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Sou ou não sou homossexual?

 



Analícea de Souza Calmon Santos
Psicóloga – Psicanalista
Professora Assistente do Curso de Psicologia/UFBA
Mestre em Teoria Psicanalítica pelo PPGTP/UFRJ
Doutoranda em Teoria Psicanalítica pelo PPGTP/UFRJ
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
Membro da Associação Mundial de Psicanálise
analicea@bol.com.br

Resumo:

Do campo enigmático da feminilidade extraímos uma estrutura do discurso de uma jovem analisanda: “Sou ou não sou homossexual?”. O trabalho que nos interessa é examinar que fatores determinam a inscrição de um sujeito na sexuação, e respectivos impasses na sua relação com a função fálica e o Nome-do-Pai. O presente artigo visa tratar a complexidade que envolve este tema, particularizando no caso desta jovem uma escolha que à primeira vista parece ser feita desde uma posição feminina no campo da homossexualidade, para concluir que é a partir da posição histérica que este sujeito faz o seu ato de escolha.

Palavras chave: Escolha, fantasia, função fálica, gozo, sexuação.

 

 



Am I or am I not homosexual?
 

Abstract:

From the very enigmatic field of female sexuality, we have extracted a discourse structure of a young woman during her analysis: “Am I or am I not homosexual?” We want to point out the factors that interfere in the subject inscription on sexuation as a man or as a woman, as well as their impossibilities: specially the father’s function and the phallus function. This paper deals with the complexity involved in this case of a young woman who seems to choose homosexuality from the female point of view, but, in the end, makes her choice as any other hysterical subject does.

Keywords: choice, fantasy, phallic function, enjoyment, sexuation.

 

 

Do campo enigmático da feminilidade, extraímos o enunciado de uma jovem analisanda, em torno do qual pretendemos trabalhar: “sou ou não sou homossexual?”

Para a análise, o que menos importa neste enunciado, é a duvida de uma mulher em subjetivar sua posição diante da diferença sexual a partir da escolha por uma parceira do mesmo sexo biológico. O que mais nos interessa é examinar que fatores determinam a inscrição de um sujeito na sexuação, como um ato de escolha, bem como os respectivos impasses na sua relação com a função fálica e com o Nome-do-Pai. É no campo do Édipo, que a função fálica e o Nome-do-Pai ordenam a posição masculina graças à suposição de que há ”ao menos um homem que não está submetido à castração”. É justamente nesse campo que Lacan descobre a inexistência da exceção do lado feminino da sexuação. Todos, do lado feminino, estão submetidos à castração. A partir dos anos 70, calcado nas observações sobre a sexualidade feminina articulada à relação pré-edípica mãe/filha[1], funda o campo do não-todo[2], visando entender, de forma lógica e para além da função fálica, a inscrição de um sujeito na sexuação feminina.

No primeiro encontro com a analista, M. revela que aos 6 anos de idade, sofria de recorrentes abusos sexuais por parte de um parente e de um amigo da família, ambos adultos. Interpreta que tal situação repercutiu fortemente na sua adolescência, deixando-a viciada em sexo e por vezes, impedida de realizar a contento suas atividades de estudos e trabalho. O vício referido consistia numa prática masturbatória diária acompanhada da fantasia de ser uma garota de programa que se relaciona com homens e mulheres. Tal interpretação evidencia que a palavra do Outro adquiriu um valor determinante para este sujeito que toma a sua posição de objeto vítima de abusos sexuais na infância como causa para uma compulsão masturbatória na adolescência. Esta interpretação combina com a idéia freudiana de que um episódio da experiência infantil foi encontrado pela analisanda sob a forma de traumatismo.

Tanto na experiência traumática da infância quanto na fantasia da adolescência, M. revela-se como objeto de uso e fruição, indicando também aí o seu lugar de gozo, ou seja, de um sujeito que, colocando-se em posição de objeto, goza numa relação de sexo com os homens, conforme a experiência relatada, e de carinho com as mulheres, tal como configura na sua fantasia de garota de programa. Para Lacan, este modo de gozo diz respeito à contingência de uma história particular que não cessa de não se escrever. No Seminário 20, ele diz que o gozo é aquilo de que fala o Direito, evocando a noção de usufruto como aquela que reúne o uso e a fruição.[3] O Direito promulga que gozar de uma coisa é poder usá-la até o abuso. Tem-se ai uma noção ampla do que seja o gozo, no interior da qual se pode pensar a noção mais estrita de gozo sexual.

Pensando o gozo, na sua amplitude, numa relação dialética com o gozo sexual, podemos fazer uma equivalência entre a relação dialética ser e significante, chegando, com Lacan, à conclusão de que é o significante que introduz a dimensão do sexual no ser humano. Isso é fruto de uma elaboração do conceito de Outro.

