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 A ESCOLA DE LACAN E A FORMAÇÃO DO PSICANALISTA

 



Mirta Zbrun
 

Doutora em Teoria Psicanalítica. PPGTP-UFRJ.
Membro da Escola Brasileira de psicanálise
Membro da Associação Mundial de Psicanálise
Diretora do CLAC - Centro Lacaniano de Atendimento e Consulta.
mirtazbrun@terra.com.br

 

Resumo

Exame da Escola criada por Lacan e a formação do analista, com as questões que lhe são essenciais: o fim da análise, o procedimento do passe e a formação dos psicanalistas. Noções estas tratadas como conceitos e não como preceitos. Partindo do movimento psicanalítico a tese examina a Sociedade Psicanalítica criada por Sigmund Freud, as outras sociedades geradas no decorrer desse movimento para demonstrar idéia central de que ‘não há analista sem Escola’.

Palavras-chaves: movimento psicanalítico, sociedades psicanalíticas, formação analítica, Freud, Escola de Lacan, fim de análise, passe.

 

   
 

 

  THE LACAN'S PSYCHOANALYTICAL SCHOOL AND THE FORMATION OF THE ANALYSTS.

Abstract

Examines the Psychoanalytical School created by Jacques Lacan, treating its essential issues: the pass procedure and the formation of the analysts. These notions are treated as concepts and not as precepts. Beginning with the Psychoanalytical Movement, the thesis analyses the Psychoanalytical Society created by Sigmund Freud and the other societies issued from it, and sustains the central idea that there is "no analyst without school".

Keywords: psychoanalytical movement, psychoanalytical societies, analytical formation, Freud, The Lacanian School, end of analysis, pass.

 

 

A tese sobre “A Escola de Lacan e a formação psicanalítica” leva ao exame externo um tema de atualidade no movimento psicanalítico, a Escola criada por Jacques Lacan, com as questões que lhe são essenciais: o fim da análise, o procedimento do passe e a formação dos psicanalistas. Noções essas que pretendi tratar como conceitos, e não como preceitos. Partindo do Movimento Psicanalítico, minha tese examina a sociedade psicanalítica criada por Sigmund Freud e, as outras sociedades geradas no decorrer desse movimento, para demonstrar o que defendo: “não psicanalista sem Escola”.

Estudar hoje a Escola de Lacan e a formação do psicanalista fora do recinto das próprias instituições que desde sempre formaram os analistas não parece um desafio menor, uma vez que coube a elas essa delicada e difícil missão.

No início do século XXI, pouco mais de 100 anos depois do surgimento da psicanálise de Sigmund Freud e 40 anos após a “Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola”, de Jacques Lacan, apresentar uma tese sobre o assunto é um desafio que empreendi por considerá-lo tão necessário quanto instigador.

Ao trazer para a academia, a instituição psicanalítica, a Escola de Lacan, o procedimentos do passe e o fim da análise pretendi examiná-los e avaliá-los com o rigor que lhes cabe. Dessa forma, introduzir-se-iam e por-se-iam à prova da demonstração acadêmica a própria existência do grupo psicanalítico e a formação que ele dispensa. Tratei, pois, de estudar a Escola de Lacan e a formação do psicanalista com ênfase nas relações entre o fim da análise e o dispositivo do passe. E tratei de examinar com cuidado o que se comprova como sendo o produto de uma análise: o analista.


A Escola de Lacan e a formação do psicanalista

Na minha tese, procurei defender a idéia de que sem a Escola – seu conceito e seu dispositivo – não há como existir o psicanalista. As razões epistêmicas, contidas no “Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris”, de 1964; as razões clínicas, apresentadas na “Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola”; e as razões políticas, enunciadas na “Carta de Dissolução”, de 1980, justificam a idéia deste estudo – de que é nessa conjunção de conceitos, noções e acontecimentos que se dá a formação do psicanalista. Abordo a sociedade psicanalítica criada por Sigmund Freud, sociedade que está na origem do acontecimento chamado “Movimento Psicanalítico”. Investiguei também as sociedades psicanalíticas que dele se originaram na Europa e na América.

