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O transexualismo e suas soluções

 
 

 

Marina Caldas Teixeira

Psicóloga e Psicanalista
Especialista em Psicologia da Educação
Mestre em Psicologia/UFMG
Professora Adjunta do Centro Universitário de Belo Horizonte/UNI-BH
Membro Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise - Minas Gerais
mcaldas@uai.com.br

 

Resumo

Proposições sobre um tratamento psicanalítico possível do transexualismo e seus correlatos: a mudança de sexo cirúrgica, a redesignação sexual e as soluções sintomáticas do travestismo da imagem.

Palavras-chave: transexualismo, soluções sintomáticas, travestismo

 

   
 

 

The transexualism and its solutions

 

Abstract

Purposes of a possible psychoanalytic treatment of transexualism and his correlations: the sex changing surgery, the sexual reassignment and the symptomatic solutions of image travestism.

Keywords: transexualism, symptomatic solutions, travestism

 

 

Introdução

Uma certa tradição da sociologia moderna[1] assinala que já não podemos falar da estabilidade das identidades contemporâneas, pois já experimentamos a assunção de todos os modelos de representação e de anti-representação. Hoje tudo está liberado e agora que disponibilizamos todos os signos, todas as formas e todos os desejos, só podemos simular. No esquema atual de nossa cultura, vivemos a patologia dos simulacros, na qual só há uma espécie de dispersão aleatória dos signos da diferença. Prolifera o regime das indiferenças em todos os sentidos, inclusive, do sexual.

Em todos os domínios, esmaece-se a grande aventura dos seres sexuados, em proveito de seres assexuados. Parece que o mundo contemporâneo aspira uma espécie de ideologia erótica que sonha, não mais com a liberdade sexual, mas com uma liberação do sexual. Nesse sonho de liberação do sexual, clama-se pelo regime da indiferença sexual ou das ambigüidades sexuais. Sob o signo nessa nova erótica, o visual indeterminado dos transgêneros (transexuais e transvestidos) e dos intersexuados (andróginos e hermafroditas) aparece como estado ideal. Seja um visual indefinido pela indeterminação genética nos intersexuados, seja o visual dos transgêneros cujo travestismo atravessa as regras do gênero, um visual erótico que exorciza do corpo os signos da diferença sexual aparece como o novo clamor do sexo.

A vanguarda das biotecnologias trama em nome de uma erótica clônica, em nome do fora do sexo, do fora do corpo: é a transexualidade generalizada. A designação ‘trans’ contamina todos os acontecimentos: transeconômico, transestético, transliterário, transexual, transpolítico. Em todos os domínios, fomos atravessados pela confusão dos gêneros, pela contaminação de todas as categorias: tudo é político, tudo é estético, tudo é sexual. Mas quando tudo é sexual, nada mais é sexual. O sexo perde toda a determinação. O corpo sexuado está entregue hoje ao destino artificial da transexualidade, ao jogo performático da comutação dos signos do sexo. O mito da transexualidade seduz em toda parte. Já não temos mais convicção sexual, somos trânsfugas do sexo, exorcistas do corpo e do desejo. Ser tornou-se uma performance efêmera. A liberação de todos os signos do sexual e de todas as virtualidades do desejo, leva a uma interrogação inusitada: serei um homem ou serei uma mulher? Qual será a minha escolha?[2]

Para abordar clinicamente o fenômeno contemporâneo do transexualismo e de seus correlatos, a mudança de sexo e a redesignação do assento de nascimento, faço questão aonde o espírito do tempo tende a fazer assertiva: Já que o mundo se encaminha para um delirante estado de coisas, devemos nos encaminhar para um ponto de vista delirante?

 

O fenômeno e suas vicissitudes

O transexualismo é um fenômeno clínico que atravessa a contemporaneidade e que pode ser considerado um sintoma atual da civilização. O transexualista seria um sujeito concernido por uma absoluta certeza de que sua identidade sexual contradiz seu sexo anatômico. Nesses casos, o sujeito estaria convicto de que é prisioneiro num corpo que não condiz com seu ser e, sob o tormento dessa certeza, é compelido num desejo muito enérgico de passar, por todos os meios, para o outro sexo.[3]

Graças ao aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas e das terapias hormonais, o transexual masculino encontra, entre todos os meios, possibilidade de redesignar seu sexo cirurgicamente. As cirurgias de mudança de sexo têm se tornado cada vez mais freqüentes entre os transexuais e, de forma contundente, esse procedimento vem sendo afirmado como o único recurso eficaz e válido nesses casos. Alias, existe mesmo uma militância em favor dessa técnica para atender ao desejo de passar para o outro sexo. Sob o enfoque da clínica cirúrgica e endocrinológica, o transexualismo não é senão um distúrbio bem isolado[4] para uma técnica bem adaptada e um resultado avaliável.

Na esteira da crença nessa técnica, pode-se aventar que o transexualismo promete ser o expoente máximo do que vem sendo anunciado como um direito humano suplementar: o direito de escolher o próprio sexo. Seria prudente perceber o quanto a subjetividade contemporânea está tolamente convencida de que a linha divisória entre os sexos pode ser franqueada segundo a vontade decidida dos sujeitos. Na errância dessa crença é que o transexualismo seduz, obnubila um certo ideário coletivo, uma vez que o fenômeno parece indicar a possibilidade factual de uma travessia a partir da mudança cirúrgica do sexo.

A captura midiática do transexualismo também contribui para fazer o fenômeno passar como um ícone da vitória cientificista sobre a sexualidade. São vários os casos de transexualismo masculino que vêem ganhando visibilidade como prova testemunhal de que mudar de sexo é um fato possível e crível. Mas, antes de fazer de tais casos modelo, é prudente interrogar as circunstâncias particulares em que a terapêutica hormonal e cirúrgica se inscreveria como solução para esses sujeitos. 

A técnica cirúrgica e a correção ortopédica da demanda

A biologia, ao se debruçar sobre as respostas de cada sujeito ao real dos sexos focaliza o organismo como suporte da experiência. Essa ciência não considera que o corpo é uma experiência subjetiva que não se confunde com as perspectivas funcionalistas do organismo biológico. Nessa perspectiva de saber, as formas patológicas que aparecem no corpo não são consideradas senão sintomas de uma disfunção orgânica a ser corrigida. Por extensão, as manifestações subjetivas de perturbação na vivência do corpo não são outra coisa além de uma demanda de correção. A ciência opera em nome de uma conformação ortopédica da demanda. O que é pedido à ciência, ela tem a expectativa de responder com medidas eficazes e de resultados avaliáveis. Se alguém não dorme, por exemplo, a ciência intervém para fazê-lo dormir através de um hipnótico do sono; se alguém está deprimido, a ciência põe fim à depressão com um catalisador de serotonina; se alguém come em excesso, a ciência disponibiliza inibidores do apetite ou, até mesmo, cirurgias redutoras do estômago. No caso dos transexuais não é diferente - se alguém manifesta seu desejo em passar para o outro sexo, a ciência leva a termo uma mudança de sexo. E com respeito às perspectivas no campo da mudança de sexo, a ciência assinala a crença de que, no futuro, os recursos da cirurgia plástica, aliados à extensão dos recursos da medicina cosmética, estarão tão avançados que não haverá limites para as mudanças de sexo. É assim que na contemporaneidade, o transexual está cada vez mais entregue ao destino artificial de mudar de sexo em busca da promessa de felicidade ofertada por essa técnica[5].

