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 O Homem dos Ratos

  
 


Esthela Solano-Suarez
Psicanalista
AME
Membro da École de la Cause Freudienne/França
Membro da Escuela de Orientación Lacaniana/Argentina
Membro da New Lacanian School
Membro da Associação Mundial de Psicanálise

SOLANO-SUAREZ@wanadoo.fr

 

 Resumo

Venho lhes propor uma leitura do caso de Freud, “O homem dos ratos”. Todo pensamento obsessivo que dê lugar a alguma construção, não importando o quão louca ela seja, será sempre ligada à sexualidade, a neurose obsessiva comporta uma erotização do pensamento. Lacan expõe que um sintoma obsessivo consiste em uma forma verbal, tendo por objeto uma destruição que se cumpre por intermédio da própria articulação da forma verbal, isto é, pela via do significante. O obcecado está solidamente instalado no significante. Não se deve nunca temer, nos informa Lacan, que uma neurose obsessiva possa escorregar na direção da psicose.

Palavras-chave: clínica psicanalítica, neurose obsessiva masculina, o caso do Homem dos ratos, diagnóstico diferencial, tratamento.

 

 




 The man of the rats
   


       Abstract

I come to propose a reading of Freud’s case “The man of the rats”. All obsessive thought that gives place to some construction, no matter how crazy it is, will always be linked to sexuality. The obsessive neurosis holds an eroticism of the thought. Lacan exposes that an obsessive symptom consists of a verbal form, having as object a destruction that performs through the own articulation of the verbal form. That is, through the way of the significant. The obsessed is solidly installed in the significant. One should never fear, informs us Lacan, that an obsessive neurosis can slip in the direction of psychosis.

Key words: Psychoanalytical clinic, male obsessive neurosis, the case of the man of the rats, differential diagnosis, treatment.

 

 

Venho lhes propor uma leitura do caso de Freud, “O homem dos ratos”. Eu penso que consegui apreender bem os ratos e posso lhes demonstrar sua consistência. Vou me referir ao caso publicado nas Cinq Psychanalyses e no Journal d’une analyse, que compila as anotações feitas por Freud ao final das sessões. Ao final não, durante! De fato, não é Freud quem dizia que: “Eu não aconselho aos psicanalistas que tomem notas do que dizem os pacientes durante o tempo da sessão; a distração da atenção do médico faz tão mal aos pacientes que não compensa ter uma exposição tão mais detalhada das observações” (Freud, 1979, p. 202, n.1). Este tratamento durou onze meses; pode-se dizer que produziu efeitos terapêuticos rápidos.

É possível também referir-se aos aportes teóricos de Freud sobre a neurose obsessiva posteriores a 1896 no “Manuscrit K” (1956) e no texto “Nouvelles observations sur les psychonévroses de défense” (1973).

 

Observações sobre um caso de neurose obsessiva: o Homem dos ratos

O paciente teme que coisas terríveis aconteçam com seu pai e uma dama venerada. Ele está sujeito a impulsos obsessivos, tais como fazer mal à dama, que lhe acometem quando ela não está presente; mas estar longe dela lhe faz bem. Ele se impõe interditos e se atrasa em seus estudos de direito, pois sofre de inibições ligadas ao combate contra seus sintomas. Ele vem se consultar com Freud após ler a Psychopathologie de la vie quotidienne. Pode-se afirmar que foi seu encontro com o sujeito suposto saber, que desembocou na hipótese de que seus sintomas querem dizer alguma coisa.

 

A neurose infantil

Primeira sessão:

O paciente fala desde a primeira vez de sua vida sexual. Seus primeiros impulsos remontam aos quatro ou cinco anos de idade quando tocou a Senhorita Robert. Ela tinha “órgãos genitais curiosos”, segundo ele. Esta experiência deixou nele um rastro indelével: a curiosidade de ver mulheres nuas. Mais tarde, a mesma coisa lhe aconteceu com a Senhorita Rosa. Suas lembranças remontam à idade de seis anos e são muito nítidas: “eu sofria de ereções”, ele nota. Podemos supor com Lacan que até aí ele ainda não tinha subjetivado suas primeiras experiências sexuais. Estas primeiras ereções fazem furo no nível do sentido e ele se queixa à mãe, pois alguma coisa, vivida como estranha, lhe escapa. É o encontro com a realidade sexual que se mostra traumático. Lacan, em sua “Conférence sur le symptôme” (1985), proferida em Genebra, diz que o encontro com a ereção não é auto-erótico, é tudo o que há de mais hétero, é traumático. Em uma de suas Conférences Américaines (1976), ele diz a respeito de Hans que seu pênis parece-lhe pertencer ao exterior, pois ele o experimenta como sendo estranho a seu próprio corpo.