A história do movimento psicanalítico forneceu-me elementos necessários para pensar a formação psicanalítica na sua primeira época. Empreendo o exame da fundação e da dissolução da Escola Freudiana de Paris sua contra-experiência − a Escola da Causa Freudiana −, assim como a criação da Associação Mundial de Psicanálise. Trato da Escola de Lacan e exploro os textos institucionais sobre a Escola e sobre o passe, especialmente o “Ato de Fundação” e a “Proposição de 9 de Outubro” para dar conta dos eixos essenciais à formação do psicanalista: o fim da análise e o procedimento do passe, seus paradoxos e impasses, assim como as novas perspectivas do passe, para demonstrar que não há analista sem Escola e que a formação do analista supõe o fim da análise e o procedimento do passe.

A idéia central desta tese sobre a Escola de Lacan e a formação do analista encontra seu corolário nas premissas mencionadas, que organizam a concepção central da tese: só há fim de análise quando existe a nomeação do objeto na entrada em análise, quando se da a travessia da fantasia e a identificação ao sinthome; só há analista quando a Escola por meio do dispositivo do passe garante a sua ex-sistência – o que virá confirmar a tese de que “não há analista sem Escola”.  Para demonstrar essa formação do psicanalista de forma rigorosa e adequada no ambiente formal da universidade, considerei necessária a racionalização desse campo de noções mediante os matemas que o definem. É por esse ordenamento dos conceitos freudianos que é possível ver o surgimento de uma formação psicanalítica, além da identificação ao analista. Uma formação que leva em conta os postulados freudianos do além do princípio do prazer e da pulsão de morte e suas conseqüências para o sujeito.

Na minha investigação, tentei dar soluções aos impasses dessa particular formação do analista, diferentemente da formação desenvolvida nas sociedades criadas por Freud. A formação do psicanalista, que esta tese propõe, é tributária dessa clínica do “último ensino de Lacan”, que pretende ir além do impasse freudiano do fim da análise com a dualidade finita ou infinita.

A investigação que realizo segue, portanto, esse desafio teórico e científico que o ensino de Jacques Lacan elevou ao grau máximo de exigência intelectual.  Com o estudo do tema do fim da análise e do passe, proponho uma tese que se sustenta numa dupla fórmula: por um lado, saber se o sujeito acede a uma posição que ex-siste ao sentido, ou seja, e tendo passado pelo sentido, acede ao “real fora do sentido”, ao “real sem lei”; e, de outro, considerar a formação do psicanalista como um saber-fazer com a linguagem.

 

Os antecedentes da Escola de Lacan: as Sociedades Psicanalíticas

Para falar da Sociedade Psicanalítica criada por Freud, a Sociedade Psicanalítica Internacional (IPA), me remonta a Viena do começo do século XX, capital do Império Austro-Húngaro, onde irromperam acontecimentos que marcaram e moldaram em definitivo a fisionomia intelectual do Novecento, na Europa e no mundo, e que tiveram influência decisiva na filosofia e na cultura contemporâneas. Mas entre os acontecimentos que irrompem nessa época em Viena, nenhum irá superar, em termos de irradiação universal, o aparecimento da figura de Sigmund Freud. Médico radicado em Viena, cuja formação se fizera no Hospital Salpetrière, em Paris, com Charcot, Sigmund Freud foi não só o criador da psicanálise – que lhe permitiria desvendar o drama humano do desejo e abrir ao conhecimento o campo da subjetividade (uma teoria e uma prática que transformariam profundamente a cultura do homem ocidental) –, como também o inspirador e organizador de um movimento psicanalítico internacional destinado a formar os analistas e a difundir a regra da operação psicanalítica no mundo.

Não parece fora de propósito, para situar ainda hoje o estatuto da psicanálise, rever suas origens e os desafios históricos que teve de superar para sobreviver num mundo acadêmico hostil. Para fazer frente a esse “inexorável destino”, Freud dedica a maior parte de sua existência a desenvolver a teoria de uma prática de tratamento da neurose baseada no método psicanalítico por ele inventado. No início do século XX e após a publicação da grande obra que foi a Traumdeutung, jovens médicos se agruparam ao redor de Freud com o propósito claro de aprender, exercitar e difundir a psicanálise, em busca de uma formação psicanalítica.

As três vertentes do que virá a ser a formação de um psicanalista – análise pessoal, supervisão da prática e estudo da teoria – estão ali definidas pelo seu inventor, quando afirma que o que os jovens médicos buscavam ao se aproximar dele era aprender, exercitar e difundir a psicanálise a partir da experiência de alguns que já haviam comprovado a eficácia da terapêutica analítica. Logo, uma diáspora porá fim ao dispositivo que Freud erguera no coração da capital do antigo Império Austro-Húngaro, e o próprio criador da nova ciência do inconsciente desloca-se de Viena para Londres, movimento conhecido como o Revisionismo Pós-Freudiano.