 

A mudança do sexo e seus efeitos

Na era da adesividade incondicional aos gadgets ofertados pela ciência cumpre recuperar a advertência lacaniana quanto ao problema ético do tratamento da demanda. Responder a uma demanda de amor com um dispositivo prêt-à-porter de felicidade, ou ainda, responder à angústia real que mobiliza um desejo muito enérgico com um procedimento de erradicação prévia da angústia parece ter se tornado um problema ético apenas para os psicanalistas de orientação lacaniana que se preocupam com a hiância existente entre a demanda e o desejo, entre a angústia e o que seria uma dor de existir.

Especialmente diante de procedimentos irreversíveis como o de mudança de sexo é prudente, senão urgente, distinguir a demanda exasperada da cirurgia de mudança de sexo e o desejo muito enérgico de passar para o outro sexo. Nesse desejo muito enérgico reside algo que resulta irredutível à demanda, por mais urgente que seja sua exigência. Compelido por um desejo muito enérgico de passar ao outro sexo, o transexualista esta implicado numa demanda impossível, pois, seu desejo muito enérgico é uma paixão cuja razão seria a de deixar de ser designado transexual, deixar de ser incluído no campo do Outro sob a designação do gozo transexualista.

O cirurgião padece do erro comum de considerar que o sujeito não foi designado mulher, por causa de seu órgão. Então, parece que é disso que se trata nesse desejo, de um pedido para eliminar o órgão, Entretanto, cortar o órgão e fazer no lugar uma genitália de mulher, realmente muito parecida com o modelo natural, não é decididamente mudar o sexo do transexual. Mas como o cirurgião acredita demais na eficácia da técnica, ele afirma ser capaz de fazer tal mudança que deixará o transexual livre de seu tormento, de tal forma que o transexual operado vai, finalmente, reencontrar sua identidade de mulher, porque o estorvo do órgão foi eliminado. Mas se esse será o destino do sujeito ou não, isso é uma contingência previamente foracluída pelo discurso médico e jurídico em prol da técnica de correção do transtorno de identidade.

Do ponto de vista da abordagem psicanalítica de orientação lacaniana, o mais provável é que a castração do órgão precipite o sujeito num quadro francamente delirante, pois a cirurgia de mudança de sexo mutila de forma legal o transexual: castra o órgão, não é capaz de redesignar a identificação sexual do transexual como tal, desaloja a paixão de passar ao outro sexo da porção do corpo onde ela se localizava de forma eletiva; isso não erradica o tormento do gozo, mas promove o aparecimento de um corpo protético que, no final, já não é de homem, tampouco de mulher. Nessas condições, pode surgir a configuração de um ser de aberração e o extravio do gozo, subordinando o transexual operado ao ostracismo e à ruptura dos laços que o mantinham ligado à vida, especialmente porque ao nível das parcerias particulares que esses sujeitos fazem em suas vidas, é muito mais provável que a causa do parceiro esteja fundamentada num gozo perverso disfarçado. Disso, o destino mais funesto do transexual mineiro Tininha-Nova-York (antes Walter de Freitas) faz testemunho.

 

Tininha-Nova-York: uma aberração da natureza

Tininha se submeteu à cirurgia de mudança de sexo, nos EUA, no afã de que seu parceiro de muitos anos (um oficial americano com quem vivia em Nova York) não deixasse de vê-la conforme sua certeza de ser mulher. Este parceiro, em certo momento, lhe teria dito inadvertidamente (senão pervertidamente): “se você fosse mulher, seria perfeita para mim”. Esse enunciado cai sobre o sujeito desencadeando o valor de verdade do travestismo que sustentava o sujeito livre de sua loucura. Claudicado o travestismo da imagem, o sujeito passa ao ato e se submete à cirurgia pela qual lhe foi cortado o órgão. Aquele parceiro, no entanto, não viu senão o que realmente tinha sido feito: a castração. Tininha foi abandonada, em função justamente, da castração realizada no corpo, que incidiu como mutilação na imagem. Tininha acabou sendo olhada, na cena, como uma aberração. Pode-se deduzir que na erótica desse parceiro amoroso, a satisfação estava comprometida muito mais com a configuração de um travesti disfarçado de mulher, do que com a certeza do sujeito de ser mulher prisioneira num corpo de homem. O confronto com esse real foi desastroso para o sujeito – a imagem perdeu a textura e um corpo caiu; transformado num ser de aberração, o gozo se extraviou, e o sujeito se precipitou num quadro francamente delirante. Tininha encontra-se, atualmente, assolada por delírios de perseguição, certa de que Deus e o diabo vão lhe castigar por ter cortado o órgão com o qual nasceu. Segregada do convívio social (o sujeito foi recolhido pela mãe e a família o mantém isolado em seu ostracismo), segue se designando “uma aberração da natureza”.

Essas circunstâncias piores não são uma raridade no horizonte da mudança de sexo no transexualismo[6], pois o gozo transexualista é um pendor típico das psicoses que implica num efeito de feminização (empuxo-à-mulher)[7] que pode conduzir até a emasculação.

É justamente a substância do gozo transexualista e sua razão na estrutura que não deveria ser desconsiderada, pois se trata de advertir a propósito do problema ético que jaz na afirmação de que a cirurgia é sob medida para os transexuais, uma vez que o diagnóstico do transexualismo enquanto um transtorno de identidade deixa escamoteado, por um lado, a loucura presente na paixão transexualista, por outro, os efeitos de mutilação da cirurgia de mudança de sexo. Ao mesmo tempo, é fundamental recolher na singularidade de cada solução aquilo que tornaria possível, ao sujeito, um saber-fazer com o tormento transexualista de tal sorte que ele poderia passar à revelia dos efeitos de mutilação da cirurgia, efeitos que seriam os mais esperados nesses casos.

O que venho estudando me permite dizer que as melhores soluções não estão diretamente implicadas na mudança de genitália, no uso dos hormônios que transformam a aparência e tampouco na mudança formal dos documentos civis. O transexualismo é uma compleição ao nível do ser, uma paixão que compele o sujeito na loucura de mudar de sexo, pois isso é impossível. Para esse tormento que exaspera o corpo e a vida, que implica o sujeito numa errância rumo ao pior (a vida desses sujeitos, invariavelmente, foi marcada por abusos, violações, desespero, maus tratos, até atrocidades e barbaridades), o tratamento mais eficaz é aquele que trama em nome de um saber-fazer com o travestismo da imagem.

 

As soluções transexualistas

Espero explicitar o valor clínico do travestismo da imagem, nesses casos, como o artifício mais eficaz num tratamento que poderia reduzir a errância desenfreada desse tormento. Em cada um dos casos a seguir, o sujeito parece ter passado à revelia dos efeitos de mutilação da cirurgia na medida em que o travestismo de sua imagem se inscreveu numa cena de espetáculo.