Nos relatos de M., quando admitia que não denunciava os seus assediadores na infância, por considerar a prática notadamente prazerosa, destacou-se um significante “porca”. O valor que este significante adquiriu para M., a coloca diante de uma contingência, ou seja, diante de alguma coisa que poderia ser de outro modo, mas que nesse nível só pôde ser assim.

Dizer que o significante introduz a dimensão do sexual no ser humano, implica em pensar que o ser é produzido pelo significante. Isto quer dizer que a linguagem não deve ser considerada como uma superestrutura que viria se depositar sobre o ser e sim como uma aparelhagem que o modela e o determina. É bem isso que M. nos faz ver quando, depois de um certo tempo, começam a aparecer dúvidas com relação à posição sexual e a partir do relato de um envolvimento com uma colega, surge o enunciado que escolhemos como título para este trabalho: “sou ou não sou homossexual?”

Trata-se de um enunciado que alude ao ser e, assim sendo, comporta um gozo não totalmente sexual. Nesse sentido, esse gozo suporta o “eu sou” da fantasia, na medida em que não seja inteiramente simbolizado pelo “ eu penso”. Tal gozo, nos diz Serge André[4], é quase inacessível pois, não correspondendo a desejo algum do sujeito, resiste a toda apreensão e a todo raciocínio significante. Então nos perguntamos, com Miller[5], até que ponto tudo que diz respeito ao gozo do ser humano é verdadeiramente aberto ao encontro?

As primeiras elaborações sobre a dialética de dois gozos, datam dos anos 60 no ensino de Lacan[6] e recebem um desenvolvimento teórico mais avançado no Seminário 20[7], o que vai servir de fundamento à problemática do feminino. É esse o ponto que nos interessa discutir. E a esse propósito recortamos uma outra frase de M., subseqüente ao comentário sobre o envolvimento sexual com a colega: “Tudo o que eu queria saber é o que uma mulher sente quando se relaciona com outra mulher. Mas sei que para resolver a questão da homossexualidade é preciso superar o passado”. Neste recorte, M parece nos dar uma nítida idéia dos dois gozos, tal como Lacan desenvolveu no Seminário 20, ou seja, inicialmente ela diz que quer saber sobre um gozo do qual não se consegue falar; apenas experimentar. Trata-se do gozo do Outro, anteriormente referido como o gozo do ser, designado como um gozo fora da linguagem, que escapa ao domínio do significante e é atribuído ao feminino. Mas na verdade, o que está posto aí é a questão de M sobre o enigma do gozo feminino e seu modo particular de interrogá-lo, que não é do lugar de objeto causa de desejo de um homem, mas sim fazendo de uma mulher objeto de sua fantasia.

 

Na segunda parte do seu enunciado, M. se refere a um tipo de gozo bem determinado pela linguagem e, portanto, tributário do significante fálico, ao aludir às experiências sexuais vivenciadas quando criança. Este gozo, em oposição ao do Outro, parte da falta-a-ser e se refere a certas partes do corpo que podem funcionar como equivalentes ao órgão sexual. Como se vê, a referência ao corpo não é eliminável e cabe dizer que a experiência da infância, descrita por M., dizia respeito à prática do sexo oral. Seguindo a linha de partes do corpo falicizadas M. traz, através de um sonho, uma visualização, no espelho, de uma parte de seu corpo atacada de alergia, como se fosse um couro de jacaré. Tem a sensação de estar se vendo meio bicho meio gente e começa a gritar. Este discurso desliza para uma informação acerca do seu nome, que tem origem na história de uma moça, chamada M., que apareceu suja e rasgada na porta de alguém. A mãe da analisante em questão acha bonito esse nome e dá à própria na filha. Por conseguinte, a analisanda se coloca como mulher, pobre e homossexual, o que introduz uma nova problemática. Em princípio, podemos verificar que a posição feminina consiste em se fazer marcar com todas as insígnias da deficiência. De acordo o último ensino de Lacan[8], esta é uma falsa posição pois, ao conceber a mulher como não-toda, não é nas insígnias da deficiência ou incompletude que ele vai se basear mas sim na estrutura do infinito. Não se trata, então, de uma amputação do todo mas de uma impossibilidade de formar o todo, o que lhe confere um caráter de inconsistência.

Podemos também fazer uma leitura de que o significante, porca, parece ser um deslizamento dos significantes suja e rasgada, representando o seu nome próprio; o que nos remete à concepção de Lacan de que o ser é produzido pelo significante, evidenciando o que pode ser a redução simbólica.

