estabelecer que a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem fala, isto é, um discurso que possa ser sustentado enquanto pura escrita tal qual o da lógica matemática, ou seja, sem sujeito.

Outro ponto que abordaremos trata das conseqüências dessa utilização da lógica para o estudo das propriedades da linguagem. Para tanto, destacaremos as noções de falha e falta. A primeira se refere ao campo da Lógica, a segunda, à estrutura. Aqui podemos considerar que o projeto lacaniano de fazer da psicanálise uma ciência não significa que o discurso psicanalítico possa encerrar a si mesmo, mas antes, acolher a falha fundamental na Lógica que revela a inconsistência do universo do discurso. A ciência de que Lacan se ocupa, isto é, aquela que virá a caracterizar a psicanálise como ciência, só poderá, então, ser considerada não-toda.

Através dessas questões principais veremos perfilarem-se as idéias de saber e verdade na obra lacaniana, secretadas diretamente da noção topológica e lógica do Outro.

 

Lacan e a questão da estrutura

Não podemos falar sem ressalvas que Lacan seja estruturalista, uma vez que ele mesmo deixa em suspenso a adesão a esse rótulo. Contudo, é possível falar no estruturalismo de Lacan, e é isto que nos interessa aqui. Em De um Outro ao outro, quando Lacan identifica o estruturalismo ao que chama de “seriedade” (1968-69, p. 12), podemos entender, primeiramente, um certo rigor científico buscado através da lógica matemática. Lacan é absolutamente inequívoco a esse respeito: “O estruturalismo é lógica por toda parte, até no nível do desejo” (1968-69, p. 73). Encontramos aqui a proposta de uma homologia entre a falha da lógica e a da estrutura do desejo, ponto que retomaremos a seguir. Se há uma estrutura logicamente apreensível desencadeada pelo fato de cada significante identificar-se pela diferença em relação a todos outros, é dizer, que a linguagem em sua essência não significa nada (1968-69, p. 87), então não é senão através da própria lógica que a estrutura linguageira deve ser manipulada. Trata-se, portanto, de um retorno a Freud; retorno que, através da lógica, descobre conexões e idéias latentes de sua obra. É necessário, contudo, compreender de que maneira Lacan está utilizando a lógica em tal contexto.

“Será que a lógica matemática existia, na compreensão divina, antes de vocês serem afetados por ela em sua existência de sujeito? Uma existência que já seria desde sempre condicionada por ela. Esse problema tem grande importância, porque é aí que surte efeito o avanço que consiste em perceber que um discurso tem consequências. Foi preciso que já houvesse alguma coisa atinente aos efeitos do discurso para que nascesse o discurso da lógica matemática. De qualquer modo, mesmo que já possamos identificar numa existência de sujeito algo que possamos ligar retroativamente a um efeito de discurso da lógica nessa existência, fica claro, e deve ser firmemente sustentado, que não se trata das mesmas consequências que as manifestadas desde que foi proferido o discurso da lógica matemática” (1968-69, p. 36).

Do trecho acima escandimos “já seria desde sempre” como aquilo que expressa fundamentalmente a estrutura desse avanço retroativo. No caso, Lacan mostra como um discurso tem consequências, por vezes latentes, que, se devidamente reconhecidas, podem ser formalizadas, como se assim desde sempre o fossem, gerando elas mesmas outras novas consequências. Eis o que caracteriza o método psicanalítico de pesquisa, isto é, o método que segue o modelo da clínica psicanalítica, onde a irrupção de saber inconsciente produz um efeito de descoberta, desvelamento, para o analisante ou, nesse caso, para o pesquisador. Sobre esse efeito que o saber provoca, Lacan (1968-69) se interroga:

“Saber algo não é sempre algo que se produz como um clarão? Ter alguma coisa a fazer com as mãos, saber montar a cavalo ou esquiar, tudo o que se diz da suposta aprendizagem não tem nada a ver com o que é um saber. O saber é isto: alguém lhes apresenta coisas que são significantes e, da maneira como estas lhes são apresentadas, isso não quer dizer nada, e então vem um momento em que vocês se libertam, e de repente aquilo quer dizer alguma coisa, e é assim desde a origem” (Lacan, 1968-69, p. 196).