Na apresentação desses casos, optei por não disfarçar a pessoa em questão. Até porque a própria apresentação dessas pessoas já implica um uso do disfarce singular à função do travestismo nesses casos. Na pratica do travestismo no transexualismo não se trata de descortinar um falso semblante, mas de reiterar uma imagem de mulher que reivindica textura de corpo. Trata-se da apresentação de um disfarce que se apresenta para ser apresentado, alcançando assim algo de representativo. O gozo transexualista implicou o sujeito numa performance relativa ao jogo das aparências, no qual o uso sintomático do disfarce ancora o ser numa pantomima. Nas soluções alcançadas, o ser está configurado por uma imagem que faz signo da criatura feminina, ou como disse, certa vez, Roberta Close, aspira ser reconhecida como “mulher-de-verdade”. Como somos uma sociedade escópica, fomentada pelo desejo de ver, mas também pela compulsão de olhar, alguns transexualistas têm podido alcançar uma outra economia de gozo ancorada numa imagem que parece mesmo mulher que, entretanto, só aparece enquadrada numa cena de espetáculo, na qual o travestismo da imagem é redobrado entre a imagem apresentada e a imagem admirada pelo enigma que causa. A mulher-de-verdade é enredada como paródia. Na paródia, trata-se de uma imitação burlesca de uma composição literária que é configurada, por excelência, no jogo da intertextualidade. Nessas soluções transexualistas, o gozo estaria subordinado à performance sintomática de uma personagem de mulher.

A paixão transexualista está animada por uma imagem que padece do lastro do significante. Trata-se de uma imagem que faz signo de gozo por seu valor icônico: uma imagem, que seria símbolo de mulher, o que chamei de “uma imagem vestida de mulher”, pois parece-ser-mulher. A superfície que se constitui como corpo, na performance da imagem, padeceria de ser virtual. O ser do sujeito, compelido por essa paixão, não seria senão presa de uma imagem performativa, literalmente uma composição. A paixão transexualista sujeita o ser numa errância relativa ao jogo das aparências, no qual a cena transexualista não seria senão pantomima. Os arranjos sintomáticos que tornariam possível algum tratamento do gozo estão, invariavelmente, enquadrados pela questão do olhar que incide sobre o travestismo da imagem. São circunstâncias através das quais seria possível verificar uma sorte de sintoma relativo à aparição de um ser no espetáculo de sua imagem, que de forma suplementaria fixaria um quantum de gozo e promoveria um acontecimento de corpo.

Esse conjunto de conclusões me foi sugerido a partir do estudo que pude fazer da biografia de alguns reconhecidos transexuais masculinos da atualidade: Roberta Close, Amanda Lear, Caroline Cossey e Bibi Andersen. Esses transexuais estariam situados sintomaticamente pelo efeito do olhar sobre a imagem que faria dizer que o sujeito não parece senão uma mulher. Curiosamente, esse efeito se passa à revelia da cirurgia de mudança de sexo, na medida em que se configura a partir de um saber-fazer entre duas cenas, entre as quais o ser teve a sorte de estar implicado no travestismo de sua imagem.

 

Caroline Cossey: ex-girl

Caroline Cossey antes Barry Kenneth Cossey, também conhecida como o transexual Tula, seria reconhecida como uma Bond-girl, uma garota James-Bond, no filme For your eyes only, (Somente para seus olhos). Barry Cossey nasceu em Brooke, Inglaterra e, no meio de sua adolescência, tornou-se uma “showgirl” em Paris e na Itália, bem antes de se submeter à cirurgia de mudança de sexo no Charing Cross Hospital. A “showgirl” designa o travesti que se apresenta em espetáculos encenados por travestis (no Brasil, chamamos "show de bonecas"). Nessa ocasião sua aparência não deixava de assinalar seu travestismo. Sua figuração como uma das garotas de James-Bond no filme For your eyes only, marca o refinamento iconográfico de sua imagem de mulher que transitaria, desde então, de showgirl para modelo. A partir daí ela apareceria em um ensaio fotográfico para a revista Playboy, cuja característica das fotos retomava a imagem de sua personagem no filme de James Bond. A imagem de ex-garota James Bond propiciaria uma redesignação do gozo transexualista em razão da intertextualidade que se compõe entre a imagem da garota James Bond e o signo da mulher sexualmente ideal. Subordinada a essa imagem, ex-garota-James-Bond, o sujeito parecia ser um ideal sexual de mulher. Sob essa nova designação, o transexual Tula não pareceria senão mulher sexualmente ideal.

A partir dessa imagem sua carreira de modelo é promovida e ela chega a se tornar uma supermodelo. A superposição entre a imagem do transexual Tula e a imagem que parecia ser a de mulher sexualmente ideal acabaram sendo exploradas em campanhas publicitárias. Num anúncio para a vodka Smirnoff, Tula aparecia sob os dizeres: Well, they said that anything could happen (Bem, dizem que tudo pode acontecer). Sob a ironia do slogan que pretendia destacar o produto anunciado, a imagem de Tula não deixaria de ser ironizada. Assinalava-se, de todo modo, o que jazia presente de forma velada na Bond-girl, a saber: que a mulher sexualmente ideal é uma montagem. Numa outra propaganda de bebida, sua imagem apareceria sob os dizeres Life is harsh (a vida é discordante), em que sua imagem de mulher sexualmente ideal passaria igualmente denunciada sob o signo da perplexidade. O espetáculo de sua imagem em torno do signo da mulher sexualmente ideal padeceria, assim, de fixar o tormento do gozo transexualista, e o sujeito terminaria por ser compelido a um empuxo-a-escrever apesar do espetáculo de uma imagem que não seria senão de uma mulher sexualmente ideal. Caroline Cossey já escreveu duas autobiografias: I Am A Woman (1982) e My story, the asthonishing autobiography of the boy who was born to be a woman (1991). O empuxo-a-escrever autobiografias sugere que, sob a nova designação, o sujeito não deixa de ser redesignado uma ex-girl.

 

Bibi Andersen: una-auténtica-maruja

Bibi Andersen antes Manolo Fernandez (1954- ), transitava no cenário dos travestis espanhóis como “un portento” ou “una de las damas más pintonas”, até que chega a aparecer redesignada sob o disfarce chica-de-Almodóvar. Desde seu trânsito pelo cenário dos “maricones” espanhóis até o cenário feminino das “chica-de-Almodóvar”, Bibi Andersen configuraria, a partir mesmo de seus autênticos dotes artísticos extraordinários, a solução sintomática de seu gozo transexualista.

Bibi Andersen é conhecida como uma atriz transexual, que acompanhou o diretor espanhol Almodóvar ao longo de sua carreira entre os anos 80 e início dos anos 90. Antes, conhecido como Manolo Fernandez obteve, no ano de 1969, o prêmio de melhor soldador do ano pela Escuela de Formación Professional Generalíssimo Franco, de Málaga. Muito antes de se tornar uma supervedete e mudar de gênero, o sujeito era um autêntico artista em sua arte de soldador. Atualmente é também conhecida como Bibiana Fernández, ou senhora Asdrúbal Fernández. Bibi casou-se com Fernandez, no final dos anos 90, numa celebração que foi um espetáculo à parte na Espanha, uma vez que o noivo era reconhecidamente um autêntico macho ibérico. Muitas vezes confundida com a atriz sueca Bibi Andersson, Bibi Andersen começou sua carreira artística como comediante e, desde cedo, no mundo da farándula (arte e profissão dos cômicos), era designada “un portento” (pessoa que tem dotes extraordinários).

