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 Das fórmulas da sexuação ao empuxo-à-Mulher1

 


Vanessa Campbell da Gama
Graduada em psicologia/UFRJ
Mestre em Teoria Psicanalítica/UFRJ
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica/Universidade Federal do Rio de Janeiro

campbellgama@yahoo.com.br

 

 

Resumo

Dando continuidade ao trabalho desenvolvido anteriormente, intitulado “O paranóico e a castração: o delírio como tentativa de cura”, passamos a investigar as conseqüências da ausência de identificações edípicas para a sexuação na psicose. Partindo-se do pressuposto de que na psicose não há a simbolização da Lei edípica, podemos dizer que o psicótico não se inscreveu nem do lado masculino nem do lado feminino. Diante disso, colocamo-nos as seguintes questões: 1) como fica a posição do psicótico na partilha dos sexos? 2) de que recursos ele pode se valer para situar-se na diferença sexual? 3) O empuxo-à-Mulher pode ser considerado uma forma de o sujeito posicionar-se na partilha dos sexos?

Palavras-chave: psicose, diferença sexual, sexuação, delírio, empuxo-à-Mulher

 

   
 

 

  The sexuation in psychoses: paranoia, feminine and feminility

Abstract

Giving continuity to the work developed previously entitled: “The paranoiac and the castration: the delusion as an attempt of cure”, we go on to investigate the consequences of the lack of Oedipical identifications for sexuation in psychosis. Parting from the presumption that in psychosis there is no symbolization of the Oedipical law, we can say that the psychotic has not inscribed either on the masculine or the feminine side. With that said, we ask ourselves the following questions: how does the position of the psychotic in the sex division stand? Which resources can he use to be situated on the sex difference? Being pulled to the woman can be considered a way for the subject to stand in the sex division?

Keywords: psychoanalysis, psychosis, sex difference, excitement, Being pulled to the woman.

 


1 – Introdução

De acordo com a teoria psicanalítica, a diferença anatômica entre os sexos tem conseqüências psíquicas, mas não se nasce psiquicamente homem ou mulher; logo, é necessário que o sujeito se inscreva do lado masculino ou feminino das fórmulas da sexuação, formalizadas por Lacan (1972-73) em seu Seminário 20: Mais, ainda. Em outras palavras, constituir-se enquanto homem ou mulher requer um trabalho, um posicionamento ético do sujeito frente à castração. A condição para que a inscrição do lado masculino ou feminino ocorra é o atravessamento do Édipo. Na resolução do complexo de Édipo o sujeito simboliza a Lei edípica e se inscreve na partilha dos sexos. Dito de outro modo, ao atravessar o Édipo o sujeito simboliza a falta no Outro (registra a castração) e se insere na lógica fálica, ou seja, o falo passa a operar como regulador do gozo.

Partindo-se do pressuposto de que na psicose não há a simbolização da Lei edípica, podemos dizer que o psicótico não se inscreveu nem do lado masculino nem do lado feminino. Diante disso, colocamo-nos as seguintes questões: 1) como fica a posição do psicótico na partilha dos sexos? 2) de que recursos ele pode se valer para situar-se na diferença sexual? 3) O empuxo-à-Mulher pode ser considerado uma forma de o sujeito posicionar-se na partilha dos sexos?

Em seu Seminário 3: as psicoses Lacan (1955-56) afirma que, para Schreber, não há “nenhum outro meio de realizar-se, de afirmar-se como sexual, senão admitindo-se como uma mulher, como transformado em mulher” (Lacan, 1955-56, p. 286). Que conseqüências podemos tirar desta passagem? Como depreender o conceito lacaniano de empuxo-à-Mulher e sua importância para a clínica da psicose? Antes de darmos prosseguimento é importante dizer que o empuxo-à-Mulher pode sim desempenhar um papel crucial para a estabilização (como ocorreu no caso Schreber), mas pode também ser vivenciado pelo psicótico como um gozo altamente invasivo e colocá-lo ainda mais em posição de objeto. Portanto, na clínica da psicose, o encaminhamento a ser dado aos fenômenos de empuxo-à-Mulher deve ser pensado no caso a caso. É relevante que isto fique claro porque o empuxo-à-Mulher não é, de maneira nenhuma, uma solução estabilizante para todos os casos de paranóia. Como afirma Miller (2003), na impossibilidade de dar uma solução ao enigma colocado pela linguagem apelando para discursos estabelecidos, os psicóticos têm de inventar uma maneira inédita para dar uma resposta ao impossível inerente à linguagem. Em outras palavras, a solução dada por cada sujeito psicótico ao enigma sobre o seu sexo, que retorna no real, é inédita no sentido de que não passa pela significação fálica. É importante deixar claro também que o delírio é uma das formas de o psicótico alcançar a estabilização; existem outras, como a arte. Temos notícia de pacientes em que a estabilização não passa pelo delírio; por exemplo, pacientes que alcançam a estabilização através da arte ou, ainda, pela conjunção entre arte e delírio, como é o caso do Profeta Gentileza2.

Este trabalho será dividido da seguinte maneira: em um primeiro momento abordaremos a sexuação feminina e apresentaremos as fórmulas da sexuação para, em seguida, investigarmos as conseqüências da não inscrição do psicótico na partilha dos sexos. Para tanto, desenvolveremos o fenômeno do empuxo-à-Mulher, comum em quadros de psicose, e averiguaremos se ele pode ser considerado como uma forma de o sujeito se posicionar na partilha sexual. Por fim, com o intuito de articular teoria e clínica, lançaremos mão do clássico caso de paranóia do presidente Schreber.