Ernst Lehrs suspeitava de que o fenômeno bizarro das ereções teria uma relação com seus pensamentos e sua curiosidade sexual, isto é, com sua fantasia de ver mulheres nuas, fantasia que sustentava seu desejo de voyeur, mas também seu desejo de saber. Ele temia que seu pai morresse se pensasse em coisas sexuais, portanto procurava afastar estes pensamentos. Ele supunha que pronunciava seus pensamentos em voz alta, pois tinha a impressão de que seus pais os conheciam, sensação esta, que se origina no sentimento de exterioridade à linguagem que todos nós conhecemos muito bem.

Freud considera que tudo isso não é o início da doença e, sim, a doença propriamente dita. Toda a neurose obsessiva está aí na neurose infantil, que comporta, a título de sintoma, o eixo da neurose posterior:

  • A pulsão escópica na criança traz ao primeiro plano o gozo do olhar tomado na fantasia de ver mulheres nuas, fantasia que sustenta o desejo.

  • Uma apreensão vem se opor ao desejo sob a forma de uma construção lógica: “se... então”, “se eu tenho o desejo de ver uma mulher nua, então meu pai deverá morrer”.

  • Do registro da inquietante estranheza, a angústia se impõe ao sujeito como afeto que causa sofrimento. Emerge então, em defesa, a necessidade de cometer atos que se opõem à idéia geradora de obsessão. Freud deduz daí que podemos encontrar em um garotinho de seis anos todos os elementos da neurose. Ele assinala que, quando a neurose obsessiva começa em tão tenra idade, convém, quando se recebe alguém que apresenta obsessões, que se procure o núcleo infantil da neurose para assegurar-se que é de fato questão de um sintoma obsessivo.

Uma outra característica seria uma atividade sexual precoce e infalível. Esta não falta na histérica, mas cai no esquecimento devido ao recalque.

 

A grande apreensão causadora de obsessão

A segunda sessão é dedicada à elucidação do sintoma obsessivo tal qual ele se manifestou na idade adulta.

Ernst chega dizendo a Freud que vai lhe relatar o evento que o estimulou a procurá-lo, acontecido dois meses antes de sua vinda, no mês de agosto, num momento em que ele deveria cumprir obrigações militares. Dois eventos de pura contingência ocorreram: de um lado, a perda de seus óculos durante uma manobra, e a comunicação por telégrafo ao seu oculista, em Viena, solicitando a reposição; de outro, o encontro com o “capitão cruel”. Quando ele chega ao momento em que de fato deve relatar a história que ouviu, seu discurso se torna confuso, se expressa de forma muito obscura e guarda no rosto uma expressão complexa que Freud define como o testemunho do “horror de um gozo por ele mesmo ignorado”. Ele não consegue pronunciar o termo “ânus” e é Freud que o nomeia em seu lugar. Ele explica também que, quando escutou a história, um pensamento lhe veio, que ele refutou com violência como lhe sendo estrangeiro: “isto vai acontecer com uma pessoa que me é querida”. Simultaneamente ao pensamento, emerge a sanção: para que o pensamento não se realize, ele deve realizar alguma coisa.

A partir daí, ele trava um combate sem trégua contra o pensamento e é submetido à sanção. Ele se apóia em duas fórmulas de defesa: uma palavra – aber (“mais”, em alemão) – que ele pronuncia ao mesmo tempo em que faz um gesto de rejeição, e palavras que se dirigem a ele mesmo: “Ora vejam, o que você vai imaginar!” As pessoas às quais o suplício deve ser infligido são o pai, que está morto há muito tempo, e a dama por quem é apaixonado. Não é ele quem suplicia; o suplício é impessoalmente infringido (vai acontecer com...).

Ao mesmo tempo, encena-se o “drama do sintoma obsessivo”: o cenário da dívida impagável.

De fato, em seguida à encomenda dos óculos, no dia seguinte, o capitão cruel lhe remete o pacote. Ele lhe indica que deve reembolsar o tenente A. Isto tem sobre Ernst um efeito devastador: ele acredita que não deve devolver o dinheiro senão o suplício dos ratos acontecerá. A isto se soma um comando: deve devolver o dinheiro ao tenente A. Portanto, não pode se mexer!