Mais tarde, Bibi Andersen mostraria sua cara em quatro filmes de Almodóvar: "Matador" (1985/86), como a vendedora de flores, "A lei do desejo" (La ley del deseo, 1986), como mãe de Ada, "De salto alto" (Tacones lejanos, 1991), como Chon, e "Kika" (1993), como Suzana, a formosa desconhecida. Sua consagração como garota Almodóvar (chica Almodóvar) lhe rendeu a celebração de sua imagem nesse emblema espanhol de mulher.

Pedro Almodóvar costumava ser destacado por seu trabalho como diretor de atrizes que sabia se rodear dos melhores nomes femininos do cinema espanhol. As “chicas de Almodóvar” se constituíram como signo de um tipo de mulher que parece ser uma versão mais natural, mais comum de uma mulher que aparece como um sex symbol. No universo feminino de Almodóvar se queria mostrar a realidade do sex symbol numa mulher comum sem a montagem exagerada de uma Marilyn Monroe. As chicas de Almodóvar apareciam como um tipo de mulher um pouco esperta, um pouco sonsa e, nessa mágica e divertida mistura, esse tipo de mulher se fez emblema de uma feminilidade desejável mesmo sendo comum, ou seja, uma mulher que seria maravilhosa e desejável para um homem, mas não para todos. Por ter sido capaz de fazer essa forma feminina do sex symbol aparecer como acessível a qualquer uma, Almodóvar foi o culpado do fenômeno pelo qual todas as jovens queriam se tornar uma garota de Almodóvar. Os versos do poeta espanhol Joaquim Sabina refletem esse emblema de feminilidade celebrada em que se constituíram as chicas de Almodóvar: Yo quiero ser una chica de Almodóvar, como la Maura, como Victoria Abril, un poco lista, un poquitin boba, ir con Madona en una limousine.

Bibi Andersen é o transexual que foi celebrado como “uma garota Almodóvar” e essa designação virtual funcionou como nome de gozo cunhado sobre uma imagem que seria de mulher subordinada à imagem da “garota Almodóvar”.

Bibi Andersen já era um fulgor imponente na errância de seu gozo transexualista por cenários de duvidosa categoria. Nesses cenários em que costumam circular os travestis espanhóis, Bibi Andersen aparecia como una de las damas más pintonas. Essa designação é uma expressão do dialeto galego que se refere a um ser irreverente, debochado, fazedor de graças um pouco obscenas. Mas também não deixa de designar, ao lado, que uma tal dama não seria senão um travesti. O galego é um dialeto que misturou o português e o espanhol; e se no idioma espanhol o pênis é designado polla, no dialeto galego ele é dito como em português.

Em janeiro de 1983, por uma contingência do destino, Bibi Andersen estava presente numa festa de consagração a Andy Warhol, que visitava Madrid naquele mês. Em procedência dessa celebração. Andy Warhol pode ser evocado como o emblema dos travestis da estética. Andy Warhol é considerado o precursor de uma nova estética que faz o elogio de uma total liberdade estética. Ele dizia: “todas as obras são belas, não é preciso escolher, todas as obras contemporâneas se equivalem”, ou ainda, “a arte está em toda a parte, logo, já não existe, todo mundo é genial, o mundo tal como é, em sua banalidade, é genial”. Contudo, não se pode acreditar que o que ele estivesse descrevendo fosse uma total liberdade estética, pois, na verdade, ele estava descrevendo a configuração da estética moderna que viria a ser o modo radical do mundo se ver livre da estética.

Desse encontro virtual entre o travesti Bibi Andersen e a ideologia estética de Andy Warhol nasceria uma picaresca intertextualidade entre os limites do signo uma-garota-de-Almodóvar e a verdade do gozo transexualista desse sujeito. Uma vez que, do ponto de vista da estética moderna, todas as obras se equivalem, a imagem espetacular do transexual Bibi Andersen também poderia passar como equivalente de uma garota de Almodóvar. Nessa contingência, se inauguraria o processo de refinamento físico, iconográfico e profissional que converteria Bibi Andersen em uma-garota-de-Almodóvar.

No filme “Matador” (1985/86), o sujeito figuraria como uma vendedora de flores carregando um filho ao colo que, como uma cigana, leria o destino funesto do herói nas linhas de sua mão. A montagem da cena e da personagem aludia, assim, à mais consagrada atriz espanhola, de fama internacional, Sara Montiel. Sarita Montiel, como ficou conhecida, apareceu no primeiro filme que a consagrou como uma vendedora de violetas que era filha de cigana, que conquista o coração do homem cobiçado por todas as mulheres. Nesse jogo de intertextos, Bibi Andersen passava pela imagem de desse ícone feminino dos espanhóis.

Em “A lei do desejo” (La ley del deseo, 1986), como mãe de Ada, sua imagem de mulher foi configurada pela elegância discreta típica de uma mãe espanhola tradicional. Nesse filme, a imagem de Bibi Andersen aludia a um outro ícone feminino da cultura espanhola, a maruja. Existe um ditado popular na Espanha que diz que toda mulher depois que se casa vira maruja, isso significa que ela assume, desde então, sua verdadeira condição de mulher; passa a cuidar do marido, da casa, dos filhos, e adota uma elegância discreta em formas mais avantajadas e robustas. Na cultura brasileira, teríamos como equivalente da maruja a “Amélia que era a mulher de verdade”.

“De salto alto” (Tacones lejanos, 1991), sua personagem Chon exaltava uma forma exuberante de mulher, com os cabelos louros e seios fartos que, no entanto, seriam denunciados como uma montagem. Nesse filme, Bibi personifica um transexual cujo travestismo faria enigma por sua exuberância A personagem Chon compõe com a atriz Bibi Andersen, a duplicidade de um mesmo texto.

Em “Kika” (1993), como a personagem Suzana, seria a formosa e desconhecida rival de Kika (Vitoria Abril) no amor de Nikolas (Peter Coyote). No encontro sexual com Nikolas, Suzana personifica uma mulher fatal, extremamente bonita e sedutora que, no entanto, não faria senão a paródia da outra, na medida que a condição transexualista de Suzana não deixaria de ser denunciada na seqüência do filme.

Sobre a imagem una de las damas más pintonas, cujo travestismo anunciava uma falsa garota, viria se superpor uma imagem vestida pelo signo uma-garota-de-Almodóvar. Subordinada a esse emblema de mulher, a errância transexualista se fixaria em uma imagem que não seria senão de mulher. A notoriedade de sua imagem como uma-garota-de-Almodóvar garantiu ao sujeito a cena do espetáculo de si como sex symbol. Bibi Andersen foi capa de várias revistas na Espanha e seu casamento foi uma celebração que causou sensação em toda a Madri, pois ela se casaria com um homem que era cobiçado por quase todas as mulheres espanholas.

A celebração de sua imagem de mulher-de-verdade seria, contudo, empreendida mais além, no caminho em direção à formalidade de sua imagem como senhora Fernández. Bibiana Fernandez faz o tipo mulher recatada, elegante, discreta e natural – una maruja. Nessa sorte de solução, o sujeito vem podendo confeccionar a realidade literal de sua montagem.