 

2 – Sexuação

De acordo com a teoria psicanalítica, a distinção anatômica entre os sexos tem conseqüências psíquicas, mas não se nasce psiquicamente homem ou mulher. Como afirma Lacan: “(...) ter ou não ter o pênis não são a mesma coisa” (1957-58a, p. 192). Assim sendo, para se constituir enquanto homem ou mulher é imprescindível que o sujeito simbolize a diferença sexual. Dito de outro modo, ser homem ou mulher não é algo dado, portanto, requer um trabalho por parte do sujeito; mais do que isso, requer um posicionamento frente à castração. É importante frisar que, ao inscrever a castração, o sujeito se insere na lógica fálica. Voltaremos a este ponto.

Em seu artigo “A Organização Genital Infantil (Uma Interpolação na Teoria da Sexualidade)”, Freud afirma que tanto para os meninos quanto para as meninas existe “apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (Freud, 1923, p. 158). Em seguida, ele não só afirma como também sublinha que “o significado do complexo de castração só pode ser corretamente apreciado se sua origem na fase da primazia fálica for também levada em consideração” (Id., p. 159/160). Diante disso, podemos afirmar que tanto o homem quanto a mulher estão referidos à lógica fálica, que ambos se posicionam na partilha dos sexos a partir da primazia do falo. Em outras palavras, somente quando um significante se diferencia de todos os outros é que alguma lógica pode ser instaurada. Como nos diz Lacan, “para que alguma coisa falte é preciso que haja o contado” (1968-69, p. 290). Neste sentido, o falo é erigido a partir da inscrição de uma falta. É apenas quando se coloca para o menino a possibilidade de perder o seu pênis e para a menina o fato de que ela não o tem, isto é, que de saída ela é privada, que podemos falar do complexo de castração. Em outras palavras, quando falamos de castração é porque alguma perda já está em jogo. Em seu texto, “A significação do falo”, Lacan afirma que o falo é o significante que “dá a razão do desejo” (1958, p. 270). Portanto, a inscrição de uma falta na cadeia significante é essencial para que o sujeito possa desejar.

Lacan (1957-58a), em seu Seminário 5: as formações do inconsciente, fala-nos da simbolização da castração do Outro, ou seja, que a inscrição do significante do Nome-do-Pai simboliza a falta no Outro. Ele assinala que o pai é uma metáfora, ou seja, aquilo que vem no lugar do desejo da mãe. Ora, se o desejo materno é caprichoso, se ela goza de forma irrestrita do corpo do bebê, o significante do Nome-do-Pai é o que limita este gozo materno. Neste seminário, a castração é a simbolização da ausência de pênis na mãe, do Outro primordial. Lacan afirma que “É no lugar onde se manifesta a castração no Outro, onde é o desejo do Outro que é marcado pela barra significante” (1957-58a, p. 181). Portanto, o que se coloca para a criança é a pergunta pelo significado das idas e vindas da mãe. Afinal, “O que quer essa mulher aí?” (Id., p. 181). Esta pergunta feita pela criança nos mostra que, de início, este gozo materno é enigmático, desenfreado e sem sentido. Em relação à lei da mãe, Lacan assinala o seguinte: “essa lei é, por assim dizer, uma lei não controlada” (Id., p. 195). Diante disso, podemos afirmar que o Nome-do-Pai engendra uma significação fálica, significação esta que limita, que coloca uma barra sobre o gozo materno. Deste modo, o desejo materno, até então enigmático passa, através da metáfora paterna, a ser o desejo do falo. Por conseguinte, ao simbolizar a castração do Outro o sujeito se insere na lógica fálica, ou seja, o falo passa a operar como regulador do gozo.

 

2.1 – A sexuação feminina

Antes de apresentar as fórmulas da sexuação falaremos sucintamente da sexuação feminina com o intuito de marcar que as mulheres registraram a castração, portanto, estão na lógica fálica, embora esta não dê conta do que é uma mulher. Este caminho se faz necessário para traçarmos uma distinção entre empuxo-à-Mulher e a posição feminina na partilha dos sexos, questão que pode dar margem a confusões. Destarte, é importante frisar que o lado feminino não coincide com a psicose.

Em seu texto “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, Freud afirma que, “nas meninas, o complexo de Édipo levanta um problema a mais que nos meninos” (1925, p. 280, grifo nosso). O que Freud estaria querendo dizer com isto? Será que teria alguma ligação com o gozo suplementar que Lacan (1972-73) atribui às mulheres, ou seja, um gozo a mais, um gozo não capturado pela função fálica? Parece que Freud e Lacan estão se referindo a um resto pulsional, a algo que escapa à lógica fálica, algo que não pode ser dito. Lacan nos diz que “há um gozo dela (mulher) sobre o qual talvez ela não saiba nada a não ser que o experimenta – isto ela sabe” (1972-73, p. 100).