Alguns dos seus discípulos e seguidores fugiriam da Mitteleuropa em direção ao exílio nos Estados Unidos. Decidiram tomar a obra “O Ego e o Id como o texto a partir do qual reinterpretariam toda a obra de Freud, ou melhor, ficariam somente com o que na totalidade da obra se harmonizaria com o ego e o id.  Será na América do Norte onde a autonomia do ego alcançará todo seu vigor e toda sua força, ao ser defendida por uma série de nomes que, naquela época de entre - guerras, migraram para o Novo Mundo, especificamente para os Estados Unidos. A região da América do Sul ficará sob a influência da IPA em Londres. 

Ao avaliarmos hoje a história do movimento psicanalítico na França, vemos que ela não contraria a tendência geral apontada por Freud, embora apresente características próprias, ao introduzir elementos conceituais que vão determinar o aparecimento de uma nova época para a teoria e a prática da obra freudiana na França e no mundo. Nos anos do pós-guerra, a SPP - Sociedade Psicanalítica de Paris (fundada em 1921) estará fortemente apoiada nas lideranças de Sacha Nacht, Daniel Lagache e Jacques Lacan.  Quando Jacques Lacan é nomeado diretor do instituto da SPP por Sacha Nacht, terá início a crise que desembocará na “cisão” dentro da primeira sociedade francesa de psicanálise. Lacan possuía as condições de realizar um “retorno a Freud”, que produziu uma verdadeira reviravolta na história do movimento psicanalítico e, como conseqüência, na formação dos analistas, ao superar o revisionismo proposto pelos pós-freudianos.

 

A Escola de Lacan fundada em 1964.

A minha investigação trabalhou com três momentos produzidos pelo movimento psicanalítico francês: a “cisão”, em 1953, da Sociedade Psicanalítica de Paris -SPP quando um grupo de seus membros se desliga para fundar a Sociedade Francesa de Psicanálise - SFP; o segundo momento seria a “exclusão”, em 1963, de Jacques Lacan da lista dos membros dessa sociedade, exclusão essa denominada por ele “excomunhão”;  e o terceiro momento na França, o da “dissolução”, em 1980, da Escola Freudiana de Paris. (Lacan, 1980).

As idéias de Lacan sobre a Instituição psicanalítica e a formação do psicanalista são examinadas na minha tese não através da idéia de um lacanismo como um movimento observado de fora, mas a partir de uma leitura da obra de Freud realizada por Lacan, por meio de uma apropriação dos conceitos que gera condições para uma ”nova formalização da formação do psicanalista”. O essencial foi verificar como se dá a produção do conceito de “escola” e quais as bases, a partir de 1964, que darão sustentação à formação do psicanalista.

Através de seu conceito, a Escola de Lacan intentaria dar uma nova forma à velha questão que percorreu todas as sociedades psicanalíticas: deverá, na sua prática institucional, responder a pergunta sobre quem é o “psicanalista”. O conceito de Escola reúne sujeitos que se dizem analistas, mas ela pretende complicar essa nomeação que ele se dá. Na Escola, o psicanalista, se “autoriza por si mesmo”.

A Escola, através de seu conceito, pretende resolver o espectro dessas condições e recentrar o problema da garantia de que é um analista. Assim, a instituição fundada por Jacques Lacan responde à estrutura do não - todo, onde os psicanalistas, sujeitos divididos quanto a seu desejo, não podem apelar ao Um da exceção na Escola, ao menos um, que funda o todo. Na Escola de Lacan, “procede-se pela imersão do sujeito em um meio que agita a falta de saber, e é o que mais importa”. (Miller, 2001) A Escola de Lacan é o lugar para onde convergem os paradoxos que engendra o postulado da formação do psicanalista: alguém que é produto de uma análise − e que, portanto, se forma num tratamento − e do saber que ele deve deter para a realização da prática futura da psicanálise.