 

Amanda Lear: uma mulher surrealista

Amanda Lear, antes Alain Tap, uma cantora da Roxy Music, é redesignada sob o olhar de admiração de Salvador Dali que a reconhece como uma montagem surrealista de mulher. Desde esse olhar, processa-se um refinamento iconográfico da imagem do travesti conhecido como concubina do rock, e o sujeito é redesignado sob o signo mulher surrealista, que desde então passa a desmentir sua transexualidade.

A cantora alemã Amanda Lear nasceu Alain Tap em 1946 (encontrei outro registro a propósito de seu nascimento: 1941, em Hong Kong). No início de sua carreira, sua controversa identidade sexual se constituía num problema o que a fez se converter numa cantora secreta, cuja história original passaria a estar envolta em mentiras e disfarces. Os próprios temas de suas canções eram relativos ao gosto da mulher poderosamente sexual. Essas canções lhe conferiram o apelido de queen lear. O codinome queen lear faz alusão à tragédia de Shakespeare, O rei Lear (1606), na qual Lear é o rei que faz suas escolhas preferindo mentiras em lugar de inverdades.

Em razão de seu estilo de música, ela foi incluída na lista das “concubinas do rock”, pois sua música era enquadrada na Roxy Music. A Roxy Music foi um tipo de música nos anos 70, que pretendia ser um estilo que misturava a forma genuína do rock e o canto lírico fetichisticamente entoado. David Bowie é um dos grandes nomes desse estilo surrealista de rock e de canto lírico.

A lista das concubinas do rock incluía as cantoras que também eram amantes secretas dos cantores de rock famosos. Amanda Lear fora amante de David Bowie. A inclusão de Amanda Lear nessa lista assinalava que o estilo de música com o qual ela inaugurou sua carreira de cantora não era genuinamente o rock, e que ela não seria senão uma amásia do rock. Mas, ao lado dessa crítica, sua imagem também estaria sendo ironizada com respeito a sua condição de mulher legítima. O seu segredo viria assim revelado em seus apelidos: a queen lear não seria senão um transexual.

No início dos anos 70, Amanda aparecia como a modelo da capa de um disco-cover para a Roxy Music. Na capa desse disco, em que se imitava o estilo da Roxy Music, a imagem de Amanda fora configurada bem de acordo com a proposta da Roxy Music: uma montagem surrealista, metade mulher, metade cobra, com asas e o rosto que fazia alusão a uma phoenix. Essa foi a montagem surrealista que teria chamado a atenção do pintor Salvador Dali para a imagem de Amanda e, por conseguinte, para sua história secreta. Em 1965, Salvador Dali se apresentou a Amanda Lear e, sem preâmbulos, convidou-a para um chá. Eles se encontraram por mais duas vezes.

A contingência de ter sido admirada por Salvador Dali propiciou ao sujeito ultrapassar o olhar de gozo que denunciava a ilegitimidade de sua imagem de mulher, tal como os apelidos de seu ser de cantora secretamente tramavam. O tormento do gozo transexualista, contudo, não deixaria de atordoar sua carreira, não tivesse sido o encontro com o olhar de admiração de Salvador Dali. O encontro contingente com esse olhar de admiração do pintor promoveria a ascensão de sua carreira e ela se tornaria um ícone do rock: Amanda Lear. A queen lear seria, por sua própria natureza surrealista, amada. Desde então, sua imagem seria reconfigurada num formato bem mais feminino e bem menos ilegítima.

Seria possível dizer que o fato do pintor ter considerado admirável a realização de Amanda Lear numa imagem surrealista de mulher, propiciou uma nova vestimenta para sua imagem de mulher. O encontro com o gozo do olhar de Salvador Dali promoveria a superposição da imagem do transexual Amanda Lear com a imagem da mulher que é vislumbrada como mito. A propósito da admiração do pintor por sua pessoa, Amanda Lear pôde dizer que ele sempre a fizera sentir-se como se tivesse um brilho especial, surrealista.

Da literalidade desse encontro surrealista com o mito de uma mulher que seria amada como única, extrai-se a subordinação primeira do gozo que se decifraria como transexualista: o codinome Amanda permite vislumbrar o ser extraviado de si que jazia ali: a que seria amada.

Entretanto, ainda que o mito veiculado em todo nome fale a verdade do ser, como em todo mito, sua realidade é alegórica. A configuração do ser do sujeito como “a que seria amada” designa, na verdade, a montagem surrealista da mulher que só poderia ser vislumbrada no espetáculo que deixa passar seu nome de gozo: Amanda Lear.

A contingência do nome Amanda Lear não deixa de fazer aparecer algo de singular na história da redesignação desse transexual, na medida em que, na tragédia shakesperiana, Lear foi o rei que fez suas escolhas preferindo a mentira no lugar da inverdade. A capa de um de seus mais recentes discos dá a ver o disfarce que intriga – If I was a boy.

 

Roberta Close: uma-mulher-de-verdade

Roberta Gambine, é Roberta Close, a mulher-de-verdade que passaria ao-lado do mais famoso transexual brasileiro, pois ainda que transexual, parece mulher-de-verdade. Roberta Close, por sua vez seria a mulher-de-verdade que passaria ao-lado do travesti Roberta que causava furor no meio gay carioca como um show-de-boneca. Por sua vez, Roberta, um show-de-boneca seria a mulher-de-verdade que passaria ao-lado do menino Luiz Roberto Gambine.

Luiz Roberto Gambine é o terceiro filho de um casal de classe média carioca. Desde a maternidade, o corpo do menino é afetado pelo que teria sido ideal para o Desejo da Mãe, e que desde a infância, compeliu o sujeito a um gosto mais propriamente de menina: a mãe sonhou que ia gerar uma menina, no lugar em que veio gerado o menino Luiz Roberto.
 

Ainda na maternidade o casal percebeu que a criança era diferente das outras. Seu sexo não estava bem formado, parecia que faltava alguma coisa, mas o médico os tranqüilizou dizendo que com o tempo aquela má-formação se resolveria. Maria foi para casa com uma sensação esquisita. Ela sonhara que ia ter uma menina e mais uma vez não tinha conseguido.(Rito, 1998, p. 44)
 

A família morava no bairro de Fátima (RJ), perto do centro e da Lapa boêmia. O menino cresce atormentado pela androginia de seu modo de parecer que muito se diferencia do modo dos outros irmãos. Foi uma criança muito retraída, solitária, tinha preferência pelas histórias de fadas e adorava brincar de bonecas. Passava horas no quarto da mãe, se olhando no espelho, vestida com roupas e sapatos femininos e coberta de bijuterias e maquiagens. Ali o sujeito se achava.[8]

No primário, suas tendências femininas começaram a incomodar. Era olhada com desconfiança, perseguida pelas outras crianças mais velhas que tentavam agarrá-la. No ginásio, tudo fica mais complicado com a entrada na adolescência. Sob o tormento do gozo do corpo o sujeito fica muito perturbado: tomado de horror pela própria imagem, passa a viver em pânico, com receio de ter que trocar de roupa na frente de meninos, e experimenta estranhas sensações de culpa quando olhava as meninas e não se via igual a elas.[9]

Nessa época passa a fugir da escola para transitar no trecho da praia de Copacabana freqüentado quase que exclusivamente por homossexuais e travestis. Nesse ambiente, o sujeito fica fascinado pelo que vê e, aos 13 anos (1977), se lança numa vida dupla. Ora era o menino Luiz Roberto, ora era Roberta. Passou a deixar os cabelos compridos o que acirrou o incomodo do pai com a aparência andrógina do filho. Certa vez, o pai picotou-lhe os cabelos enquanto dormia.