Em sua conferência XXXIII, intitulada “Feminilidade”, Freud afirma o seguinte: “a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher - seria esta uma tarefa difícil de cumprir -, mas se empenha em indagar como é que a mulher se forma” (1933[1932], p. 117). A partir desta passagem podemos nos perguntar até que ponto Freud não reconhece que é impossível dizer o que é a mulher, pois ele coloca esta tarefa como um limite da teoria psicanalítica. Claro que só podemos fazer esta leitura a partir da teorização lacaniana de que A Mulher não existe. Desenvolveremos este ponto adiante.

Freud então se coloca a tarefa de descobrir como é que a menina se transforma em mulher. Ele afirma o seguinte: “Há muito tempo, afinal de contas, já abandonamos qualquer expectativa quanto a um paralelismo nítido entre o desenvolvimento sexual masculino e feminino” (1925, p. 234). Em outras palavras, Freud sustenta que não há simetria em relação Édipo no menino e na menina, o que aponta para o ponto central sobre o qual a psicanálise gira, ou seja, a diferença sexual.

Freud sublinha que a maneira pela qual a menina atravessa o Édipo é diferente da do menino. Dito de outro modo, homens e mulheres se posicionam de forma diferente frente à castração. Tal como nos meninos, o primeiro objeto de amor da menina é a mãe; no entanto, diferentemente dos meninos, elas têm de abandonar a mãe enquanto objeto e investir no pai. Essa reviravolta ocorre porque a menina constata a diferença sexual e se dá conta de que o menino tem e ela não - “Ela o viu (o pênis), sabe que não tem e quer tê-lo” (Freud, 1925, p. 281). De acordo com Freud, após este episódio, as meninas se tornam vítimas da inveja do pênis. Podemos ler nessa passagem que a menina está referida ao falo, ou seja, que a sua inscrição do lado feminino passa pela norma fálica. A partir do Penisneid, isto é, da inveja do pênis, Freud (1933 [1932]), teoriza a sexualidade feminina. Ele afirma que, ao se deparar com o órgão genital masculino, a menina se decepciona com a mãe porque ela não tem e não lhe deu o falo. Devido a isso, a menina abandona a mãe enquanto objeto de investimento sexual e busca alhures, o significante que lhe falta no real do corpo. De acordo com Freud (1931), a sexualidade feminina tem três saídas possíveis:

1.  Renunciar ao falo e abrir mão da sexualidade.

2.  Não renunciar ao falo e ficar presa ao complexo de masculinidade, isto é, querendo ser um homem.

3.  Por fim, reconhecer a castração materna e a sua própria e buscar o falo no homem. Busca-o, primeiramente no pai e depois em um homem que lhe permita equivaler o desejo de ter um pênis ao desejo de ter um bebê, um “falo-bebê”. De acordo com Freud, essa terceira opção é o caminho normal em direção à feminilidade.

Para responder à questão sobre como a menina se transforma em mulher, Freud circunscreve como ponto de impossível: descrever o que é uma mulher. A partir da circunscrição desta limitação, ele tenta responder, pela via da lógica fálica, mais precisamente da inveja do pênis, como é que uma menina se transforma em mulher. A tentativa de Freud é um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que só podemos elaborar algum dizer sobre a mulher a partir da lógica fálica, esta lógica não pode dizer toda a mulher. Ora, mas a mulher não pode ser dita. Como então engendrar algum saber sobre a mulher que não passe pela lógica fálica?

Em seu Seminário 20: mais, ainda..., Lacan (1972-73) dá um passo adiante e teoriza que a mulher é não-toda inscrita na lógica fálica. Deste modo, ele dá um lugar para o feminino enquanto radicalmente distinto do masculino, no sentido de que escapa à lógica fálica. Neste seminário, Lacan postula que as mulheres possuem um gozo suplementar ao fálico, um gozo Outro, portanto, não capturado pelo significante; um excesso de gozo não civilizado. Em relação a este gozo feminino, podemos dizer que ele é fora do discurso, que ele é impossível de ser dito. Lacan nos chama a atenção para o fato de que, sobre este gozo, “talvez ela não saiba nada a não ser que o experimenta – isto ela sabe” (1972-73, p. 100). A isto acrescenta que “Nada se pode dizer da mulher” (Id., p. 109). Não se pode dizer nada sobre a mulher, precisamente porque não há um significante que a represente. Daí o aforismo lacaniano: A Mulher não existe.

Dado que a lógica fálica não dá conta do que é ser uma mulher, depreendemos que, para a menina, a travessia do Édipo não lhe responde o que é ser uma mulher. No entanto, é importante deixar claro que ao final do Édipo a menina reconhece que ela e sua mãe não têm o falo. Este reconhecimento é crucial para a sua inscrição na partilha dos sexos. Como assinala Lacan, “é na medida em que o pai se torna o Ideal do eu que se produz na menina o reconhecimento de que ela não tem falo” (1957-58a, p. 179). A identificação com o pai, que Lacan chama de Ideal do eu, ocorre na resolução do complexo de Édipo. Não obstante, como falta um significante que a represente, algo de sua condição sexuada permanece como enigma: “o sexo da mulher não lhe diz nada” (1972-73, p. 15).

 

3 – As fórmulas da sexuação

Em seu texto “O Aturdito”, Lacan afirma que “não há universal que não deva ser contido por uma existência que o negue” (1973, p. 450).