O que resulta desse retorno a Freud a partir de um estruturalismo manipulado através da lógica é a psicanálise enquanto um discurso sem fala (1968-69, p. 11). Se Lacan buscava um discurso que prescindisse da retórica – muito embora expusesse suas descobertas mergulhado nesta –, isso não tornava seu discurso menos rigoroso, uma vez que fundamentado pelo rigor lógico. Isso significa que se trata de um discurso que se sustenta sozinho tal qual o da matemática, ou seja, sem sujeito ou erro subjetivo.

“O formalismo na matemática é a tentativa de submeter esse discurso a uma prova que poderíamos definir nestes termos: assegurar o que ele parece ser, isto é, um discurso sem o sujeito. [...] Não há, na matemática, nenhum vestígio concebível do chamado erro subjetivo. Mesmo que seja na matemática que se montem aparelhos que permitem, em outros lugares, dar a esse erro subjetivo um sentido mensurável, ele nada tem a ver com o discurso matemático em si. Mesmo quando este discorre sobre o erro subjetivo, não há meio-termo – ou os termos do discurso são exatos, irrefutáveis, ou não o são. [...] formalizar esse discurso consiste em certificar-se de que ele se sustente sozinho, mesmo que o matemático evapore por completo. Isso implica a construção de uma linguagem que é [...] aquela que chamamos de lógica matemática” (Lacan, 1968-69, p. 94).

Além da condição de ser inequívoca, essa linguagem deve também contemplar a condição de ser pura escrita; o que reconhecemos em Lacan no uso dos matemas, por exemplo. Os lógicos compreenderam que o discurso enquanto fala é equívoco, por isso a necessidade de uma linguagem sem equívocos, formal, uma metalinguagem, sintaxe ou, até mesmo, uma estrutura. Ora, mas quando o objeto mesmo que se aborda é a estrutura da linguagem, por que não chamar esse discurso de metalinguagem, uma linguagem sobre a linguagem? Ela existe, claro, a metalinguagem, embora seja um termo que Lacan rechaça por se prestar a certos mal entendidos. Não há linguagem que fale sobre a linguagem sem ser ela mesma a própria linguagem, não existe Outro do Outro ou o verdadeiro sobre a verdade. É por isso que Lacan constrói um discurso através do que chama de redução de material, que é sim uma clivagem discursiva, mas não uma segunda linguagem.

“Redução do material quer dizer que a lógica começa na data precisa da história em que alguns elementos da linguagem, tidos como funcionando em sua sintaxe natural, são substituídos por uma simples letra por alguém que entende do riscado. E isso inaugura a lógica. É a partir do momento em que vocês introduzem um A e um B no se isto, logo aquilo que a lógica começa. É somente a partir daí que vocês podem formular, sobre o uso desse A e desse B, um certo número de axiomas e de leis dedutivas que merecerão o título de articulações metalingüísticas, ou, se preferirem, paralinguísticas” (1968-69, p. 34).

Vimos como se dá o processo de construção de um discurso científico cujas condições é que possa ser escrito e também que esteja livre de erros subjetivos, ou seja, possa se sustentar sozinho. Eis a noção de escrita que Lacan propõe como discurso, isto é, que prescinda de um sujeito para se articular. Uma fórmula física como, por exemplo, “v=d/t”, atesta que a velocidade (v) é o resultado da divisão da distância (d) pelo tempo (t). Nessa fórmula, a redução às letras é pura escrita, não necessita de um sujeito falante que a enuncie para que ela funcione e se transmita e, por isso, tampouco há lugar para um erro subjetivo.

Ora, se o que Lacan reivindica é dar aos termos freudianos sua função, trata-se de considerar a obra freudiana como um discurso do qual ele capta e formaliza consequências, tornando a essência da psicanálise um discurso sem fala. Porém, mais do que isso, demonstra que a própria noção de inconsciente e de sujeito, se são captáveis pela lógica, é porque, em algum nível, já seriam sensíveis à mesma. Tal é o argumento metodológico de Lacan.

