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FAMÍLIA E CASAL: ARRANJOS E DEMANDAS CONTEMPORÂNEAS

 


Marcela Cruz de Castro Decourt
Mestre em teoria psicanalítica - PPGTP/UFRJ
Doutora em teoria psicanalítica - PPGTP/UFRJ
Coordenadora do projeto de psicanálise aplicada ao TDAH - Núcleo Sephora de Pesquisa
Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise/RJ
mdecour@fdecourt.com.br
 


Resenha do livro:

Carneiro, Terezinha Féres (Coord.) Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. Rio de Janeiro –  Ed. PUC- Rio; São Paulo – Ed. Loyola, 2003 - ISBN: 85- 15- 02820-4  

     

Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas, coordenado pela professora Terezinha Féres-Carneiro apresenta os resultados de pesquisas universitárias desenvolvidas pelos membros do Grupo de trabalho “Casal e família: Estudos Psicossociais e Psicoterapia”, na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). O livro é constituído por 16 artigos escritos por 15 docentes - pesquisadores que atuam em dez universidades brasileiras e um professor visitante da Universidade de Paris V.

No que diz respeito aos impasses experimentados pelas famílias em função das demandas contemporâneas, estes trabalhos compõem uma publicação de importância significativa para a produção brasileira na área de estudos de família e casal na medida em que desenvolvem investigações que não dispensam os contextos sociais e clínicos nas abordagens sistêmicas e psicanalíticas apresentadas. Temas como: as transformações na família, a tarefa de educar, os impasses da meia-idade, relações familiares, função paterna e poder judiciário, avós precoces, dentre outros, são abordados, traduzindo não apenas os dilemas enfrentados pela população brasileira na contemporaneidade, mas também as novas demandas que intimam os psicanalistas a repensarem a própria técnica da psicanálise. Afinal de contas, o que seria psicanalisar diante dos novos arranjos familiares?

Dentre os artigos que compõem este livro, destacaremos aqueles que de alguma maneira discutem questões relativas ao tema da Revista aSEPHallus número 4.

O trabalho de Maria Consuêlo Passos (2003) apresenta uma análise crítica das atribuições que pesam sobre as famílias nos tempos atuais. Em seu artigo “A família não é mais aquela: alguns indicadores para pensar suas transformações”, a pesquisadora destaca a velocidade com que as famílias vêm se transformando e expandindo suas possibilidades de relações internas e de mediação com o contexto social (p. 15). Segundo ela, a velocidade destas mudanças tem promovido formas distintas de conflitos entre os membros familiares e destes com os demais grupos sociais (p. 15). Maria Consuêlo Passos considera necessário sistematizar os deslocamentos que a família tem sofrido do ponto de vista das funções e dos lugares de cada sujeito no grupo como um todo ou nas suas parcerias (p. 15).

Dentre as questões que a autora discute, destacamos os efeitos destes deslocamentos das funções e dos lugares no seio familiar sobre a criança. De acordo com a pesquisadora, um sinal importante da precariedade experimentada pela família na atualidade pode ser verificado no fato de as crianças não possuírem as referências de um outro a quem possam se submeter e assim potencializarem seus recursos de subjetivação (p. 23). A pesquisadora ressalta ainda que, diante desta realidade, resta a estas crianças o esforço de demandar, no limite de suas possibilidades, um outro a quem possam filiar-se e submeter-se, condição paradoxal, mas indispensável à inserção no universo da cultura (p. 23).

Nesta mesma perspectiva a pesquisadora Adriana Wagner (2003) apresenta em seu artigo algumas reflexões a respeito das famílias tradicionais frente a demandas modernas, procurando destacar os dilemas referentes à educação dos filhos na atualidade em função das mudanças contextuais que a família contemporânea vem sofrendo. Segundo ela, a família passa por um momento de perda de referenciais, uma vez que os modelos recebidos de gerações anteriores parecem estar obsoletos, ao mesmo tempo em que carecemos de novas estratégias e padrões educativos que, de certa forma, resultem eficazes (p. 27). A autora considera que na busca de novas alternativas, muitas vezes encontramos velhos padrões com roupagem nova (p. 27), o que torna a educação ineficaz, uma vez que os pais não adaptam suas experiências às necessidades atuais de seus filhos (p. 8).

Dentre as instâncias que são chamadas a responder no lugar das famílias contemporâneas, a pesquisadora Lídia Levy (2003) destaca a crescente busca dos pais pelo poder judiciário em relação à educação de seus filhos. Assuntos que antes se limitavam à esfera privada da família, hoje são endereçadas a um juiz para que este oriente os pais na educação dos filhos.

Segundo a pesquisadora, esta substituição da figura paterna pelo poder judiciário não é nova. Hurstel (Hurstel, 1999, apud Levy, 2003, p.35) já havia descrito as transformações da paternidade, apontando justamente para o declínio do poder social e familiar a partir do século XVII, quando o pátrio poder absoluto e natural é questionado. A instituição familiar patriarcal sofre mais um golpe quando, no início do século XX, médicos, psicólogos, assistentes sociais e educativos passam a auxiliar o poder judiciário na tarefa de vigiar as famílias. Segundo Hurstel, diante dos magistrados o pai já não tem mais o poder absoluto (Levy, 2003, p.36).