A história é confusa, vaga, contraditória e imprecisa. Ernst está em um estado de estupor e de confusão tal que, em dado momento, chama Freud de: “Meu capitão”.

Isto demonstra que um neurótico obsessivo, preso em um transe obsessivo grave, pode parecer confuso sem que todavia possamos concluir que é um caso de psicose.

Freud fica imbuído do desejo de saber e estuda o caso evitando entendê-lo precipitadamente. O que importa, do ponto de vista de um diagnóstico diferencial, são os detalhes: de fato, o capitão cruel se enganou. Foi a agente dos correios quem pagou a encomenda e não o tenente A. Ernst, todavia, promete restituir o dinheiro a A: começa aí a comédia da impossível restituição do dinheiro.

 

A falsa conexão afeto/pensamento

Seguem duas sessões sobre o pai, morto quando Ernst tinha vinte e um anos, em relação ao qual ele se sente culpado de negligência. Após sua morte, ele se sente invadido por um sentimento de descrença: ele imagina constantemente que seu pai está vivo. Um ano e meio mais tarde, em seguida à morte de uma tia, ele se lembra de sua negligência e esta se torna uma fonte infindável de culpabilidade e de recriminações: ele se toma por um criminoso. A conseqüência é uma grave inibição intelectual. Freud emite a hipótese de um fantasma em relação com a morte do pai que se prolonga no além, mas encontra os afetos ligados às recriminações desproporcionais em relação ao conteúdo: estas recriminações e esta culpabilidade não combinam. Existe um desacordo entre as representações e os afetos; o afeto deve corresponder a um outro conteúdo; é necessário supor uma falsa conexão afeto/pensamento. Não se trada de desculpabilizá-lo, mas, isto sim, de encontrar a verdadeira razão. Em toda neurose obsessiva ocorre este tipo de má conexão lógica.

Freud pesquisa então um desejo infantil: o desejo da morte do pai. O Homem dos ratos se insurge, se defende, afirma que adora seu pai, que o ama acima de tudo. Freud lhe explica que este amor tão intenso é a condição de recalque do ódio, cuja fonte reside nestes desejos sexuais infantis para os quais o pai era um obstáculo. A despeito de sua recusa da hipótese de Freud, Ernst reconhece que, mesmo depois da morte do pai, ele vai muito mal. Freud tenta então reconstituir a causa contingente do desencadeamento da neurose. Enquanto na histérica, a causa ocasional cai no esquecimento, no obsessivo ela é conservada na memória, mas destituída de sua carga afetiva. A contingência veio movimentar os significantes de sua história e, em particular, antes de seu nascimento, aqueles relativos à escolha de parceiras de seu pai. Este era apaixonado pela filha de um açougueiro, à qual renunciou para casar-se com a filha de um industrial do qual se tornou empregado, o que lhe permitiu constituir fortuna. Isto coloca para seu filho a questão da causa do desejo que une um homem a uma mulher, dos antecedentes lógicos do objeto a naquilo que uniu sua mãe e seu pai. Após a morte de seu pai, sua mãe, um pouco alcoviteira, procura fazê-lo se casar com uma mulher rica, mesmo ele amando uma mulher pobre, a dama à qual seu pai não gostaria de que ele se associasse de forma duradoura. Se ele persistir em seu amor, Ernst desagradará ao pai; a questão para ele é, então, a de contrariar ou não a vontade paterna.

 

O ódio inconsciente do pai

Foi então que a transferência veio ajudar a decifrar o enigma: na escada que leva ao consultório de Freud, o homem dos ratos cruza com uma jovem; ele imagina que é a filha de Freud e que este quer obrigá-lo a casar-se com ela. Segue um sonho, no qual uma jovem tem fezes no lugar dos olhos: é questão de se casar com uma jovem não pelos seus belos olhos, mas pelo seu dinheiro. Temos aí dois objetos causa do desejo: o olhar e o dinheiro. A causa do desejo do pai é o dinheiro.