Partiremos desta passagem para tentar mostrar que a condição de existência do todo é a exceção, é algo que fica de fora. Como veremos, o que funda o conjunto dos homens é a exceção. A mesma lógica pode ser aplicada à teoria, visto que ela só é consistente a partir da circunscrição de um ponto de impossível, de indecidível, portanto, de uma inconsistência. No Seminário 16: de um Outro ao outro, Lacan (1968-69) nos ensina que o 1 sempre vem acompanhado de a, isto é, que 1= 1+a. Dito de outra maneira, a unidade não vem sem o resto, sem que algo fique de fora, e o que fica de fora é precisamente o real. Neste seminário, Lacan afirma o seguinte:

O objeto a [...] é exatamente o que vocês querem, esse branco, ou esse preto, esse algo que falta por trás da imagem, se se pode dizer, e que colocamos tão facilmente, por um efeito puramente logomáquico da síntese, em algum lugar numa circunvolução. É exatamente na medida em que alguma coisa falta no que dela se dá como imagem que é o ponto de força onde só há uma solução, é que, como objeto a, isto é precisamente enquanto que falta e, se querem enquanto mancha. A definição de mancha, é justamente aquilo que, no campo, se distingue como o buraco, como uma ausência [...]. Colocar a mancha como essencial é estruturante, a título de lugar de falta em toda visão (Lacan, [1968-69, p. 283, grifo nosso).

Ainda pensando a necessidade de um resto para que a unidade se constitua podemos nos remeter ao conceito de ideal do eu, cuja formação é condição para a constituição do eu. Freud nos diz que o ideal do eu se constitui como “substituto do narcisismo perdido de sua infância, onde ele era o seu próprio ideal” (1914, p. 101). Podemos depreender desta passagem que a constituição do ideal do eu se dá a partir de uma perda, de uma renúncia ao narcisismo infantil. É somente a partir da constituição do ideal do eu, portanto de uma perda, que o narcisismo infantil torna-se o eu ideal. Assim, podemos dizer que a constituição do ideal do eu é uma maneira de o neurótico tentar reparar a ferida narcísica produzida pelo registro da castração. Por conseguinte, a constituição do ideal do eu ocorre a partir de uma perda. Vale dizer que o ideal do eu é inalcançável, portanto, um ponto de impossível. Lacan assinala que a constituição do ideal do eu se dá no terceiro tempo do Édipo3, ou seja, tempo em que há a identificação com o pai. Lacan é incisivo: “Essa identificação chama-se Ideal do eu” (1957-58a, p. 200).

É importante ressaltar que a constituição do ideal do eu comporta um paradoxo, pois “ser castrado é essencial na assunção do fato de ter o falo” (Lacan, 1957-58a, p. 193). Em outras palavras, para ter o falo é necessário que haja o registro de que não se pode tê-lo, é necessário que haja a inscrição da falta. Nesse sentido, o menino só tem o falo sob o fundo de não tê-lo, portanto, o registro da castração, é a condição para que o menino o tenha.

É sabido que o conceito de castração é central para a teoria e a clínica psicanalíticas. Tendo isso em vista, citarei a brilhante definição de castração formulada por Lacan em seu Seminário 20: mais ainda...: “para o homem, a menos que haja castração, quer dizer, alguma coisa que diga não à função fálica (...)” (1972-73, p. 97, grifo nosso). Esta passagem é bastante clara: a lógica fálica é instaurada por algo que a nega, por algo que fica de fora, portanto, por uma impossibilidade. Neste seminário, a castração aparece como a simbolização de um impossível, ou seja, como a fundação de um real. Este impossível, esta falha é estrutural, visto que é inerente à linguagem: “quando se trata da estrutura, eu já disse isso, deve ser tomado no sentido do que é o mais real, o próprio real” (Lacan, 1968-69, p. 26). Por conseguinte, há um fora do sentido, um irrepresentável para todo falante. Assim, a diferença entre neurose e psicose reside no fato de que o neurótico, a partir da inscrição do significante do Nome-do-Pai, simbolizou esta falha do Outro e o psicótico não. O psicótico, portanto, é aquele que não quis saber nada desta impossibilidade, desta mancha inerente à linguagem. Na neurose, há o registro deste irrepresentável e, conseqüentemente, a inserção na lógica fálica e a inscrição na partilha dos sexos. Vale frisar que a lógica fálica é fundada precisamente por este fora do sentido, por isto que lhe escapa, ou seja, por um ponto de impossível. Ora, se a condição de existência da lógica fálica é justamente algo que a negue, algo que fique de fora, ou seja, um ponto de impossível, na psicose essa lógica não é instaurada, portanto, não há uma fronteira entre o masculino e o feminino. Destarte, o psicótico não se inscreve na divisão dos sexos.

Exporemos agora o quadro das fórmulas da sexuação, frisando que o psicótico não se inscreve nem do lado do homem nem do lado da mulher.