É de se esperar que cause certo espanto o rechaço pelo erro, pelo subjetivo, pela fala, uma vez que são exatamente tais questões que Freud nos ensinou a considerar para uma clínica que dê lugar ao inconsciente. Contudo, devemos não confundir a formalização do corpo teórico da psicanálise com a sua prática, pois é aí que acontece a cisão oriunda da clivagem discursiva vista anteriormente. Colocamos, sim, o lugar do pesquisador como homólogo ao do analisante, ambos sujeitos, uma vez que é a produção pelo saber inconsciente que orienta suas aprendizagens. Há equiparação nas pesquisas que ambos realizam, experiências que não acontecem senão de maneira singular. O que mantém o analisante como o sujeito de um discurso é a escuta que se mantém aberta para tornar da fala uma demanda, isto é, que sustenta a falta causa do desejo. Por outro lado, o que apaga o lugar de sujeito numa pesquisa é o momento da clivagem discursiva, redução do material de sua descoberta.

De acordo com o rigor lógico, trata-se, portanto, de uma produção de saber que é, ao mesmo tempo, causa de um discurso e que, principalmente, torna-se uma escrita (tal qual a compreendemos neste contexto). Não carecemos das presenças dos sujeitos Freud e Lacan para que seus discursos continuem a nos transmitir e provocar aprendizagens, e isso só se dá quando tomamos suas obras como discursos capazes de produzir efeitos.

Mesmo que se trate de um discurso sem sujeito, a logicização do discurso da psicanálise nem por isso deixa de abordar aquilo que é o propriamente fundamental para a noção de sujeito: a falha. O que Lacan nos convoca a buscar não é um discurso que não trate da falha, mas antes um discurso capaz de ser inequívoco acerca da falha, que a sustente e garanta seu lugar em todo momento. Para isso, é imprescindível compreender que um discurso que sustente a si mesmo não é o mesmo que um discurso que apreenda a si mesmo, pois, como veremos logo a seguir, é na tentativa de totalizar o universo de discurso que a falha da Lógica acusa uma falta no Outro.

 

A falha Lógica e a falta do Outro

Há uma falta no universo de discurso que pode ser captada na prática estrutural. Seguiremos Lacan no uso da teoria dos conjuntos para demonstrá-la.
Colocando em relação os termos S, sujeito, e A, o Outro, veremos algo de interessante ao tentar incluí-los ambos em A. A questão é apreender o que acontece quando fazemos a tentativa de que o Outro seja totalizado, é dizer, contenha a si mesmo. Podemos demonstrar graficamente como o processo se dá.


Figura 1: A contém os elementos S e A, o que escrevemos A = {S,A}
Figura 2: A = {S, [S,A]} Figura 3: A = {S, [S,(S,A)]}

Nas figuras 2 e 3 colocamos S e A, que são os elementos de A, dentro de A, fazendo notar que é um processo infinito, uma vez que poderemos sempre substituir A pelo par S - A. Podemos incluí-lo nele mesmo infinitas vezes na tentativa de que contenha a si, porém esse exercício mostrará que não é possível dar termo final a essas repetições. É isso que Lacan toma para demonstrar posteriormente o que considera uma falha lógica decorrente do paradoxo que o exemplo acima apresenta, a saber, o próprio paradoxo de Russell. Quer pensemos no catálogo que contém todos catálogos que não contêm a si mesmos, ou mesmo no barbeiro que barbeia todos homens que não se barbeiam, a insuficiência é a mesma, isto é, esses paradoxos demonstram a mesma falha no tecido lógico. Se colocado dentro dele mesmo, A deverá estar dentro e fora de si, conter e estar contido em si mesmo simultaneamente. Ou melhor, o que se divide aparentemente em duas faces teria que ser apenas uma, como numa fita de Moebius, assim como o dentro e o fora estarão em continuidade, como numa garrafa de Klein. Adiante, recorreremos à topologia das superfícies para apreender esse tipo de estrutura onde dentro e fora são noções que devem ser descartadas, uma vez que se encontram em continuidade.

Ao deparar-se com a impossibilidade que lhe oferece o paradoxo de Russell, Lacan infere que, se a Lógica falha, é porque, em algum lugar, o próprio universo de discurso é insuficiente. A Lógica ao falhar, atesta uma falta no Outro. Há um lugar inapreensível para o saber. É para operar com o lugar dessa falta que Lacan forja o conceito de objeto a (1968-69, p. 45):


Figura 4: a, o furo que surge em A na tentativa de incluir-se.