Aos 14 anos (1978), passando na porta do Teatro Brigitte Blair viu um cartaz com desenhos de garotos despidos, em poses femininas e de bigodes dizendo: “eles querem abertura”. O cartaz anunciava um show de bonecas (travestis). A imagem fez signo de gozo e foi interpretada como um chamado do gozo. O menino Luiz Roberto, que na infância se ressentia por gostar de bonecas, era compelido a configurar-se decididamente na boneca Roberta. A imagem fez signo de gozo e mostrou em que direção Luiz Roberto devia ir, passando a freqüentar os shows de bonecas, a Lapa, a galeria Alaska, o Posto 5, o bar Acapulco, ao lado de vários travestis, vestida de mulher como a boneca Roberta.

Mas Luiz Roberto não decifrou nessa incidência da imagem, o chamado do gozo como transexualista, uma vez que ele se confundiu com um travesti. Foi como travesti que o sujeito encontrou o amor e o sexo na adolescência. Por um lado, algo tinha sido visto na imagem que extraviava o sujeito, mas não traduzia a condição do menino Luiz Roberto como exilado naquela imagem, afinal eram garotos despidos em poses femininas. No entanto, passou ao-lado, uma outra incidência do gozo da imagem que ia fazer toda a diferença. Passou ao-lado a imagem que realmente fez signo do chamado do gozo transexualista e que se configurou como matriz do eu ideal, fisgada pelo que se enunciava como “eles querem abertura”. Passou ao-lado a imagem show-de-boneca que decifrava a compleição do ser e se inscreveria como um desejo muito enérgico de passar ao outro sexo. Luiz Roberto se entregou ao travestismo de sua imagem pelo uso de hormônios femininos que deveriam dar mais textura à aparência de mulher da boneca Roberta, de modo a configurá-la num show-de-boneca. A partir dos 14 anos, a imagem show-de-boneca colocou o sujeito rumo a um fenômeno de corpo tramado sob o travestismo da imagem que parecia muito feminina.

Essa aparência não fixava, contudo, o tormento do gozo, pois ainda era confundido com um travesti. Na errância do gozo transexualista foi muitas vezes agredido nas ruas, perseguido e ferido, enxotado, zombado, e até violentado sexualmente. Numa dessas violações, preocupou-se tanto em esconder o sexo com as mãos que facilitou o abuso sexual. Entregou o corpo, mas não rendeu a imagem.

No seio da família, sentia o chamado da compleição do ser como vivências de culpa, sensações de desamparo e injustiça, que o fizeram fugir para conhecer as bonecas de São Paulo. Resgatado, pela polícia, a pedido do pai, volta para o Rio e recebe um ultimato do pai: ou o filho abandonava a aparência de mulher definitivamente, ou seria deixado num reformatório até aos 18 anos. Expulso de casa, foi viver com a avó, mas sem poder sair de casa. O tormento vivido em razão da errância do gozo é marcado, nesse momento, por uma elação que leva o sujeito a ameaçar fugir de novo, e desta vez, para nunca mais ser visto. Isso implicou no desespero de sua mãe. Por ocasião da primeira fuga para São Paulo, a mãe caiu doente e custou a se recuperar. A nova possibilidade de nunca mais ver sua cria anunciava um tal sofrimento que a mãe decide apoiar o sujeito revelando seu desejo: “Decidi aceitá-la como era - ela era a minha filha querida - e fui bem clara com a família: no que depender de mim, vou fazer para a minha filha ser sempre Roberta” (Rito, 1998, p. 72)

O desejo do Outro assim revelado re-significa o que fez signo do gozo transexualista na imagem show-de-boneca: Luiz Roberto era a filha querida que a mãe não queria perder de novo. Naquela imagem do cartaz, que se configurou como matriz do eu ideal, passou o que teria sido a prevalência mortífera do gozo do olhar do Outro materno (na contingência da foraclusão do Nome-do-pai)[10]: o gozo do corpo passou subordinado ao transitivismo entre duas imagens - uma imagem que extravia o sujeito e outra, na qual o sujeito fica exilado.

É bem assim que as coisas se passam no nascimento do menino Luiz Roberto quando se registra, na história do sujeito que se inaugura, que o sexo do bebê estava malformado tanto quanto se registra de-lado uma outra malformação. A malformação congênita do sexo do bebê foi registrada libidinalmente por uma outra malformação. De través se registrou que o Outro Materno se decepciona por não ter conseguido gerar uma menina. Duas imagens passam assim, lado-a-lado, fisgando o corpo do menino. De um lado, o gozo do olhar que se decepciona, em razão da menina que não foi gerada, faz signo de que gerar uma menina é causa do desejo do Outro Materno. Do outro lado, o olhar do gozo veio olhar o sujeito na precariedade mesma de seu organismo malformado sob a forma do não reconhecimento de que a menina não foi gerada. O olhar do gozo destituiu a designação do sexo do menino.

As duas imagens se registram num eixo assintótico comum, que lança no infinito a causa implicada no gozo da imagem de menina a ser gerada. De um lado, essa imagem que se configurou como matriz do eu ideal, é de natureza virtual porque existe como uma faculdade, mas sem exercício ou efeito atual. Do outro lado, o olhar de gozo registrou de través a imagem real que substancializou um modo de gozo transexualista. A imagem real fez signo do flagelo do gozo transexualista, pois a menina não foi gerada ali. Nessa incidência, o chamado do gozo é decifrado por uma prática transexualista em que o gozo do corpo fica sempre fisgado de-lado.

No espaço e no lugar de extração do objeto constituído pelo olhar materno, surge o afeto impossível de suportar: retorno no corpo de um gozo que enuncia a problemática relativa ao furo no real da diferença dos sexos (F0). As vivências de estranhamento com o corpo que não poderia não ser de menina captura a angústia infantil entre o pânico e o pudor, e a culpa nos anos que antecedem a adolescência. Num testemunho sobre a angustia que nomeia a intrusão do simbólico no real, o sujeito enuncia o gozo que, desde cedo, afetou o corpo: “Vivia em pânico com receio de ter que trocar de roupa na frente dos meninos na hora da ginástica”. Por um lado, o órgão do corpo é o índice do extravio de si nesse corpo de menino. Por outro lado - “Olhava as outras garotas da minha idade e me culpava de não ser igual a elas” - a culpa relativa ao corpo sem o órgão é o índice do exílio de si no corpo que não poderia ser senão o de menina.

Aos 17 anos (1981), o travesti Roberta, que causava furor no meio gay carioca desde os 13 anos como um show-de-boneca, apareceu na capa da revista Close, designada pelos dizeres: “desisti de ser homem aos 14 anos”. Desde ai, passou a ser conhecido como Roberta-da-Close. A transformação de Roberta, um show-de-boneca em Roberta-da-Close marcava o início do refinamento iconográfico de sua imagem feminina que chegaria, aos 18 anos, a ser transformada no fenômeno do transexual Roberta-Close.