Lado Homem                    Lado Mulher

 

Do lado esquerdo do quadro temos a posição masculina, onde há uma exceção que funda o conjunto dos homens, ou seja, há um que não está submetido à castração, representado pela fórmula:     . Para depreendermos este lugar de exceção é crucial que nos reportemos ao texto de Freud (1913 [1912]), intitulado “Totem e tabu” onde ele descreve o mito do pai da horda. Neste recorte que estamos realizando, o importante é dizer que, nos primórdios do totemismo, havia um pai que gozava de todas as mulheres e, à medida que os filhos cresciam, expulsava-os da horda. Porém, certo dia, os filhos expulsos retornam juntos, matam e devoram o pai. É importante marcarmos que o que funda o conjunto dos homens enquanto todo inscritos na lógica fálica é o assassinato do pai, ou seja, é o pai enquanto símbolo. É o pai morto que instaura a lei de proibição do incesto. Freud é claro: “O pai morto tornou-se mais importante do que o fora vivo” (1913 [1912], p. 146). Em seguida Freud afirma o seguinte:

[...] nenhum deles tinha força tão predominante para a ponto de ser capaz de assumir o lugar do pai com êxito. Assim, os irmãos não tiveram outra alternativa, se queriam viver juntos – talvez somente depois de terem passado por crises perigosas –, do que instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinha sido o motivo principal para se livrarem do pai (Freud, 1913 [1912), p. 147).

Portanto, o pai horda assassinado representa a exceção,      , o “ao menos um” que não está submetido à lógica fálica. Lacan (1972-73) nos ensina que, devido ao fato de haver uma exceção do lado masculino (exceção que delimita o conjunto dos homens), temos o seguinte:      , todos os homens estão submetidos à castração. Lacan afirma: “O todo repousa, portanto, aqui, na exceção colocada” (1972-73, p. 107).

Do lado feminino, como não há exceção, todas as mulheres estão submetidas à castração, ou seja, não há uma que não esteja submetida à castração, que é representada pela fórmula:      . Não obstante,      , as mulheres estão “não todas” submetidas à função fálica, dado que não existe exceção que funde o conjunto das mulheres.

Vimos com Freud que a mulher está referida ao falo, mais do que isto, que é por esta referência que ela se constitui enquanto mulher. Por conseguinte, é pela inscrição da castração que a mulher se inscreve na partilha dos sexos. Não obstante, como no lado feminino não existe exceção, o conjunto das mulheres não existe. É nesse sentido que as mulheres só podem ser contadas uma a uma, pois A Mulher não existe, não existe um significante que a represente. Deste modo, ao mesmo tempo em que todas as mulheres são castradas, elas estão “não toda” inscritas na lógica fálica; o que é o mesmo que dizer que a mulher está referida à lógica fálica, mas que esta lógica não recobre o que é ser uma mulher. Como vimos, Freud afirma que “a psicanálise não tenta descrever o que é a mulher” (1932 [1933], p. 117).

Vimos que é a lógica fálica que limita o gozo do Outro, portanto, podemos dizer que a relação da mulher com o Outro é mais direta que a dos homens, visto que elas são “não toda” submetidas à norma fálica. A partir desta formulação Lacan postula que as mulheres possuem um gozo suplementar, um gozo não capturado pelo falo, portanto, um gozo Outro. Não obstante, é importante ressaltarmos o seguinte: “Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Mas há algo a mais” (Lacan, 1972-73], p. 100). Depreendemos desta passagem que a mulher está toda referida à lógica fálica, no entanto, como esta lógica não dá conta do que é uma mulher, a mulher tem um gozo a mais, um gozo não capturado pelo significante, não regulado pelo falo. Acreditamos que é por isso que Lacan nos diz que “contrariamente ao que se diz, de qualquer modo são elas que possuem os homens” (1972-73], p. 99), pois elas estão toda referidas à lógica fálica. Neste sentido, elas possuiriam os homens. Dado que as mulheres possuem um gozo Outro, isto é, um gozo que escapa à lógica fálica, podemos dizer que nenhum homem possuirá de todo uma mulher, visto que sempre ficará algo de fora. Por isso, como diz Miller (1998), no que diz respeito ao gozo feminino as mulheres estão sempre sozinhas. Cabe dizer que aquilo que, da mulher, escapa ao homem, escapa também à mulher - “o sexo da mulher não lhe diz nada” (1972-73, p. 15). É por isso que este gozo Outro, a mulher o experimenta, mas sobre ele, nada sabe. Será por isso que Lacan define como heterossexual “aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio” (Lacan, 1973, p. 467). No Seminário 20:mais, ainda..., Lacan (1972-73) nos diz que a mulher tem a ver com o Outro e que o Outro só pode ser o Outro sexo. Levando-se em consideração que existe exceção apenas do lado masculino e que, como afirma Freud, existe “apenas um órgão genital, ou seja, o masculino” (1923, p. 158), será que podemos afirmar que a mulher é o Outro sexo, inclusive para ela mesma?

Podemos dizer que as três saídas possíveis para a mulher teorizadas por Freud não dão conta, não totalmente, do que seja a mulher. Algo resta, escapa à norma fálica, portanto, fica de fora. Depreendemos que é por este motivo que a mulher ocupa, para o homem, a posição de objeto a, ou seja, de causa do seu desejo.

Do que até aqui foi exposto depreendemos que ser mulher está para além da significação fálica, para além do fato de ser mãe e/ou de desejar um homem. Como assinala Lacan:

A questão é, com efeito, saber no que consiste o gozo feminino, na medida em que ele não está todo ocupado com o homem, e mesmo, eu diria que, enquanto tal, não se ocupa dele de modo algum, a questão é saber o que é do seu saber (Lacan, 1972-73, p. 118).