Acrescentamos ainda que, ao mesmo tempo em que o nome de M. é referido numa cadeia de significantes femininos, há um apelido configurado por um significante masculino, pelo qual ela é chamada em casa. Colocamos, então, em cena, o sujeito masculino para dizer que o ser falante não é senão um significado introduzido pelo significante e cada realidade se funda e se define por um discurso. A realidade da prática masturbatória em M. se define por um discurso fantasístico, no qual ela dizia atuar da mesma forma que o amigo da família em relação a ela - portanto numa posição masculina – enquanto se pensava objeto de desejo de vários homens – posição feminina. Aí já se descortina uma outra questão.

O fato de pretender situar a posição feminina como correlata a um gozo que não aquele dito sexual, liga-se à maneira pela qual Lacan interpreta a noção freudiana de bissexualidade para reformular a diferença entre a posição masculina e a posição feminina, a respeito do sexo. Nessa ordem das coisas a feminilidade ainda se encontra exaltada por traços de falta. E no prosseguimento da análise escutamos M dizer que pela primeira vez conseguiu ter uma relação sexual completa. Foi com uma mulher, pela qual diz nada ter sentido afetivamente. Mas era preciso que isso acontecesse, para ela provar a si mesma que era homossexual; o que pode ser tomado na dimensão de um acting out, sinalizando um modo possível de dar conta do impossível de dizer.

Vale ressaltar que essa necessidade de se provar homossexual tem mais a ver com a divisão do sujeito do que com a “completude” da relação, sendo a escolha um ato determinado no próprio discurso.

É interessante notar que na prática de um ato, através do qual M. tem o objetivo de provar a si mesma que é homossexual, surge um significante, “vulgar”, que assume no seu discurso, duas direções: primeiro, lembra as palavras que ela ouvia na infância dos homens que a assediavam; segundo, remete à “garota de programa”. Duas direções, portanto, que convergem para a mesma posição: histérica.

A feminilidade se revela como dividida diante da castração pois, o que se vê é que sob o significante “mulher” um sujeito se desdobra mais do que se significa, evidenciando não atingir o apanágio do macho, ou seja, a posse legítima daquilo que lhe cabe. M., depois de praticar uma relação para se provar homossexual, enuncia numa sessão de análise: “eu gosto de ser mulher”. Tudo isso pode se traduzir pelo fato de que a mulher, em sua sexualidade, tem relação tanto com o significante fálico que um homem pode encarnar para ela, quanto com o significante do Outro, aquele que não existe ao nível do gozo. Mas a análise se encontra sob impasse enquanto este sujeito não ceder ao gozo que poderia restar fixado à repetição em ato e ao significante.

Esta divisão da posição feminina não exerce apenas sua determinação no plano da identidade, mas também no plano do gozo. Neste plano M. formula uma questão: Sou ou não sou homossexual? Conforme o último ensino de Lacan, o modo de gozar próprio do ser masculino é o sintoma e do ser feminino é a devastação pois esta, tanto quanto o amor, é regida pelo princípio do não todo, no sentido do sem limite. No plano da identidade, M. encarna uma possibilidade de resposta calcada numa vacuidade que torna o ser feminino disponível a receber a sua identidade a partir da fantasia do homem, no nível de objeto. Assim, a questão que se coloca traz como resposta um sujeito que, numa posição histérica, indaga sobre o enigma do gozo feminino, contingencialmente inscrito na inicial de seu nome: um M. de mulher.

 

Referências Bibliográficas


[1] Freud, S. “Sexualidade feminina” (1925) e “Feminilidade” (1931) In: ESB - Obras Completas. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

[2] Lacan, J. (1972/73) O Seminário. livro 20: Mais Ainda. RJ: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 87 a 120.

[3] Id. Ibid. p. 10-12.

[4] André, S. O que quer uma mulher? RJ: JZE, 1987, p. 213.

[5] Miller, J.-A. O osso de uma análise – número especial do Agente. Revista da Escola Brasileira de Psicanálise/Bahia; 1998, p. 68.

[6] Lacan, J. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” In: Escritos. RJ: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 807-842.

[7] _____. (1972/73) Op. Cit., p. 87-104.

[8] Miller, J.-A. “Uma partilha sexual”. Em: Clique, Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano. Belo Horizonte, no. 2, p. 20.

Bibliografia:
 

_______. Seminário 19: Ou Pior. Salvador (BA): Comissão de publicação do Espaço Moebuis, 2003.

_______.”Seminário 23: O Sinthoma”. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Em: Ornicar? (numero 6 ao 11). Tradução de Mario Almeida. Salvador (BA), 2003.

CALMON SANTOS, A. S. – “Experiência de discurso e ato analítico”. Em: Fernandes, A. H. e Calmon Santos A S. Questões Cruciais para a Psicanálise. Salvador; Ed. UFBA, 2005.