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 HIPERATIVIDADE: NOVOS SINTOMAS DE ORDEM E DESORDEM

 


Simone Bianchi
D.E.A. pelo Département de Psychanalyse de Paris VIII
Especialista em Psicanálise - UFF
Psicanalista, correspondente da EBP-Rio de Janeiro
sincaroch@hotmail.com 

 

Resumo

Em conseqüência das transformações na família que decorrem dos efeitos do discurso da ciência, tais como, o apagamento da diferença sexual e o declínio do Nome-do-pai, encontramos a hiperatividade como um novo sintoma na clínica com as crianças.

Palavras-chave: sintoma, significante, objeto, gozo.

 

   
 

 

  HIPERACTIVITY: NEW SYMPTOMS TO ORDER AND DISORDER

Abstract

Due to the transformations in family from science guideline effects such as erasing of sexual difference and the decline of the Name of the Father, we find hyperactivity as a new symptom in treating children.

Keywords: Symptom, significant, object, joy.

 

 

Introdução

Hoje, nos deparamos com a criação de uma nova sintomatologia psiquiátrica: a hiperatividade. Originalmente a psiquiatria a classificou como um distúrbio do comportamento, designando-o como uma “agitação”. Assim, temos uma aproximação de dois termos: agitação e hiperatividade. Trata-se de um corpo vivente onde o movimento do sujeito é considerado desordenado ao olhar do observador. No entanto, é preciso fazer uma distinção entre esses dois termos na clínica. O primeiro refere-se à clínica do olhar, e necessita de um Outro consistente, Outro da lei que reconheça o sujeito agitado. Existe aí um julgamento de valor, que incide sobre a distinção entre os comportamentos socialmente apropriados e aqueles que são impróprios. O segundo também se refere à clínica do olhar, mas comporta uma nova segregação em nome da ciência. O hiperativo não é somente um agitado, mal-comportado. O hiperativo é um quadro clínico e como tal destitui o Outro consistente da lei, substituindo-o pelo novo “homem sem qualidades”,1 o indivíduo estatisticamente padrão. A ciência moderna busca enquadrar os sujeitos, a partir de uma norma do comportamento ditada pelos estudos estatísticos, comparativos, que não se importam com a singularidade. Assim, a criança hiperativa é identificada por um comportamento fora da norma, pois a ciência quantifica seu comportamento e estabelece que se trata de um sintoma que desvia do normal.

A partir dos anos vinte, a escola francesa de psiquiatria composta por Henri Wallon, Julian de Ajuriaguerra, Serge Lebovici, René Diatkine e Michel Soulé, propõe-nos a noção de “instabilidade motora”. Para esses autores, a hiperatividade é uma manifestação sintomática de um comportamento ansioso; ou uma defesa maníaca frente à depressão baseando-se no conceito kleiniano. A escola anglo-saxônica escolhe uma concepção neurológica e generaliza o uso do termo hiperatividade, que inicialmente designava os comportamentos oriundos das seqüelas das encefalites. Sua hipótese orgânica eleva o distúrbio à mesma dimensão das lesões cerebrais, um disfuncionamento cerebral, o que os leva a fazer uso da substância anfetamina para tratá-lo. Nos Estados Unidos já foram publicados diversos artigos, apontando a eficácia do tratamento com esta substância em crianças. O DSM III e IV propõe a terminologia “Transtorno de déficit de atenção/hiperatividade”, o que abre a possibilidade de que ele seja tratado pelo cognitivismo comportamental. Inicialmente esse transtorno era isolado, mas hoje em dia ele é associado a outros, tais como o transtorno da aprendizagem, da linguagem, do comportamento e da ansiedade.

 

A pantomima do sujeito

Podemos nos perguntar: qual é o parceiro do sujeito hiperativo? O olhar que o vigia, o avalia e o classifica? Ou um discurso que ele ignora? Partimos da hipótese de que a hiperatividade, chamada pelo behaviorista de distúrbio do comportamento, seja a pantomima de um texto à espera de ser lido. As terapias cognitivas comportamentais visam o retorno da ordem dos distúrbios do comportamento, onde o corpo aparece com a capacidade instintual de adaptação a ser reeducado. O behaviorista, aliando-se ao discurso do mestre, pretende ter uma solução para a provocação do comportamento, foracluindo um além da psique. Para nós, a hiperatividade é uma resposta do sujeito frente à insegurança linguageira que enrijece desde seu encontro com o buraco da significação da língua, confrontando-o a um impossível de dizer, frente ao excesso de gozo que invade seu corpo e o deixa fora do discurso.

Algumas crianças hiperativas nos mostram a dificuldade que elas têm de alojar o seu ser vivente no sistema significante. Seu ser, seu corpo, seus pensamentos encontram-se tomados por uma submissão extrema ao Outro da demanda, posto que este não as orienta para o Outro do desejo, ou o desejo se declina como pura vontade de gozo. Para outras crianças, o sintoma de agitação vem no lugar onde o Outro do desejo não pôde responder ao gozo pulsional, onde o Outro do significante não pôde escrever uma resposta para dar conta do gozo.