Se o fato de se colocar como objeto causa do desejo de um homem não responde ao que é ser uma mulher, onde encontrar uma resposta? Uma vez que esta resposta não está toda ela na via do sentido, ou seja, da significação fálica, cabe à mulher, a cada mulher, inventar, criar uma solução para este enigma que é a sua própria feminilidade, o seu próprio sexo. Ora, se o gozo da mulher não está todo ocupado com o homem como fazer Um com o parceiro amoroso? Miller (1998) afirma que existe um gozo dela, da mulher, em que nenhum homem pode segui-la, portanto, em relação a este gozo a mulher está . Ele ainda afirma o seguinte: “Lacan formula esta soledad como no hay relación sexual, a partir de lo cual se cuestiona la estructura de la comunicación, que hace creer que existe una relación entre el significante y el Outro” (Miller, 1998, p. 374).

Miller sublinha que, ao escrever as fórmulas da sexuação, Lacan apresenta a dissimetria que há entre os sexos, mas não a relação entre eles. Dito de outro modo, o impossível é a relação sexual. As fórmulas, portanto, nos mostram que homem e mulher se posicionam frente à castração de maneira distinta. Miller (1998) pontua que o falo é, ao mesmo tempo, mediador, isto é, possibilita a relação entre homens e mulheres, e o que faz obstáculo à relação sexual. No Seminário 16, encontramos uma belíssima passagem:

A Mulher, em sua essência, se é alguma coisa, e não sabemos nada sobre isso, ela é recalcada – tanto para a mulher como para o homem – e o é duplamente. Inicialmente, pelo fato de que o representante de sua representação está perdido, não se sabe o que é a mulher. E, em seguida, porque, esse representante sendo recuperado, é o objeto de uma Verneinung, pois, que outra coisa se poderia lhe atribuir como caráter, senão o de não ter isso que precisamente jamais esteve em questão que ela tivesse? (...), ao lado o falo e a negação de que ela o tenha, isto é, a reafirmação de sua solidariedade com esse troço que, talvez, seja mesmo o seu representante, mas que não tem com ela qualquer relação. Então, isso deveria nos dar, por si só, uma pequena lição de lógica e nos fazer ver que o que falta ao conjunto desta lógica é precisamente o significante sexual. (Lacan, [1968-69, p. 215, grifo nosso).

Esta passagem deixa bastante clara a dissimetria entre os sexos colocada pelo falo, o que nos remete à inexistência da relação sexual. A inexistência da relação sexual se evidencia no fato de que a mulher possui um gozo Outro, no qual homem nenhum homem pode segui-la; e o homem, por sua vez, “não chega, eu diria, a gozar do corpo da mulher, precisamente porque o de que ele goza é do gozo do órgão” (Lacan, 1972-73, p. 15). Não obstante, é importante lembrar que o falo, enquanto significante da falta, é a razão do desejo, é o que possibilita que um homem deseje sexualmente uma mulher e vice-versa. Por fim, esta passagem nos mostra que não há, para o falante, um saber sobre o sexo. Portanto, no que diz respeito ao sexo o sujeito tem de aprender a se virar aí.

Com o intuito de articular teoria e clínica, discorreremos agora sobre o caso do Presidente Schreber, clássico caso de paranóia analisado4 por Freud.

 

4 – Schreber e o empuxo-à-Mulher

A idéia germinal do delírio de Schreber é o pensamento, que teve entre o sono e a vigília, de que ‘seria belo ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula’. É relevante sublinhar que Schreber teve este pensamento após receber a notícia de que seria nomeado juiz presidente da Corte de Apelação de Dresden (cargo vitalício e elevado para sua idade). Freud (1911), ao analisar5 este caso, localiza neste pensamento a emergência de um impulso homossexual e, conseqüentemente, a causa do desencadeamento da paranóia de Schreber.

Lacan (1955-56) assinala que o desencadeamento da paranóia de Schreber foi a sua nomeação para o cargo de juiz presidente. Pois, precisamente quando foi convocado a assumir um lugar de autoridade, ou seja, quando o significante do Nome-do-Pai (forcluído na psicose) foi requerido, ele desencadeia o surto. Assim, para Lacan, o desencadeamento da psicose de Schreber é anterior ao momento em que ele teve o pensamento de que ‘seria belo ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula’. Apoiados em Lacan, sustentamos que este pensamento que teve Schreber já indica o empuxo-à-Mulher, ou seja, uma maneira peculiar de o psicótico se haver com o enigma sobre o seu sexo, visto que não se submete à castração. Dito de outra maneira, o empuxo-à-Mulher não se enquadra nem do lado masculino nem do feminino, portanto, é uma exceção à função fálica.

O delírio de Schreber passou por alterações significativas. Em um primeiro momento, a idéia de ser transformado em mulher se apresenta como inadmissível, pois como o próprio Schreber (1903) afirma, esta idéia é alheia a todo o seu modo de sentir e pensar que, em plena consciência, ele a teria rejeitado com a maior indignação. Além disso, neste momento, Schreber seria abusado sexualmente e depois “deixado de lado” (1903, p. 67). Podemos caracterizar esta etapa, em que Schreber se encontra em uma posição de objeto de abuso do Outro, como um delírio erotomaníaco persecutório. Posteriormente, ele reconcilia-se com o seu pensamento, visto que, a partir do trabalho do delírio, a sua eviração6 (transformação em mulher) passa a ter um honroso objetivo: tornar-se A Mulher de Deus e redimir a humanidade. Neste segundo momento, Schreber seria fecundado pelos raios divinos e daria origem a uma nova raça de homens. Assim, através do acréscimo de um delírio religioso de grandeza, Schreber dá um fim nobre à sua inevitável eviração. Nesta etapa de seu delírio, Schreber consegue certo apaziguamento, pois, para ele, ser A Mulher de Deus é uma posição possível de ser ocupada.