O ponto vazio da estrutura, o objeto a, é um lugar êxtimo – ao mesmo tempo íntimo e radicalmente exterior. Segundo Lacan (1968-69, p. 241), isso demonstra que o Outro tem uma estrutura apreensível pela topologia das superfícies. Usaremos o toro para expressar a topologia dessa estrutura. No toro, o espaço do seu vazio central é o mesmo que o circunda, conforme acusa posição da barra da figura adiante. O que está em seu centro interior está o mesmo espaço que lhe é absolutamente externo.

Veremos, a seguir, como a falta que serve de cerne à estrutura do Outro fundamenta a própria noção de sujeito. Invariavelmente, a cadeia significante onde ele, sujeito, se articula é um processo que desencadeia a queda do objeto que sustenta essa falta, lugar inocupável a qualquer significante. Lacan assim situa essa questão:

“Essas escalas, não de incerteza, mas de falhas na textura lógica, podem permitir-nos apreender o estatuto do sujeito como tal, encontrar um apoio para ele e, numa palavra, conceber que ele possa se satisfazer com sua adesão à própria falha situada no nível da enunciação. Ao abordar do exterior da lógica o campo do Outro, nada jamais nos impediu, ao que parece, de forjar o significante pelo qual se conota o que falta na própria articulação significante” (1968-69, p. 82 e 83).

Destacamos do trecho acima a questão da identificação da falha ao nível da enunciação. É pela inconsistência do Outro que há a produção de uma perda em toda enunciação, o que faz com que toda fala possa vir a ser uma demanda. Lacan inclusive propõe no ano seguinte de seu seminário (1969-70), ao posicionar o objeto a no lugar de agente do discurso do analista, que a função dele, analista, é a de sustentar o lugar da inconsistência do universo de discurso.

“Que o grande A como tal tenha em si essa falha, decorrente de não podermos saber o que ele contém, a não ser seu próprio significante, é a questão decisiva na qual desponta o que ocorre com a falha do saber. Na medida em que é do lugar do Outro que depende a possibilidade do sujeito, no que ele se formula, é das coisas mais importantes saber que o que o garantiria, ou seja, o lugar da verdade, é, em si mesmo um lugar vazado” (Lacan, 1968-69, p. 58).

Se há, então, um lugar que se mantém impreenchível pelo significante, como o conjunto vazio que sempre existirá dentro de cada outro conjunto, a falta significante é uma necessidade estrutural que a lógica demonstra.

Ainda no seminário De um Outro ao outro, Lacan afirma que não se pode situar o significante com o qual o sujeito se identificaria em último termo, pois tal significante é idêntico ao próprio lugar onde o discurso falha. Assim, não há identificação simbólica plena, pois Lacan coloca este significante fora do universo do discurso. Há, então, comparação entre o significante onde o sujeito se significaria (S2) e a falha do discurso. É especialmente importante tal ponto, pois, se o sujeito está representando entre os significantes S1 e S2 (o que o representa e o que o “afanisa”, respectivamente), como poderia sê-lo pela falta no Outro, uma vez que ela articula a falta de significantes? À guisa de esclarecer a questão, veremos como o significante do saber, S2, se situa logicamente em relação ao Outro.

Consideremos que cada elemento em si já é um subconjunto capaz de conter outros elementos-conjuntos. Consideremos igualmente que S2 é o conjunto que contém todos os conjuntos: a) que não contêm a si mesmo e b) que estão incluídos em A; no caso, os significantes Sx, Sy e Sz são os elementos que satisfazem essas duas condições. Temos assim dois pontos: a) se S2 não está incluído nele mesmo, ele necessariamente deveria conter-se, porém b) se ele contém a si mesmo, isso não está de acordo com a função de que contenha apenas elementos que não contém a si mesmos, e, logo, ele deverá estar fora, o que implicaria que ele contivesse novamente a si mesmo e assim por diante. Ora, se para estar contido em S2 um elemento deve também estar incluído em A, a conclusão a qual chega Lacan (1968-69, p. 74) é a de que S2 não está contido em A, muito embora seus elementos estejam. É o que ilustra com a figura seguinte.