O close é uma captura da imagem focada de lado quando um olhar incide no foco de soslaio. Nesse close, na redesignação Close, o sujeito reduz a errância do gozo numa imagem, o que possibilitou desalojar do corpo o gozo transexualista, e localizá-lo fora do corpo, no gozo do olhar do espectador sobre o raro espetáculo da imagem que é o transexual Roberta Close. Roberta Close parece mulher-de-verdade; parece que uma mulher-de-verdade foi gerada. O significante Close conseguiu produzir uma redução na metonímia desenfreada do gozo transexualista, mas compromete o ser do sujeito no gozo dessa imagem que só aparece em-close.

Nesse caso, o tormento do gozo transexualista fez um arranjo sintomático em torno do nome Close. Na errância de seu gozo, o sujeito foi capaz de fazer do show-de-boneca, com o qual inaugurou sua imagem feminina, a celebração de sua imagem de mulher no espetáculo que é Roberta-Close. Em 1984, Roberta Close é considerada, pela literatura de cordel, um fenômeno do século XX; cantada por Erasmo Carlos e Roberto Carlos no Fantástico; celebrada em vários programas de TV; desfila para Clodovil; ganha o concurso Miss Brasil Gay; vira capa de revistas femininas, e desfila para Guy Laroche, Jean Paul Gaultier e Thierry Mügler na Europa, ao lado de Cindy Crawford, Linda Evangelista e Naomi Campbell. Transforma-se em assunto internacional: o jornal americano New World News publica, na primeira página: “A mulher mais bonita do mundo é homem”, se referindo a Roberta Close, o transexual que parece mulher-de-verdade. É somente nessa ocasião em que é olhada ao-lado dessas mulheres, sobre as quais não pairava nenhuma dúvida sobre a verdade do ser, que o sujeito começa a pensar na cirurgia.
 

“Foi a primeira vez que me senti integralmente mulher. Desfilando ao lado daquelas top models maravilhosas – que desconheciam por completo a minha história e me tratavam como igual, eu percebi que se quisesse podia transformar o meu sonho em realidade. E comecei seriamente a pensar em me operar para mudar de sexo.” (Rito, 1998, p. 32-33)
 

A presença real imiscuída na imagem subordina o sujeito ao extravio de si no momento em que o travestismo da imagem claudica de seu transitivismo entre a imagem real (extravio de si) e a imagem virtual (exílio de si). É exatamente no momento em que o gozo da imagem é esvaziado de seu desdobramento que a imagem pode perder a textura e fazer cair um corpo. É esse o instante da irrupção do delírio ou da passagem ao ato. A angústia, que antes nomeava, agora desencadeia a passagem ao ato.

A cirurgia de Roberta Close acontece em 1989, cinco anos após o nome Close ter fixado o tormento do gozo transexualista. É apenas nessa circunstância que o sujeito pode passar desviado dos efeitos de mutilação da castração do órgão. A cirurgia de mudança de sexo, nesse caso, precisa ser considerada no lugar exato de sua inscrição no gozo da imagem. Se a transgenitalização não implicou o extravio do gozo é na medida que suas três subordinações: a singularidade da história de Luiz Roberto em que o gozo é sempre fisgado de-lado, passando ao-lado da contingência do nome Roberta-Close que, lado-a-lado, se depositaram no espetáculo da cirurgia, pois esta re-colocou em cena o olhar de gozo, para o qual o sujeito reiterou seu acontecimento de corpo. O ensaio fotográfico pós-cirurgia ganhou uma edição especial da revista Playboy, para a satisfação do gozo do olhar do espectador que entre outras coisas, procurava averiguar se a castração tinha sido bem realizada, ou se passou, ao-lado, alguma má formação do novo sexo.

O Close foi uma contingência na vida de Roberta e uma singularidade na vida de Luiz Roberto; a acomodação dessas duas subordinações permitiu dar corpo ao gozo da imagem. O ser extraído nessa imagem fica, entretanto, subordinado à realidade virtual dessa nomeação. A instabilidade das identificações imaginárias do início da existência de Luiz Roberto foi, por uma contingência, acomodada na existência de Roberta Close. Na incidência do olhar de gozo ficou destinado um gozo do corpo em que o ser fica sempre fisgado de-lado. Na redesignação de Roberta como Roberta Close, o objeto escópico é extraído pelo gozo do espectador, que assiste ao espetáculo em que se enquadra, em close, a imagem Roberta Close.

Esse nome de gozo é um sintoma novo do gozo transexualista nesse caso. Esse nome de gozo mostra sua consistência sintomática, que é a de ser uma redesignação imaginária que não chega a redesignar simbolicamente o ser. Esse nome de gozo é uma performance, pois Roberta-Close só aparece em close. Roberta-Close é sintoma de seu próprio close. Roberta-Close permanece sendo a menina que passou ao-lado do menino Luiz Roberto. Nesse novo sintoma, a subordinação real do gozo permanece transexualista. Luiza-Gambine[11] é a mulher que tenta se realizar ao-lado de Roberta-Close. De todo modo, padece ainda de ser transexualista, pois segundo o próprio sujeito, “Luiza Gambine é o nome da alma que cansou de ser Roberta Close”. Luiza-Gambine não é senão a identidade privada de Roberta-Close.

Nessa nova economia de gozo, há algo que não deixa de se inscrever, a saber, se a captura do gozo transexualista fixou a errância do sujeito, não substancializou a redesignação do gozo como sexual. No entanto, isso não impossibilitou que tivesse lugar uma outra redesignação, o que é um feito extraordinário nesse caso. Não é possível deixar de dizer que, seja como Roberta-Close, seja como Luiza-Gambine, há ali um ser que é extraordinariamente mulher-de-verdade. O espetáculo da imagem de mulher que transita entre Roberta-Close e Luiza-Gambine deixa entrever que há ali um modo de ser que inegavelmente testemunha efeitos de uma “mulherice” extraordinária na qual a mulher-de-verdade é experimentada no trânsito entre uma identidade privada, vivida na Suíça, e uma identidade pública, vivida no Brasil.

Ao ser concedido o direito a redesignação civil, Roberta Close opta pela redesignação Roberta Gambine, afinal ela será sempre a menina que teria passado ao-lado do menino Luiz Roberto.

A certeza sobre identidade e o corpo

Os transexuais estão envolvidos numa interpretação monolítica de que, desde muito cedo na vida, estão confinados a uma vocação prematura em ser conforme o outro sexo. Se o gozo do sujeito infantil pode exprimir uma tal vocação, isso não é senão índice de que o sujeito experimenta, desde a infância, um sentido de corpo do qual se sente extraviado. A interpretação estereotipada “ser mulher prisioneira num corpo de homem” é uma invenção de identificação, orientada pelo empuxo-à-mulher que compele o sujeito na errância de ser exceção, seja reivindicando ser redesignado mulher conforme o gozo transexualista, o que é impossível, seja denunciando a ordem do mundo que padece do erro comum de confundir o órgão e o falo na diferenciação dos sexos. A identidade de gênero, nesses casos, não é senão um conceito delirante. Essa invenção de identificação é uma compleição ao nível do ser que tenta ser configurado num ato de aparência, é por isso que nesse tipo de identificação, o sujeito está subordinado ao travestismo da imagem.[12] Há uma impropriedade quanto ao sentido de corpo que parece extraviado no travestismo da imagem. É assim que quando o travestismo claudica em seus propósitos, a cirurgia é reclamada, numa passagem ao ato.