 

O falo hiperativo

Pensar a hiperatividade como um transtorno da atenção é sublinhar que a atenção da criança está transtornada pelo excesso libidinal da mãe, que a mantém em posição de objeto fetiche. Maryse Roy (2001, p. 67) nos propõe considerar as crianças hiperativas como crianças-sintomas, uma versão da histeria feminina moderna, onde a criança hiperativa é o falo hiperativo da mãe, o que vem saturar a sua falta. Assim, o sintoma da criança é uma modalidade de resposta frente à falta da mãe.

Lacan, ao retomar a concepção freudiana do objeto no movimento psicanalítico pós-freudiano, articula a relação do sujeito com o objeto em três níveis sincrônicos: imaginário, real e simbólico. Temos aqui três elementos presentes: o sujeito, o objeto e o Outro como agente da operação. Essa noção do Outro encontramos desde Freud sob a forma de sedução na relação mãe-criança. Winnicott aponta uma relação de dependência da criança com a sua mãe, mas a ausência de articulação da função simbólica reduz a relação do sujeito ao Outro a uma relação dual, imaginária.

No seminário “A relação de objeto”, Lacan introduz uma primeira subversão não falando mais da relação de objeto, e sim da relação do sujeito à falta do objeto. A partir dessa articulação da relação de objeto com a falta, Lacan formula uma versão do complexo de Édipo em três tempos que não são cronológicos, mas sim lógicos: frustração, privação e castração.

No primeiro momento, a criança procura satisfazer o desejo da mãe, ou seja, ser ou não ser o objeto de desejo da mãe. Trata-se da identificação do sujeito no espelho com aquilo que é objeto de desejo da mãe. Ser o objeto de desejo do Outro materno é o que caracteriza esta primeira etapa, a qual a criança quer ocupar o lugar do falo imaginário, uma posição de sujeição. A primazia do falo já está instaurada no mundo pela existência do discurso e da lei.

No segundo momento, o pai aparece como aquele que priva a mãe de seu desejo e é portador da lei. É necessário sublinhar que o que está em jogo é a privação da mãe. Assim, o pai é aquele que priva a mãe de colocar a criança como o objeto de seu desejo, seu falo. É importante que a mãe estabeleça o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho. Deste modo, o pai pode ser aceito ou não pela criança como aquele que priva ou não a mãe de seu objeto de desejo. Este é um ponto nodal e negativo, em que:

“aquilo que desvincula o sujeito de sua identificação liga-o, ao mesmo tempo, ao primeiro aparecimento da lei, sob a forma desse fato de que a mãe é dependente de um objeto, que já não é simplesmente o objeto de seu desejo, mas um objeto que o Outro tem ou não tem”. (Lacan, 1957-58, p. 199)

No terceiro momento, o pai intervém como aquele que tem o falo, ele é um pai potente. Esse tempo se sucede à privação ou à castração que porta a mãe. É justamente o fato de que o pai tem o falo que ele aparece como ideal do eu no sujeito. Do lado do menino, é preciso se identificar com o pai como possuidor do pênis; e do lado da menina, reconhecer o homem como aquele que o possui. A identificação que pode ser efetuada com a instância paterna foi realizada nesses três tempos. Primeiramente, o pai se introduz de uma forma velada. Em segundo lugar, o pai se apresenta como privador e aquele que porta a lei. E em terceiro lugar, o pai é visto como o portador do falo.

Vejamos as três formas da falta do objeto distintas por Lacan no esquema abaixo:

 

 

A frustração é definida como uma operação imaginária, onde o objeto é real e o seu agente é o pai simbólico. Inicialmente Lacan havia pensado a mãe simbólica como agente desta operação. Mas, ele nos diz que por trás dela está o pai simbólico intervindo na relação mãe/criança. Já a privação é considerada uma operação real, em que o objeto é simbólico e o seu agente é o pai imaginário, enquanto que a castração é uma operação simbólica referida a um objeto imaginário e o seu agente é o pai real.

É essencial que a criança não seja tudo para a sua mãe e que, enquanto mulher, ela possa localizar o objeto do desejo para um homem. É claro, que essa afirmação mostra uma perspectiva nova, onde o pai é aquele que está père(pai)-versamente orientado para uma mulher fazendo desta, o objeto a que causa seu desejo.

 

A criança e a família

No artigo: “Os complexos familiares”, Lacan (1938) nos fala que não há instinto familiar natural. A família é uma invenção simbólica como marca Lévi-Strauss. Ela é uma resposta simbólica ao real do sexo já que não se pode escrever simbolicamente a relação sexual entre um homem e uma mulher. Portanto, a família escreve a relação pai-mãe.