 

O que se articula como significante deve, então, deixar um conjunto obrigatoriamente fora do Outro, ainda que relacionado com a conjunção. Tal conjunto é S2, o saber enquanto elemento que reuniria todos os outros, desde que não pertencentes a si mesmos e representáveis no Outro.

“Muito precisamente, diremos que, em última instância, o sujeito, como quer que tencione subsumir-se – seja por uma primeira afirmação do grande Outro como incluindo a si mesmo, seja, no grande Outro, limitando-se aos elementos que não são elementos deles mesmos –, não pode ser universalizado. Não há definição englobante em relação ao sujeito, nem mesmo sob a forma de uma proposição que diga que o significante não é um elemento dele mesmo. Isso demonstra, igualmente, não que o sujeito não está incluído no campo do Outro, mas que o ponto em que ele se significa como sujeito é externo, entre aspas, ao Outro, ou seja, ao universo do discurso” (1968-69, p. 74).

O sujeito do inconsciente resiste a significar-se, uma vez que o ponto que o sustentaria é “exterior” ao Outro. Diríamos que, na verdade, se trata de um ponto antes êxtimo do que exterior. Concluímos que, se o sujeito é representado por um significante para outro, sendo que o segundo é exterior ao universo de discurso, ou melhor, corresponde a sua própria falta (como o demonstra o ponto êxtimo do toro), o próprio sujeito não atinge uma significação ou identificação simbólica plena.

Como conseqüência da constatação simples de que a diferença do significante reside em todos os outros, é possível, então, demonstrar que através da lógica se descobre uma insuficiência de saber no Outro. O saber não pode saber a si mesmo, assim como não existe saber absoluto que o Outro possa portar. O elemento que representa essa impossibilidade, S2, é identificado por Lacan ao Urverdrängung freudiano. O recalque primordial, momento hipotético postulado por Freud como o primeiro de todos recalques, é apresentado logicamente por Lacan como um saber tão primeiro e fundamental quanto inacessível em sua essência. Lacan (1968-69, p. 197) coloca que o saber perdido está na origem do que aparece de desejo na articulação de qualquer discurso e, dessa forma, identifica essa perda à função do objeto a.

Vimos que o Outro adquire características logicamente determináveis que se combinam com uma compreensão topológica do mesmo, ou seja, há uma noção de falha lógica que se conjuga com a de buraco (trou) na topologia das superfícies. É um limite que resulta da própria estrutura do significante, uma falta que Lacan nos permite operar com o objeto a. Vimos também que o elemento saber encontra uma impossibilidade de colocar-se satisfatoriamente em relação ao Outro, denotando assim o ponto faltante do universo do discurso como um saber perdido, o Urverdrängung. A partir dessas conexões, abordaremos adiante as noções de desejo e verdade, lembrando que essa última é relacionada a um lugar “vazado” (no francês troué).

 

Desejo e Verdade

A perda de saber promovida por toda articulação significante é apresentada como homóloga à mais-valia de Marx, o mais-de-gozar. Isso promove a idéia de que o saber é um meio de gozo. Assim, se há um saber que não se sabe, mas que se supõe existir – eis aqui o fundamento do sujeito suposto saber –, há igualmente um gozo impossível, hipotético e, principalmente, perdido em sua origem. O desejo é uma condição do sujeito dividido, ou seja, é a sua própria divisão causada por a enquanto perda (Lacan, 1968-69, p. 332). É a reposição da perda fundamental ao Outro que Lacan propõe como o que caracteriza a estrutura da perversão. É, então, o saber que permite montar a cena que promove, no Outro, o gozo perdido; uma restituição. A Verleugnung, portanto, ao desmentir (ou recusar) a castração, trata de negar a falta de saber no universo de discurso.

Vimos anteriormente que tal perda de saber pode ser identificada àquilo que encontramos em Freud como o recalque primordial, mas, além disso, Lacan também propõe buscar aí o desejo. Para isso, o autor nos convoca a pensar na falha do dito, ou seja, o desejo aparece nos tropeços do discurso, onde ele não mais se apreende.