 

A formação psicanalítica e o fim da análise

O psicanalista se forma, é um fato e uma necessidade; não há psicanalista nato; se houvesse psicanalistas natos, não seria preciso formá-los, seria suficiente descobri-los. Em 1910, no momento da criação da Sociedade Psicanalítica Internacional - IPA, recomendou-se a análise pessoal, que logo se torna obrigatória, para a formação do psicanalista. Em 1936, Sigmund Freud escreve um de seus últimos textos. (Freud, 1934) É possível e necessário fixar um tempo para o tratamento? Existe algo que possa chamar-se de término natural de uma psicanálise?  Freud chegou ao ponto em que se marca um limite para uma análise, mas, ao mesmo tempo, esse limite aponta para um além, sendo então possível relançar o processo para, de alguma maneira, torná-lo terminável. O retorno a Freud que Jacques Lacan preconiza tem, na temática do fim da análise, uma importante fundamentação na concepção freudiana sobre a análise como um tratamento que pode ser interminável.  A elaboração freudiana do fim da análise será levada as suas últimas conseqüências no ensino de Jacques Lacan.

O fim da análise como a travessia da fantasia. No primeiro momento de seu ensino, Lacan situa o fim da análise em relação à fantasia, sendo o sintoma aquilo que se precipita na formalização da entrada em análise. A travessia da fantasia é uma construção das condições de gozo do sujeito e das suas modalidades. A idéia lacaniana de uma falta fundamental no simbólico, esse vazio criado pela falta de um significante para nomear o Todo, transforma a linguagem num todo não-consistente. É o que a fantasia comprova, conquanto a fantasia fundamental seja uma frase gramatical que surge para nomear essa falta. A travessia da fantasia é a construção de um fragmento de real que entra no simbólico na forma de uma frase gramatical e que não pode ser explicada. Seu sentido não pode ser explicitado, seu valor não é semântico, ela vale por si mesma, embora seja capaz de reconstituir um pedaço do real.

O fim da análise como identificação ao sinthome. A partir dos anos setenta, tendo como suporte o nó borromeano, Jacques Lacan (1975-76) se afasta da clínica do sentido para ir em direção a uma psicanálise fora do sentido, uma psicanálise sem ponto de basta. Nesses anos haverá um deslocamento do fim da análise como atravessamento da fantasia para o fim da análise como identificação ao sinthome. A oposição entre sinthome e inconsciente significa que Lacan pode desenvolver a natureza do sinthome, sem fazer referência ao inconsciente. Isto porque James Joyce dá a Lacan “a prática da sua escrita”. Lacan diz no Seminário XXIII, Le sinthome, que ele «tenta introduzir alguma coisa que possa ir mais longe que o inconsciente para chegar ao “sinthome”.

O sinthome é o que há de mais singular em cada individuo” segundo afirma J.-A. Miller nas aula de seu curso de 14 de março de 2007. Defendo, na minha tese, que para demonstrar a validade do fim da análise como identificação ao sinthoma é necessário colocar -sintoma e fantasia- dentro do mesmo parêntese e obter com isso a definição Sinthome (Sintoma + Fantasia). Foi James Joyce que inspirou a Lacan o seu último ensino e sob esse novo ângulo, sob essa nova perspectiva, a diferença entre as duas dimensões clínicas do sintoma e da fantasia se desvanece; trata -se sempre de um olhar sobre o “saber - no - real”.  Há uma desvalorização da palavra que significa que Lacan põe pelo avesso seu ensino, constituindo uma reviravolta completa, em que não se trata mais do inconsciente estruturado como uma linguagem, mas da “estrutura elevada ao nível do real”. E produz um deslocamento do “conceito de linguagem”, sendo substituído pela “elucubração”, colocada esta como uma noção central da “Psicanálise fora - do - sentido”.

Defendo que na psicanálise, como “elucubração”, o que faz laço não é mais o “ponto de basta”, (ponto de estofo) e sim o nó borromeano. O sinthome (Seminário XXIII) como “fora – do –discurso”, como o incurável, interroga o próprio discurso psicanalítico. Isso constitui o sinthome para cada sujeito, seu núcleo inanalisável, que Freud chamou de “o rochedo da castração”.  A interpretação que Jacques Lacan faz do conjunto da obra de James Joyce, além de dar ao sintoma um estatuto de sinthome, também lhe servirá para novas propostas sobre temas da teoria psicanalítica, como o do Pai-sintoma, que universaliza o sintoma, pluraliza o Nome-do-Pai e o transforma em sinthome. 