No momento em que Freud lhe faz esta interpretação, Ernst se enfurece: em um acesso de intenso desespero, ele lança injúrias a Freud. Tomado de assustadora angústia, ele protege sua cabeça contra os golpes que Freud deveria lhe dar. Foi então que ele elucidou um ritual do qual nunca tinha falado. Na época em que fez seus exames, ele gostava de imaginar que seu pai estava vivo. Ele estudava até tarde da noite. Entre meia noite e uma da manhã, ele abria a porta de entrada e se contemplava diante do espelho com o pênis ereto, sob o olhar do pai morto. Ele satisfazia seu pai ao estudar até tarde, mas ao mesmo tempo se entregava a um ato de subversão fálica diante desse.

Freud insiste com ele no fato de que ele provavelmente se masturbava quando tinha seus seis anos e que provavelmente foi severamente castigado pelo seu pai.

Nesse momento, Ernst encontra a seguinte lembrança: muito pequeno, no momento da morte de sua irmã, ele cometeu um ato grave pelo qual seu pai lhe bateu. Em resposta, ficou furioso e resolveu injuriar seu pai. Por não conhecer nenhuma palavra ofensiva, ele lhe deu todos os nomes de objetos que lhe passavam pela cabeça: “Você lâmpada! Você toalha! Você prato!” Ao que o pai declara: “Esse pequeno ou se tornará um grande homem ou um grande criminoso.” É neste momento que seu caráter se modifica: de colérico que era, ele se torna covarde.

As ofensas sujas dirigidas a Freud assim como o ritual fazem o sujeito admitir seu ódio inconsciente do pai; se esclarece o enigma da obsessão pelos ratos.

 

O neurótico obsessivo quer a destruição do desejo do Outro

O que é este ódio inconsciente? No Seminário V, As formações do inconsciente (lições XXVI, XXVII, XXVIII), Lacan expõe que um sintoma obsessivo consiste em uma forma verbal, tendo por objeto uma destruição que se cumpre por intermédio da própria articulação da forma verbal, isto é, pela via do significante.

A destruição, para o obsessivo, se cumpre de fato pela via da anulação. O obsessivo quer anular o desejo do Outro. Seu desejo se encontra na dependência do desejo do Outro e quer destruí-lo pois, para ele, representa um desejo de gozo. Ele quer destruir tudo em seu entorno e o faz através de “um ataque silencioso, uma usura permanente, que tende a resultar no Outro” (1957-58, p. 468). Destruindo o desejo, ele se protege dele e o mantém em um horizonte de impossibilidade. Esta anulação do desejo por intermédio do significante supõe, para ele, uma inscrição no quadro do simbólico, pois não se pode anular nada que não esteja inscrito no simbólico. Ela é a presa do significante dentro de um parêntesis, para dizer o que está dentro do parêntesis, não é, como na fórmula de negação: “não é a minha mãe”.

É sempre dessa forma que o obsessivo anula o desejo e ele anula também tudo o que se conecta em volta, o que circunda este desejo. Por fim, ele acaba por anular a própria palavra; isto vai até a anulação da demanda que comporta toda palavra.

Por que ele é forçado a anular toda a palavra?

Isto é ligado a uma singularidade de uma relação com a demanda, que comporta sempre, no horizonte, uma demanda de morte. Uma relação como tal com a demanda comporta a necessária destruição do local onde toda a demanda pode ser formulada, o local do Outro. É questão de destruir o local onde se articula toda enunciação possível mas ele, como sujeito, é um efeito deste lugar. Ao destruir a articulação significante, ele vai apagar o local de onde ele poderia se sustentar como sujeito; donde, o sentimento de despersonalização, de desarticulação da cadeia significante que o acomete às vezes. Como ele não saberia se manter como sujeito se o Outro fosse efetivamente anulado, o obsessivo é levado a exercer a ação contrária: proteger o Outro, preservá-lo. O trabalho intelectual, o exercício de bem dizer, testemunham esta preservação da articulação significante.

No tangente ao tema da blasfêmia e da injúria, Lacan expõe que é questão de rebaixar um significante eminente ao nível de um objeto comum: Deus, o pai, o analista. É um ataque ao Phi, signo o desejo do Outro, insígnia do Outro; é necessário depreciá-lo, trazê-lo ao nível de objeto de uso e de troca, transformar a insígnia do Outro em dejeto.