A interpretação freudiana dos sonhos pode ser relida. Ela revelaria o desejo na medida em que se reduzisse a uma frase cujo efeito está antes no que falha do que no que produz de sentido (Lacan, 1968-69). Para que o desejo esteja em questão, coloca-se o acento no que se articula como queda de saber através do sonho, não naquilo que ele pode produzir de sentido ou que ele pode vir a significar. Essa frase onde o sentido claudica teria a característica de uma enunciação que seria dizer puro (ou semi-dizer). Se o desejo é causado pela falta, ele só será desencadeado por um dizer que dê lugar à mesma, e é o fato de que o Outro é inconsistente enquanto todo que permite esta modalidade de dizer. “Do dizer, o desejo é apenas sua desinência, e é por isso que primeiro essa desinência deve ser estreitamente situada no puro dizer, ali onde somente o aparato lógico pode demonstrar sua falha” (Lacan, 1968-69, p. 73). No ano de seminário seguinte, em O Avesso da Psicanálise, é proposta a função do semi-dizer como única forma acessível da verdade, isto é, a verdade seria apenas meio-dita porque além da metade não haveria mais nada a dizer (1969-70, p. 49). Novamente, Lacan (1968-69, p. 65) afirma: “O que não se pode dizer do fato é designado, porém no dizer, por sua falta, e é isso que constitui a verdade”. O dizer que dá lugar a esse vazio, ou seja, que faz o saber funcionar como verdade, é igualmente o que coloca o desejo em questão. Eis o que podemos destacar como um ponto importante do trabalho do psicanalista segundo Lacan – um dizer esvaziado de sentido, ou seja, um efeito de verdade enquanto queda de saber que assim designa o desejo. O trabalho do analista seria, portanto, confinar-se à enunciação em semi-dizer, de forma que faça o saber funcionar como verdade (Lacan, 1969-70, p. 50).

A incitação ao saber que caracteriza o ato psicanalítico conduz o analisante à suposição de saber total ao Outro, isto é, a obediência à regra de falar tudo o que lhe ocorre faz com que o analisante fomente a suposição de que, seja o que for dito, o Outro saberá do que se trata. Cabe ao analista sustentar esse lugar a partir da falta (e aqui está em jogo o desejo do analista), para assim fazer com que essa incitação ao saber conduza, através do semi-dizer, à verdade (Lacan, 1968-69, p. 333). Faz-se a ressalva de que este é o modelo da neurose, ficando em aberto a questão do saber e da verdade no tratamento de outras estruturas.

 

Considerações finais

Atravessamos o que acreditamos ser um dos fundamentos do ensino de Lacan, a saber, a elaboração formal que aproxima a topologia da lógico-matemática, buscando demonstrar de que maneira conceitos como objeto a, Outro e saber estão calcados numa gênese caracterizada pelo rigor. Além disso, pudemos tirar algumas conclusões breves, mas que nos levam ao nó central onde encontramos ética e técnica psicanalíticas conjugadas, ou seja, abordar formalmente o lugar de onde opera o analista em relação ao desejo e à verdade. Ora, pretendemos mostrar aquilo que Lacan sempre afirmou – que o material que apresentava em seu seminário, por mais enigmático, alegórico ou complexo que aparentasse ser, não deixa de ser consistente e, principalmente, não é sem relação com a prática da clínica psicanalítica.

A seguir, propomos uma pequena ilustração que pensamos poder representar a estrutura da relação da teoria com a clínica. É uma representação cujo ponto central, um furo nos campos da clínica e da teoria, ocupa o mesmo espaço que é externo a ambos os campos. É um ponto êxtimo tal qual foi representado anteriormente na figura do toro. O quadrado que cerca a figura serve apenas para enquadrar o espaço que estamos representando, mas não significa de forma alguma que esse espaço seja imaginariamente limitável. Muito pelo contrário, como pretendemos esclarecer logo adiante, é um espaço imensurável. O que a figura representa é uma estrutura, isto é, o que temos abaixo é a figura de uma estrutura abstrata, não a estrutura mesma. Não se considera, portanto, o tamanho ou a forma dos campos, tampouco a distância entre as linhas. A abstração que nos permitirá abordar tal estrutura está, portanto, num espaço não-euclidiano. A figura da estrutura, porém, está euclidianamente colocada assim:

 

Numa primeira vista, vê-se o campo da teoria contendo o campo da clínica. Porém, se considerarmos a estrutura que a figura apresenta, veremos que não é exatamente isso o que acontece. O buraco central no campo da clínica é, ao mesmo tempo, um buraco no campo da teoria. Porém, tal ponto é êxtimo e isso significa que ele está em continuidade com o espaço que é externo aos campos da teoria e da clínica, isto é, um espaço inapreensível.

O que é mais íntimo à clínica será radicalmente exterior ao campo teórico. Existe uma teoria sobre a clínica, mas teoria impossibilitada de ser totalizada devido a inapreensibilidade daquilo que se encontra no cerne da prática clínica, isto é, a falta no universo de discurso que fundamenta a estrutura inconsciente. Não é objetivo da pesquisa psicanalítica produzir saberes que preencham completamente o espaço faltoso, isto é, que totalizem a prática clínica. Qualquer tentativa de fazê-lo se mostrará insuficiente e acusará uma inconsistência (assim como mostramos anteriormente no exemplo onde A tenta conter a si mesmo). A teoria psicanalítica sustentará o lugar da clínica apenas se puder garantir o lugar desse buraco, homólogo ao pequeno a. Ao mesmo tempo, é dessa mesma inconsistência que depende a possibilidade da pesquisa em psicanálise. É tal ponto êxtimo, enquanto um horizonte inalcançável, que permite a produção de novos saberes. Conforme vimos anteriormente, Lacan identifica a verdade a um lugar esburacado. Ora, a busca por uma verdade sobre o inconsciente ou até uma teoria psicanalítica que seja a última, a ideal e verdadeira, esbarraria no impossível que é o Real da estrutura. E assim Lacan coloca essa impossibilidade: “Essa verdade é o que interrogamos no inconsciente como falha criadora do saber e ponto-de-origem do desejo de saber. Esse saber está como que condenado a nunca ser senão o correlato dessa falha” (Lacan, 1968-69, p. 267).

Não há saber que obture o lugar de falta onde está colocada a verdade. Se a psicanálise é passada adiante enquanto uma teoria que é um conjunto de saberes, o lugar da verdade, a falha criadora para Lacan, fica negado. Assim, a transmissão do que é mais próprio da psicanálise, a saber, o impossível do inconsciente, esta transmissão não se dá. A transmissão só acontece, portanto, se a verdade está colocada na mesma.

Vê-se durante o avanço de Freud como em vários momentos a teoria teve que ser revista, assim como sua técnica e método clínicos foram esbarrando em impossibilidades que promoveram suas modificações. Todo avanço de Freud se deu através de tropeços, falhas. Por exemplo, no princípio, a insuficiência da hipnose conjugada com a sugestão foi modelando o método catártico para, logo após, aparecer o artifício técnico da pressão com as mãos. A impotência da técnica, então, de certa forma, não deixa de refundar a clínica. Tais mudanças exigiram reflexões teóricas ensaísticas que foram dando corpo à metapsicologia freudiana. O que fazemos, então, ao propor a estrutura da figura acima, é uma tentativa de abordar e formalizar operações que o próprio Freud fundou em sua descoberta, e com as quais esteve de acordo durante o desenvolvimento subseqüente da psicanálise.

Esclarecer o fundamento, ou melhor, a estrutura dos conceitos trabalhados por Lacan é fazer uma crítica (na acepção kantiana), isto é, supor um movimento no qual saber e verdade dialogam, sem que o primeiro recubra completamente a segunda. Pesquisar a partir da obra de Lacan é não se limitar aos aforismos, mas considerar a elaboração subjacente aos seus conceitos. Isso permite um desvelamento, evitando que o ensino desse psicanalista permaneça nebuloso; assim como impede um uso dogmático e encerrado de uma obra cuja principal característica talvez seja o diálogo aberto com inúmeras áreas da ciência.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Texto recebido em: 03/01/2008
Aprovado em: 25/06/2008