O sinthome é um ponto de chegada, o limite, o fim da análise, e na minha tese, esforcei-me para demonstrar seu valor de uso com a finalidade de fazer existir um fim possível da análise, um fim que diz respeito à formação do psicanalista.  Assim o psicanalista não poderá ser somente um médico da alma, conhecedor da biologia e as técnicas científicas para diagnosticar e curar, porque o fim da análise como identificação ao sinthome, significa ter alcançado um “saber - fazer” com seu sintoma, um saber - fazer com seu gozo, saber virar-se com o real do seu gozo. Pensar a psicanálise fora do sentido é pensar “o não-sabido, que se sabe, a partir de um equívoco”. (Lacan,1976-77)

Defendo que, no sistema de Lacan, o sintoma é sempre uma ficção do inconsciente, uma parte do discurso do Outro, e após a dissolução desse sistema de Lacan, o que vem como sinthome «não é uma função do inconsciente».  Vou citar como exemplo dessa construção Joyceana da qual Lacan se apropria para a sua criação do “amar ao sinthoma”, um significativo trecho da transcrição de Haroldo de Campus, fragmento 5 do “Panorama do Finnegans Wake” onde lemos:

“Aos quais, se alguém tiver estômago para aditar as fraturas, soergueduras, distorções, inversões de toda essa artifeita câmeramúsica, esse alguém então, dado um dedo de boa-vontade, há de ter uma bela chance de ver de vista o dervixe remoinhante, Tumultus, filho do Trovão, autoexilado por alto recreio de seu ego, tremetremendo noitadentro noitafio entremixto aos aurrores branco-rubros, meiodiaterrado desde a pele ao osso por um fantasma inelutável (que o Fazedor tenha mercíades dele!) escrevendo o mimstério de sivendo no moviliário furnituro” (Joyce apud Campos, 1971, p. 49).

 

A Escola de Lacan e o procedimento do passe

Defendo que o conceito de Escola, os princípios do passe e as normas que regulam a formação do psicanalista contidos nos textos institucionais redigidos por Jacques Lacan “Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris” (1964), “Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola” e “Carta de Dissolução” (1980), ao articular a Escola e o passe - podem demonstrar como a Escola de Lacan, -diferentemente das Sociedades Psicanalíticas-, se engaja na formação do psicanalista. 

Uma das minhas premissas foi afirmar que o desejo de Lacan conduzirá a Escola a assumir uma forma de existir além do complexo do Édipo: será a forma de uma estrutura baseada numa série, tal qual um conjunto inconsistente, um não - todo de sua práxis como formação e a supervisão dos psicanalistas em formação.  Desse modo, o Não - todo da Escola de Lacan será compreendido como uma experiência inaugural pelo fato de que, a cada um que a ela adira se imporá a subjetivação de sua experiência na Escola, a subjetivação da Escola.

A Escola será uma comunidade capaz de se interpretar, isto é, de dar conta de uma realidade nova na formação dos psicanalistas.  E o procedimento do passe é um instrumento que deve permitir à Escola pensar a sua prática, diferenciando o “momento do passe” – que se realiza dentro do dispositivo analítico, na análise – do “procedimento do passe”, o que J. A. Miller chama de “passe duplo”.  Defendo que é nessa conexão paradoxal, entre o se autoriza por si mesmo e a garantia que a Escola outorga, que deverá ser pensada a formação analítica.  Porque há um saber na formação do psicanalista que é adquirido na análise e que o procedimento do passe pretende verificar.

Com o dispositivo do passe, Lacan introduz sua Escola no coração da experiência analítica, enquanto o procedimento do passe designa o momento extremo da experiência analítica do sujeito.  Encontro na orientação do simbólico que se dirige ao real –presente no último ensino de Lacan a partir dos anos setenta- o ponto fundamental para pensar os paradoxos do passe. Nesse novo contexto do real sem lei, observo que não se trata mais de se deter no significante e no sentido do significante. O passe é uma história que um sujeito conta, “a respeito do real”, e nele se deverá distinguir  real e semblante. O procedimento do passe é oferecido pela Escola de Lacan, é ofertado como um risco possível, e supõe que se confie na teoria do passe, nos passadores, no júri, -cartel do passe-, na Escola, para aceitar um tal oferecimento. 

As duas experiências – a do “momento do passe” na análise e a do “procedimento do passe” – não devem ser confundidas, porque o procedimento do passe não é obrigatório na Escola de Lacan, não se estabelece que o fim da análise deva ser autenticado no dispositivo do passe. 