No caso Schreber, tornar-se A Mulher de Deus, é colocado como um ideal, pois, para ele, a concretização de sua eviração dar-se-á em um futuro assintótico. O ideal, por definição, é inalcançável; em outras palavras, demarca, circunscreve um ponto de impossível. Por conseguinte, ao inventar uma finalidade nobre para a sua transformação em mulher e, mais do que isto, transformá-la em ideal, Schreber conseguiu apaziguar o gozo avassalador que o invadia e situar-se na existência. Depreendemos então que, no caso Schreber, a construção de um ideal, a partir do trabalho do delírio, foi crucial para que ele alcançasse a estabilização.

Vale ressaltar que o lado feminino não coincide com a psicose porque as mulheres passaram pelo Édipo, logo, estão inseridas na lógica fálica. Pois, como nos diz Lacan (1972-73), a mulher é não-toda inscrita na lógica fálica, o significa dizer que ela que ela está inserida nesta lógica, porém, de forma não-toda. Deste modo, o gozo em questão na psicose não é o gozo feminino, pois este é um resto que não foi capturado pela significação fálica, e na psicose, trata-se de um gozo radicalmente fora da significação fálica, portanto, não regulado pelo falo. Em relação a Schreber, Lacan afirma que “na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens” (Lacan, 1957-58b, p. 572). Por que ele não pode ser o falo? Schreber não pode ser o falo precisamente porque não se inseriu na lógica fálica.

Vimos que o registro da castração é a simbolização da falha do Outro. Em relação ao buraco, a falha que existe em todo discurso, ou melhor, que é a sua causa, Lacan nos diz que “nomeá-la é tapá-la com uma rolha, nada mais” (1968-69, p. 166). Ora, o que é o significante do Nome-do-Pai senão uma nomeação desta falha? A simbolização é isso: nomear a falha, a ausência de um significante que represente a mulher. Como já desenvolvemos em um trabalho anterior, falta significante para todo falante, ou seja, para todos há o irrepresentável, para todos há o indizível e o significante do Nome-do-Pai é uma suplência, ou seja, é o significante que nomeia esta falha. No Seminário 5, Lacan afirma o seguinte em relação aos psicóticos: “o sujeito tem de suprir a falta desse significante que é o Nome-do-Pai” (1957-58a, p. 153), lembrando que este significante foi forcluído na psicose. No Seminário 16, já aparece que para todo falante há o indizível. Podemos verificar isto na seguinte passagem: "esse sujeito é alguma coisa cujo saber está inteiramente determinado por outra falta mais radical, mais essencial, que é a falta do que lhe concerne enquanto ser sexuado" (1968-69, p. 284, grifo nosso). Neste seminário, Lacan já afirma “que não há relação sexual” e que “não se sabe o que é a mulher” (Id., p. 214 e 215, respectivamente), pois falta um significante que a represente. No entanto, é no Seminário 20, mais precisamente com as fórmulas da sexuação, que Lacan evidencia a inexistência da relação sexual e, por conseguinte, também a inexistência de um saber sobre o sexual. Como afirma Miller: “Cuando Lacan convierte el falo en una función – el lo que haremos con el síntoma – escribe, al mismo tiempo, dos fórmulas distintas y separadas para ambos lados de la fórmula de la sexuación, y no escribe su relación” (Miller, 1998, p. 373, grifo nosso). Assim, a partir da inexistência da relação sexual, a partir desta falta estrutural, Miller generaliza o conceito de forclusão, teorizado por Lacan para falar da constituição psíquica na psicose, e cunha o conceito de forclusão generalizada, ou seja, que para todo sujeito há o irrepresentável. Deste modo, o Nome-do-Pai passa a ser, ele mesmo, uma suplência, o nome desta falha no Outro. É a partir da simbolização desta falha do Outro que o sujeito se inscreve na partilha dos sexos. Em outras palavras, é a partir do registro da castração, que evidencia para o sujeito a sua falta enquanto ser sexuado, que ele pode sustentar o seu desejo enquanto homem ou mulher.

 

5 – Conclusão

Para finalizar, retomaremos uma das questões colocadas no início do trabalho, qual seja: o empuxo-à-Mulher pode ser considerado uma forma de o sujeito posicionar-se na partilha dos sexos?