Vejamos essa passagem na “Nota sobre a criança”: “A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como o objeto a na fantasia.” (2003, p. 3770) Temos, então, a criança não como um ideal dos pais como Freud abordou, mas sim, tomada no gozo, seja o seu ou o de seus pais. Na metáfora edipiana clássica, o pai é aquele que responde ao desejo da mãe para produzir a significação fálica, sendo sua verdadeira função a de unir um desejo à lei.

No ensino de Lacan temos o deslocamento do estatuto da criança como o falo da mãe para o objeto a. A criança como objeto a inclui um modo de gozo pelo fato de ter um corpo. Na primeira posição, a criança responde pelo seu sintoma do ponto de vista fálico, identificada ao desejo do Outro, enquanto que, na segunda, investiga-se a versão que a criança tem ou é do objeto a, e como ela pode separar-se do Outro, já que se encontra identificada ao gozo do Outro. A definição do sintoma como substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente nos remete a criança como o objeto a, que vem tamponar o buraco real que excede a satisfação fálica.

A criança é o objeto a e, a partir disso, a família se estrutura. A família não se constitui mais a partir da metáfora paterna, fase clássica do complexo de Édipo; e sim pela maneira como a criança é o objeto de gozo da família, não somente da mãe, mas da família e da civilização. A criança é o objeto a liberado, produto. Este objeto a, que a criança realiza, nós o encontramos no Seminário XVI: de um Outro ao outro, articulado ao problema da família já que há uma falta no Outro (Laurent, 2006).

Na concepção elaborada por Jacques-Lacan, “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar” (Lacan, 2003, p. 369). É por isso que o sintoma pode representar a verdade dos pais. A partir do declínio da imago paterna, onde há a carência do pai nas famílias modernas, Lacan constrói o conceito do Nome-do-Pai. Lacan recorre à lingüística e ao estruturalismo a fim de elucidar o mito edipiano. Assim, o Nome-do-Pai é uma metáfora, um significante que substitui um outro significante, o significante materno. O Nome-do-Pai entra em substituição ao falo, o objeto de desejo da mãe. É na medida em que o desejo da mãe é mediado pela lei da proibição do incesto, onde o pai cumpre essa função, que a criança não está exposta às capturas fantasísticas. De acordo com Jacques-Alain Miller (1988, p. 11), a família pode ser definida por dois significantes: Desejo e Nome. Daí a condição que este Desejo não seja anônimo e que este Nome encarne a lei e o desejo. Nesta situação a criança se inscreve como resto de operação e não como causa. Lacan vai situar o pai de família a partir do amor e do gozo no final do seu ensino.

Em certas famílias, o pai não dá uma versão do que é o objeto a para ele. É por isso que Lacan nos dirá que um pai não tem direito ao respeito, nem ao amor, se ele não for um pai (père)versamente orientado para uma mulher como o objeto a causa de seu desejo. É preciso pensar que no ensino de Lacan, nós passamos do pai de família - sonho do neurótico - ao pai resíduo - o Nome-do-Pai, onde, na teoria, dos três registros ele é o instrumento que sustenta junto o simbólico, o real e o imaginário.

No seminário R.S.I, Lacan não se refere mais ao casal pai/mãe, à lei simbólica edipiana, à articulação da lei e do desejo, mas à relação homem/mulher, ou seja, no gozo em jogo no encontro sexual. Considerar a família como uma construção que responde ao impossível da relação sexual, ao real da diferença sexual, é levar em conta que há uma renúncia ao gozo.

No entanto, na modernidade, estamos sob o reinado da exigência de satisfação, de se gozar cada vez mais, resultando na dificuldade crescente de um engajamento simbólico na relação do sujeito ao Outro. Nossa época tornou-se assim pouco favorável à dimensão da transmissão e da filiação, por isso, um dos impasses ao qual estamos confrontados neste contexto é que o significante passa a servir mais ao gozo do que à comunicação (2004-05, p. 170), um gozo fora da castração.

 

Destino da hiperatividade?

A hiperatividade não é uma entidade clínica, entretanto, o destino que a medicina e as neurociências contemporâneas vêm lhe impondo e a coloca no centro de uma discussão, onde um simples recondicionamento cognitivo seria suficiente para o retorno da normalidade. O discurso da ciência contribui para a ignorância do sintoma como marca particular de um sujeito.

A psicanálise difere de outros tratamentos que retiram do sintoma os traços de subjetividade e classificam os sujeitos sem considerar a singularidade de cada um. Nós, psicanalistas, privilegiamos o que há de único em cada sujeito. Não está aqui em questão dar mais valor a uma solução da hiperatividade, do impasse do sujeito frente ao real. O que Freud nos ensina que é preciso deixar o sintoma falar lá onde, diante do traumático do real do gozo, o sintoma foi o único recurso do sujeito.  

 

Texto recebido em: 11/09/2006.

Aprovado em: 20/11/2006.

  

Nota

    1. Ver o artigo de Jacques-Alain Miller:“A era do homem sem qualidades”, traduzido e publicado na revista aSEPHallus n◦1, onde o autor se refere ao escritor austríaco, Roberto Musil. 

 

Referências Bibliográficas

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