Defendo na minha tese que as novas perspectivas sobre a teoria do passe devem ser pensadas a partir do dispositivo do passe, visto como um elemento essencial ao conceito de Escola de Lacan. Isso implica reconhecer na história do movimento psicanalítico a partir de 1964, a colocação desse dispositivo em funcionamento.  A minha segunda idéia sobre as novas perspectivas do passe consiste em pensar que o “conceito” de Escola se completa com a categoria do fim da análise e com o procedimento do passe. A Escola de Lacan é, assim, o conceito-chave que garante a formação do psicanalista. A construção da história que o sujeito faz no passe, que é um artifício, corresponde à psicanálise do primeiro ensino de Jacques Lacan.

Porém, defendo que há uma mudança na conceituação do passe na medida em que nesse último Lacan utiliza-se do nó borromeano como aquilo que é capaz de isolar um “real sem lei”.  O passe modifica assim a própria noção de processo analítico, como diz Jacques Lacan: “o passe modifica um pouco, porém muda a demanda de análise com fins de formação”. O passe vem possibilitar o fenômeno específico da existência de um conjunto de analistas e tentar dar conta do analista, da possibilidade de se transmitir o que é um analista.

A transmutação que o último ensino de Jacques Lacan operou sobre o sentido, sobre o rechaço do sentido, trouxe a instância do sinthome como essencial para sua clínica, na qual não mais se pensa nas duas dimensões do sintoma e da fantasia, senão no sinthome.  Defendo que a clínica psicanalítica que se depreende do conceito da Escola de Lacan funda uma prática cuja entrada em análise se dá pela via do sintoma, constituído como sintoma analítico, que se estabelece quando uma interpretação nomeia a fantasia e termina na identificação ao sinthome. 

Penso ser fundamental a reflexão teórica sobre o lugar do passe na instituição psicanalítica e na formação do psicanalista. Essa reflexão deve abrir para novas propostas não somente sobre a reconfiguração do procedimento do passe, tendo em conta o papel da Escola de Lacan, na sociedade contemporânea e na formação do analista. Esse processo exige uma permanente crítica e a renovação da instituição analítica, reafirmando assim o papel da Escola de Lacan em seu valor de verificação da existência da análise e como meio de formação do psicanalista.

 

O analista

A formação de um psicanalista implica, assim, levar a análise a esse ponto-limite onde o objeto vira dejeto, onde sintoma, significante e letra se equivalem. Ela consiste em chegar à produção dessa equivalência – letra, resto, lixo, uma mensagem, e também um objeto.  Para o analista lacaniano, é essa equivalência o que a insígnia faz.

Um analista-lettre (carta) é um analista-signo, que define seu significado não somente como significante, mas pela sua natureza de objeto.

Um analista-litter (lixo) é um analista-resto, um analista-lixo, um objeto que deve ser interrogado no campo da linguagem a partir da escrita. Por fim, se a finalidade da formação de um psicanalista não consiste somente na aquisição de um saber, mas também em ter adquirido certas condições subjetivas, uma transformação do seu ser, que nunca é somente íntima, que se tornou pública, então, lá, onde no início da análise tínhamos gozo autista, a análise faz aparecer um analista, operando sobre os sintomas para produzir um efeito especial de significação.

O psicanalista será uma letra, um lixo, uma carta sempre a caminho...

Como diz o poeta:

“Baste a quem baste o que lhe basta.

O bastante de lhe bastar!

A vida é breve, a alma é vasta:

Ter é tardar”.

(Fernando Pessoa, in Mensagem)

 

 

Texto recebido em: 11/03/2007.

Aprovado em: 10/04/2007.

Nota

1. Texto da defesa de doutoramento em Teoria Psicanalítica no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a Orientação da Prof. Dra. Tania Coelho dos Santos.

 

Referências Bibliográficas

campos, H.; campos, a. Panorama do Finnegans Wake. James Joyce. São Paulo: Perspectiva, 1971.

FREUD, Sigmund. (1934) Análisis Terminable e Interminable. In: Obras Completas, Madrid, Editorial BN, 1967, vol. III, p. 540-572.

MILLER, J.-A. (2001) Resposta ao Che Vuoi? sobre a Formação do Analista. In: Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 31, São Paulo, set / 2001.

LACAN, J. (1980) Carta de Dissolução. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, Campo Freudiano no Brasil, 2003.

_____________. (1975-76). Le Séminaire. Livre XXIII: Le Sinthome. Paris: Éditions du Seuil, 2005, p. 19-20.

_____________. (1976-77) Le Séminaire. Livre XIV: L’insu que sait de l’une-bévue sáile à mourre, inédito, aula de 16 de novembro de 1976.