Como vimos, para que haja a inscrição do sujeito na partilha dos sexos, é imprescindível que ele atravesse o Édipo, isto é, simbolize a falha do Outro. Na resolução do complexo de Édipo o sujeito internaliza a Lei edípica e se inscreve na lógica fálica. Vale frisar que a Lei edípica instaura a realidade da castração, que tem a função de limitar o excesso pulsional e localizar o gozo. Dado que não simbolizou a falha do Outro, o psicótico não se inseriu na lógica fálica. Em relação ao desencadeamento da psicose, Lacan nos diz que “se esse oco ou esse vazio aparece, é por ter sido evocado ao menos uma vez o Nome-do-Pai” (1957-58a, p. 160). Nesse sentido, podemos dizer que a estrutura psicótica evidencia a falha do Outro, a falta de significante inerente à linguagem. Ora, o que é “recusado na ordem simbólica ressurge no real” (1955-56, p.22) porque o psicótico, à sua maneira, está na linguagem e, em algum momento, ao se deparar com esta mancha inerente à linguagem, ou seja, com esta impossibilidade de tudo dizer, o sujeito pode desencadear o surto. Como teorizado por Freud, o delírio é um “remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo” (Freud, 1924 [1923], p. 169, grifo nosso). Ora, se Freud fala na abertura de uma fenda por ocasião do desencadeamento da psicose, Lacan assinala que na psicose “é realmente a própria realidade que é em primeiro lugar provida de um buraco, que o mundo fantástico virá em seguida cumular” (1955-56, p.56-57, grifo nosso), isto é, a construção delirante. Portanto, o delírio seria uma tentativa de tamponar a falha do Outro.

A partir do que foi elaborado até aqui, sustentamos que o psicótico não se posiciona na partilha dos sexos, pois não inscreve a castração. No caso Schreber, a sua transformação em mulher é uma injunção, é algo que vem de fora, que lhe é imposto pelo Outro7, por isso sustentamos que ele não se posiciona na divisão dos sexos. Cito Lacan:

(...) o delírio começa a partir do momento em que a iniciativa vem de um Outro, com A maiúsculo, em que a iniciativa está fundada numa atividade subjetiva. O Outro quer isso, e ele quer sobretudo que se saiba disso, ele quer significar (Lacan, 1955-56, p. 220, grifo nosso).

Contudo, gostaríamos de salientar que, embora Schreber não se posicione na partilha sexual, ele inventa um lugar para ele no mundo a partir do empuxo-à-Mulher. Não podemos deixar de reconhecer que foi a partir de uma árdua construção delirante que Schreber inventou uma solução elegante para a sua inevitável transformação em mulher e reconciliou-se com o pensamento de que ‘seria belo ser uma mulher e submeter-se ao ato da cópula’. Assim, a solução elegante – tornar-se A Mulher de Deus (embora não seja uma posição na partilha sexual), é uma maneira, alternativa à fálica, encontrada por Schreber, de responder ao enigma sobre o seu sexo que retornou de fora e alcançar a estabilização. Cabe ressaltar que, no caso Schreber, a concretização de sua transformação em Mulher de Deus se dará em um futuro assintótico, ou seja, ganha o estatuto de ideal que, por definição é inalcançável. Sustentamos que o fato de Schreber ter colocado a concretização de sua eviração como um ideal foi crucial para que ele alcançasse a estabilização.

Finalizamos este trabalho com algumas respostas, mas também com uma questão: a partir da solução elegante - tornar-se A Mulher de Deus - Schreber faz existir A Mulher? Ele a faz existir ou, a partir da invenção deste ideal, faz valer a impossibilidade de existir A Mulher? Nossa hipótese é a de que Schreber, ao colocar a sua transformação em Mulher como um ideal, não faz existir A Mulher, mas circunscreve A Mulher como um ponto de impossível8, o que lhe permite estabilizar e voltar à vida social9.

 

Notas

  1. Optamos por grafar mulher com letra maiúscula porque entendemos que se trata de um empuxo ao lugar da Mulher que não existe, ou seja, a exceção do lado feminino. Assim, na psicose haveria uma tentativa de fazer existir A Mulher e, portanto, a relação sexual.

  2. Psicótico que realizou 55 escritos murais sobre as pilastras do Viaduto do Gasômetro, situado entre a Rodoviária Novo Rio e o Cemitério do Caju (Guerra, 2007).

  3. Lacan (1957-58), em sua releitura de Freud, divide o Édipo em três tempos. No entanto, não os abordaremos no presente trabalho.

  4. É importante dizer que Freud nunca se encontrou pessoalmente com Schreber, portanto, a análise do caso limitou-se ao que este relatou em sua autobiografia, intitulada: “Memórias de um Doente dos Nervos”, publicada em 1903.

  5. Vale dizer que Freud o analisou bastante influenciado pelo modelo da neurose.

  6. Quinet  ressalta que o termo eviração foi “proposto por Lacan para nomear Entmanung, que significa desmasculinização, desvirilização e não emasculação, que corresponderia, antes, a uma castração” (QUINET, 2003, p. 22).

  7. Cito Schreber: “Desse modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim (em março ou abril de 1894), que tinha como objetivo, uma vez reconhecido o caráter incurável de minha doença nervosa, confiar-me a um homem de tal modo que minha alma lhe fosse entregue, ao passo que meu corpo – numa compreensão equivocada da citada tendência inerente à Ordem do Mundo – deveria ser transformado em um corpo feminino e, como tal, entregue ao homem em questão para fins de abusos sexuais, devendo finalmente ser “deixado largado”, e portanto abandonado à putrefação” (Schreber [1903], 2006, p. 67).

  8. Frisando que o psicótico não simboliza este impossível, ou seja, não se insere na lógica fálica; entretanto, a partir do delírio, pode construí-lo.

  9. Lembrando que Schreber surtou uma terceira vez, quando membros das Associações Schreber o procuraram para que ele os reconhecesse como herdeiros do legado de sua família, ou seja, quando ele foi convocado a responder de um lugar simbólico.

 

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Texto recebido em: 20/06/2007.

Aprovado em: 15/08/2007.