 

A obsessão pelos ratos

Freud sublinha a função eminente da contingência no gatilho da neurose obsessiva. O tratamento permite encontrar o erro do pai, um pecado de juventude ocorrido quando este estava no serviço militar. Era um jogador, um Spielrat. Tinha perdido no jogo os fundos de seu regimento, só foi salvo porque um de seus colegas emprestou-lhe a soma a ser reembolsada. Quando tornou-se rico, foi procurar, em vão, aquele que lhe emprestou o dinheiro; não tendo podido encontrá-lo, nunca reembolsou a dívida. Aos dois jogadores, o paciente substitui o tenente A e o tenente B. A contingência que dá início à obsessão pelos ratos reside nas palavras do capitão cruel, que constituem uma alusão à dívida de jogo não paga do pai, ao erro do pai.

O significante Rat (rato), condensa em alemão diversas significações. Assim, jogador em alemão, é Spielrat. Existe uma homofonia entre Raten (rateamento, pagamento parcial) e Ratten (ratos), a partir da qual o paciente constituiu para si um verdadeiro lema sob a forma de rato, um escalonamento monetário em ratos: ele mantém uma contabilidade em ratos. O erro do pai se articula com a questão de sua sexualidade. As conseqüências da sífilis relembram a ação do rato no suplício descrito pelo capitão cruel. Ernst acredita que seu pai tinha sífilis. O sujeito toma partido no gozo do pai e, em seu erro, deixa-se nomear através do rato.

O pai era um homem sociável, agradável, mas colérico e muito severo com seus filhos. Era também vulgar e muito desvalorizado pela mãe neste ponto. Quando criança, Ernst era solidário à mãe sobre este ponto em que ela criticava o marido.

A equivalência entre o rato e o dinheiro é reforçada pelo fato de que o pequeno Ernst tinha uma infecção por vermes. Por outro lado, o rabo do rato designa o pênis em alemão. O rato lembra sujeira, prostituição. Ademais, o rato morde, Ernst, quando menino mordia também. Devido a essas associações significantes, o rato vem nomear o inominável do gozo sexual.

Convém lembrar da morte de sua irmã Helga quando ele tinha três anos e meio. Freud salienta no Journal que ele havia esquecido este encontro precoce com a morte devido a seus próprios complexos. Foi sobre o corpo de sua irmã que ele notou pela primeira vez a diferença entre os sexos. Há, então, um nó entre a morte de Helga e o desejo de ver uma mulher indefesa e inerte. A morte da irmã faz surgir uma recriminação fundamental em relação ao pai à qual se adiciona uma identificação à crítica da mãe ao pai. O erro deste foi ter se casado com a mãe por dinheiro e a recriminação se articula com a morte da irmã mais velha: “é você quem deveria ter morrido, e não Helga.” A solução trazida para o enigma da obsessão pelos ratos faz a mesma desaparecer. O sintoma, depois de decifrado, some.

 

Teoria da obsessão

Freud estuda a formação do sintoma obsessivo. É necessário perceber a importância dada aos elementos pulsionais, dentre os quais o ódio infantil vem em primeiro plano.

 

Uma doença do pensamento

Lacan dá uma definição do sintoma obsessivo: a obsessão é um pensamento, “une pensée dont l’âme s’embarrasse, ne sait que faire” (Lacan, 2001, p. 512). O neurótico obsessivo é um doente do pensamento, que sofre de seus pensamentos. Na neurose obsessiva, contrariamente à histeria, o recalque não se dá pela amnésia e pelo esquecimento, mas sim por uma disjunção da relação de causalidade que ocorre devido a um deslocamento do afeto. O sintoma obsessivo é o resultado de deformações destinadas a mascarar o pensamento que provém da recriminação primária. O pensamento obsedante se torna estrangeiro ao sujeito. A técnica mais freqüente de deformação é a elipse: se eu me casar com a dama // algo de ruim acontecerá com meu pai no além.

É necessário rearrumar os encadeamentos do raciocínio: se meu pai fosse vivo, ficaria furioso e me puniria novamente; eu me revoltaria contra ele e, graças ao meu pensamento todo-poderoso, ele morreria disso. A estrutura lógica é a da implicação: causa - conseqüência, pois é necessário afastar ao máximo possível a conseqüência da causa através de substituições e deslocamentos metonímicos, criando conseqüências cada vez mais absurdas. Se isso não funcionar, o sujeito pode recorrer a fórmulas de defesa tais como o aber do homem dos ratos, pronunciado de tal maneira que o e se torna sonoro, criando um equívoco com Abwehr (defesa). Há também uma outra forma de proteção, destinada a defendê-lo do risco de prejudicar uma prima amanda em conseqüência da prática da masturbação: Glejisamen (anagrama do nome da amada + amen), mas, graças a essa fórmula, ao mesmo tempo ele se une com ela (Samen = semente).