A saída apontada para este impasse descrito por Lídia Levy estaria na realização de um trabalho que pudesse ajudar pais e responsáveis na recuperação de suas competências familiares (p.44).

A professora Terezinha Féres, coordenadora do livro, respondeu gentilmente ao nosso convite de apresentar algumas considerações a mais sobre o tema em exame. Eis as perguntas que nós formulamos e as repostas que ela nos concedeu.

 

Marcela Decourt: Há mudanças na estrutura das famílias nos dias de hoje ? A que você as atribui?

Terezinha Féres Carneiro: Com certeza. As famílias hoje se apresentam com múltiplas configurações: famílias nucleares, separadas, recasadas, monoparentais, homoparentais, dentre outras. Tais configurações são decorrentes de transformações sociais mais amplas e do processo acelerado de mudança nas concepções de conjugalidade e parentalidade.

 

Estas mudanças afetaram de forma diferenciada homens, mulheres e crianças? Quem ganhou e quem perdeu com isso? Dá para fazer um balanço?

Estas mudanças afetam a todos, embora, na minha percepção, as mulheres estejam mais mobilizadas do que os homens frente a elas, expressando seus conflitos e lidando com eles de forma mais aberta. Não sei se daria para falar em perdas para uns e ganhos para outros, mas a possibilidade de transformação quase sempre pode trazer benefícios para os que se dispõem a mudar. Quanto às crianças, os novos arranjos familiares acabam por torná-las mais flexíveis e criativas.

 

O que é ser filho, pai ou mãe nos dias de hoje? Esses lugares na estrutura familiar foram redefinidos?

Estes lugares na estrutura familiar estão hoje com uma demarcação menos clara, sofrendo constantes redefinições.

 

Que funções tinha a família tradicional (antes dos anos 50/60) e a família atual? Como se distribui a função de educar, socializar, dar limites, normas e regras, transmitir hábitos, valores e um modo de inserção na comunidade entre a família e outras instituições?

Na família tradicional, os papéis, as regras, os limites, a transmissão de hábitos e valores eram muito mais rígidos. Na família contemporânea, a educação dos filhos tem sido muito mais delegada à escola e aos meios de comunicação, e os cuidados aos especialistas. Eu diria que os filhos estão precisando ser mais vistos pelos pais cuja função junto a eles é insubstituível.

 

Você é contra ou a favor da tese de que existe um declínio da autoridade paterna na família? É possível educar por meio de relações simplesmente igualitárias entre pais e filhos?

Podemos até dizer que estamos assistindo a um declínio da autoridade paterna. Mas, sem dúvida, os pais e as mães estão hoje com muita dificuldade de exercer sua necessária autoridade. A família não é um grupo de iguais. Querendo que a família seja democrática, os pais confundem autoritarismo com autoridade. A família precisa ser hierarquizada pois os filhos, para se desenvolveram de forma saudável, necessitam da autoridade parental.

 

Você acha que as pessoas hoje dão menos importância à diferença sexual e geracional? Isso afeta os novos arranjos conjugais e parentais ? Como as crianças e adolescentes reagem às famílias recompostas, monoparentais e até homoparentais?

Sem dúvida, as diferenças de gênero e de gerações são hoje muito mais fluidas e isto afeta as configurações familiares. As crianças e os adolescentes têm muito mais recursos do que podemos imaginar para assimilar tais mudanças e, em geral, reagem muito bem aos novos arranjos da família.

 

Há uma relação clara, na sua longa experiência clínica, entre os novos arranjos conjugais e parentais e os novos sintomas infantis?

Os sintomas infantis do passado e da atualidade me parecem muito mais relacionados ao modo como o casal conjugal e o casal parental promovem, ou não, a saúde emocional na dinâmica familiar, do que aos novos arranjos.

 

De acordo com a sua experiência clínica, você diria que a família, os casais e a infância contemporâneas, cada uma delas, padece de que novos sintomas? Do que se queixam? O que se pode fazer?

Eu diria que os casais se queixam sobretudo de um desencontro de ritmos e desejos: as mulheres se questionando mais, buscando mais mudanças, e considerando mais a possibilidade de ruptura da relação, e os homens mais acomodados, buscando evitar conflitos e, na maior parte dos casos, querendo manter a relação conjugal mesmo quando estão insatisfeitos. Na família, os pais parecem se sentir impotentes e confusos em relação ao uso de sua autoridade, e os filhos parecem estar onerados com as conseqüências de uma pseudo autonomia e de um excesso de expectativas em relação às múltiplas competências que devem demonstrar.


Texto recebido em: 04/09/2006.

Aprovado em: 28/12/2006.