 

Clínica diferencial neurose/psicose

O obcecado está solidamente instalado no significante. Não se deve nunca temer, nos informa Lacan, que uma neurose obsessiva possa escorregar na direção da psicose (1957-58, p. 472). O sintoma obsessivo oferece uma base muito sólida ao sujeito.

As fórmulas de anulação não devem ser confundidas com a foraclusão. O obsessivo, apesar de se apresentar confuso e perdido, não está fora do discurso. As fórmulas de defesa não são erráticas, o que significa que elas não provêm de um real sem lei. Elas são ligadas ao fato de que “isto quer dizer alguma coisa”, portanto não estão fora do laço, mesmo se estiverem fora do sentido.

A fórmula verbal, sob transferência, é submetida à articulação S1-S2. O obsessivo em análise pode restabelecer o texto da fórmula absurda. As fórmulas tomam formas de histórias e são decifráveis a partir de significantes da história do sujeito. O inconsciente no obsessivo é, portanto, um inconsciente transferencial se levarmos em conta a distinção estabelecida por Jacques-Alain Miller (2006-2007). As fórmulas são cacos de lalangue – que se servem da língua como se fossem algo ouvido, onde a linguagem comporta um ordenamento.

O obsessivo se serve de lalangue para introduzir uma confusão na linguagem. Era assim com uma criança de sete anos que apresentava uma perturbação da linguagem importante, pois não introduzia nenhum corte entre os fonemas e as palavras. Era difícil entendê-lo e tomavam-no por louco. Um dia ele me disse que entre as palavras não deveria haver buracos, pois balas poderiam entrar neles e poderíamos morrer.

 

Uma tentativa de redução do buraco

O obsessivo se dedica a pensar na paternidade, na duração da vida, na morte, isto é, o impensável tal qual Lacan o define em seu seminário Le sinthome: “A pulsão... ser pensado” (1975-76, p. 25). É questão, então, de um combate de pensamento com o impossível. O obsessivo pretende dominar o real com seu pensamento, donde sua impotência. Ele é sujeito a um pensamento segundo o qual, se ele conseguir pensar o impensável, ele poderá escapar, fugir dele.

Para o obsessivo, a morte é um dos nomes da castração. Ele sabe que ela é introduzida na linguagem pelo S1, que convoca o outro significante, o S2. Havendo S1 e, em seguida, S2, há o intervalo, o escancaramento. Este buraco não é nada além de S(), a inconsistência do Outro, a impossibilidade de dizer a verdade sobre a verdade, com um efeito de perda de gozo na posição de a.

O obsessivo procura reduzir o intervalo S1-S2 a Um Só, reduzir o buraco de S() ao Um, a fim de preencher o intervalo através de fórmulas fora do sentido; assim, o Homem dos ratos importa no intervalo entre relâmpago e trovão. São defesas contra a inconsistência do Outro, contra o real como impossível. Questionar o Outro o tempo todo e fazê-lo repetir para tentar captar, no equívoco, o sentido do sentido... isto é reduzir S() ao Um.

Esta compulsão de entender tudo, de procurar o sentido do sentido no equívoco, o verdadeiro do verdadeiro, demonstra uma vontade de anular o x enigmático do desejo do Outro. Para fazer isso, o obsessivo dará antes que lhe seja pedido. Através de respostas que antecipam toda demanda, ele opera o esmagamento do desejo do Outro, vivido como um comando: ele crê que deve se dedicar a satisfazer toda demanda e a ela sacrificar seu corpo e seu ser, donde sua oblatividade. Ele efetua a anulação e a mortificação do desejo enquanto turbilhão que pode aspirá-lo. Ele luta sem cessar para escapar à aspiração no buraco turbilhonante de S().

 

Uma voz que comanda

Este sintoma não é desprovido de Outro. O obsessivo está em relação permanente com o Outro do amor e do ideal, que se impõe a ele por intermédio de um comando, de um imperativo, de uma ordem: ele é submetido à ação de uma voz, mas não é uma voz exterior. Não há, como na psicose, uma autonomia na função do comando. É dentro dele que isso fala com efeito de divisão subjetiva, de dúvida.

O comando é velado: ele não aparece maciçamente, mas sim sob a forma de fragmentos. Ele é ligado à culpabilidade, ao pudor, à vergonha, às recriminações que podem se transformar em angústia social. São os afetos do sujeito dividido. O temor permanente de um castigo social pode aproximar-se de um delírio de estar sendo observado, mas sem nenhum elemento de certeza. Assim, o Homem dos ratos acreditou ver ratos duas vezes mas, para Freud, é uma ilusão, e não uma alucinação. Em defesa, instalam-se rituais, até mesmo o alcoolismo, para aliviar o peso do pensamento. É necessário procurar sempre o pensamento recalcado que se associa à sexualidade infantil (o que não se encontra nunca num sujeito esquizofrênico).

 

Gozar de um pensamento secretado pelo corpo

Todo pensamento obsessivo que dê lugar a alguma construção, não importando o quão louca ela seja, será sempre ligada à sexualidade; a neurose obsessiva comporta uma erotização do pensamento.

A fórmula no obsessivo comporta sempre uma equivalência que introduz um valor fálico. O falo imaginário é a verdadeira unidade de medida. O obsessivo demonstra que o pensamento é um parasita, uma trava, um câncer que aflige o ser humano; a palavra parasita o corpo a título de pensamento, o pensamento afeta o corpo. É o que diz Lacan no Séminaire XVII: L’envers de la psychanalyse: “O pensamento... afeto” (1969-70, p. 176).

Na neurose obsessiva, os pensamentos são o efeito de afetos no corpo ligados ao entrelaçamento do corpo no discurso. Os pensamentos que afetam o corpo fazem sofrer o obsessivo. Eles não estão fora do discurso, eles vêm condensar um sentido gozado: o pensamento é erotizado, o obsessivo goza de seu pensamento no sentido de uma secreção do corpo. É necessário então tratar o sintoma obsessivo como um evento de corpo, o que implica tomá-lo no sentido de significante e no sentido de gozo que se satisfaz no pensamento obsessivo, que Lacan denomina “a tripa causal” (1962-63, p. 250).

É necessário fazer cortes no texto do obsessivo para isolar pelo equívoco o uso do gozo condensado em seu sintoma. É assim que o obsessivo pode deixar o pathos de seu pensamento e fazer de suas fórmulas um Witz. Ele pode conseguir decifrar o que seu pensamento articula de sentido gozado e é possível ouvi-lo rir de seus pensamentos ao final de uma sessão em que o pathos foi derrubado.

O tratamento do sintoma obsessivo comporta uma dimensão ética no local em que uma terapia cognitivo-comportamentalista teria exercido no homem dos ratos uma vontade de gozar realizando a fantasia do capitão cruel. Teríamos dado consistência ao sintoma, levando o sujeito a contar quantas vezes a obsessão se apresentou. Na vertente cognitiva, querendo consertar as representações do sujeito, lhe teríamos explicado que o pai não poderia mais sofrer o suplício, pois estava morto e que os ratos nada mais são do que pequenos roedores que nunca irão para o céu!

 

Referências bibliográficas

Freud, S. Manuscrit K. In: La naissance de la psychanalyse. Paris: PUF, 1956, p. 129-137.

________. Nouvelles observations sur les psychonévroses de défense. In: Névrose, psychose et perversion. Paris: PUF, 1973, p. 61-81.

________. Remarques sur un cas de névrose obsessionelle. In: Cinq Psychanalyses. Paris: PUF, 1979.

Lacan J. Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines. In: Scilicet 6/7. Paris: Le Seuil, 1976, p. 7-63.

________. Conférence à Genève sur ‘le symptôme’. In: Le bloc.notes de la psychanalyse. Paris: Gallimard, 1985, n. 5, p. 5-23.

________. (1957-58). Le Séminaire, livre V, Les formations de l’inconscient. Paris: Le Seuil, 1998.

________. (1962-63). Le Séminaire, Livre X, L’angoisse. Paris: Le Seuil, 2004.

________. (1969-70). Le Séminaire, Livre XVII, L’envers de la psychanalyse. Paris: Le Seuil, 1991.

________. (1975-76). Le Séminaire, Livre XXIII, Le sinthome. Paris: Le seuil, 2005.

________. (1973). Television. In: Autres Écrits. Paris: Le Seuil, 2001.

Miller, J.-A. L’orientation Lacanienne, “Le tout dernier Lacan” (2006-2007), enseignement prononcé dans le cadre du Département de Psychanalyse de Paris VIII, inédito.

 

Texto recebido em: 13/06/2007.

Aprovado em: 20/07/2007.