Toda a problemática do corpo sem o órgão e da ausência de significação sexual do órgão encontra refúgio no travestismo da imagem que enquadra a angústia e o estranhamento de si nessa prática. Esse é ponto em que o sujeito se ancora. Por isso mesmo é que o travestismo da imagem exige ser bem tratado a fim de cativá-lo ao ponto em que, como sintoma, pode ter efeitos surpreendentes de uma nomeação nova.

 

Questões éticas no tratamento do gozo transexualista

O tratamento psicanalítico possível do transexualismo não visa fazer concluir que esses sujeitos não devam ser operados. Mas é importante reiterar que, na diferenciação dos sexos, o órgão não é a causa do sofrimento nesses casos, o órgão só está em tudo isso como instrumento, ou seja, como significante. Se um significante serve a muitas coisas, exatamente como um órgão, isso não significa que eles possam servir igualmente para as mesmas coisas. As conseqüências não serão as mesmas se na castração utiliza-se o órgão em si, no lugar da operação via significante. A potência maior da cirurgia é a de funcionar como uma variante legal das práticas de automutilação tão freqüentes nos quadros psicóticos. Desalojar o gozo transexualista da porção do corpo na qual este gozo se localizava de forma eletiva não erradica o tormento do gozo, não promove a redesignação sexual reivindicada, e implica o extravio do gozo. Nessas circunstâncias há grandes chances do sujeito ser transformado num ser de aberração, invadido por fenômenos francamente delirantes.

Do ponto de vista da psicanálise, sabe-se que, hoje em dia, esses sujeitos se farão operar de qualquer forma, entretanto, isso não autoriza os cirurgiões a operá-los de toda forma. Ainda que a cirurgia de redesignação sexual tenha se tornado mais um gadget a ser consumido conforme a paixão de cada um, é preciso não desconsiderar que esse dispositivo não terá o mesmo efeito em todos os casos. Não é seguro afirmar que a confecção da neovagina se inscreverá no travestismo da imagem de qualquer forma. Especialmente porque na classificação do transexualismo como disforia de gênero desconhece-se, completamente, que o fenômeno da certeza sobre identidade é um fenômeno elementar das psicoses, o que significa a falta de referenciais clínicos rigorosos para feitura do diagnóstico diferencial. Assim, antes de procedimentos irreversíveis como a cirurgia, trata-se de tentar extrair em cada caso, algo que possa sugerir a captura da satisfação de modo a fixar o flagelo do gozo, de tal forma que o sujeito possa passar desviado dos efeitos de mutilação da cirurgia. Na clinica psicanalítica do transexualismo, trata-se de, subversivamente, investigar a possibilidade de fazer uso da redesignação sexual em sua função de sintoma, um sintoma no qual não se crê – não é possível crer na redesignação sexual –, mas que por isso mesmo abre a chance de dela se servir.

 

Das transformações cirúrgicas e das redesignações civis

Em se tratando da proliferação das indicações de cirurgia de mudança de sexo, é preciso lembrar que, ao lado do gozo do olhar, passa um outro gozo, o olhar de gozo, que pode vir apenas para gozar o ser castrado, nos inúmeros casos em que o sujeito ainda padecia sob a errância do gozo transexualista.

O pedido legal de redesignação do sexo e de mudança de nome no assento de nascimento vem se configurando como uma nova norma sintomática no transexualismo. Como não se trata de uma questão de litígio, a causa perdida em última instância poderá ser recolocada n vezes, até que algo passe, seja por um deslize nos procedimentos, seja pelo gozo do Outro da lei jurídica.

Transpassado o empuxo-à-redesignação e a euforia que daí o sujeito experimenta, surge algo como um resto irredutível à redesignação. Em alguns casos, esse resto implica o transexual num empuxo-à-escrever. Outras vezes pode ser o momento de uma análise. Algumas vezes pode ser o momento do pior (Tininha-Nova-York). Ou ainda, pode acontecer desse resto irredutível compelir o sujeito na errância de um delírio crônico de reivindicação. (O transexual Kim Perez, de Granada, através de um movimento que reúne os simpatizantes da causa, tem reivindicado, junto à Igreja Católica, que seja concedido o direito de casamento aos transexuais operados e, mais ainda, reivindica a erradicação do preconceito dos homens decididamente heterossexuais quanto aos transexuais redesignados).

No transexualismo, parece possível dizer que as melhores soluções estariam do lado da contingência de um nome-de-gozo que, subordinando o irredutível do gozo fizesse as vezes de uma de função de gozo. Entretanto, essa nomeação não vale como modelo de uma função de gozo, ainda que esse nome possa ser assentado judicialmente. As soluções transexualistas não servem de modelo para outros transexuais. Que seja sempre reiterada a advertência de que a redesignação cirúrgica, assim como a redesignação do nome no assento de nascimento, devem ser consideradas na singularidade de cada caso, a partir de uma interpretação que não desconsidere o real do gozo em questão.

A casuística me permite dizer que esse nome-de-gozo é uma função que, ainda que torne possível uma modalização da posição do sujeito em relação ao gozo, não predica o ser. A consistência dessa nomeação fica subordinada, de forma singular, à figuração da imagem do corpo numa cena, que não seria a Outra cena do inconsciente, mas um certo mapa ampliado do campo do exílio de si. Nessa cena, o sujeito atuaria como ator de seu exílio, à condição de se servir do travestismo da imagem. Essa cena funcionaria, assim, como um mapa de atuação restrita à temática que deu origem ao exílio de si do universo de discurso. Nessa atuação restrita, o sujeito pode aparecer na intertextualidade de sua performance à condição de que seu nome se engate numa comunidade de discurso, na qual o espectador/leitor é convocado a decifrar o enigma dessa nova forma de fazer com o sexo.

 

Referências Bibliográficas:

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_______. My Story - the asthonishing autobiography of the boy who was born to be a woman. Boston [Massachusets]: Faber and Faber. Hardcover. 1st printing:1991. ISBN 0-571-16251-7.

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DSM-IV. Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

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_______. De nossos antecedentes. Em: Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998.

_______. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como se nos revela na experiência analítica (1949). Em: Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998.

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_______. Observações sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade (1959-60). Em: Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998.

_______. O seminário, livro 7, a ética da psicanálise (1959/60). RJ: JZE,1988.

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_______. Le séminarie, livre XXIII: Le sinthome. (1975/76). Inédito.

Rito, Lúcia. Muito prazer, Roberta Close. RJ: Rosa dos Tempos, 1998.

Stoller, Robert. Sex and gender. V. 2. Nova Iorque: Sience House, 1968.

Teixeira, Marina Caldas - A mudança de sexo em close: um estudo sobre o fenômeno contemporâneo do transexualismo a partir da abordagem lacaniana das psicoses. Dissertação de Mestrado em Psicologia, área de concentração Estudos Psicanalíticos, programa de Pós Graduação da UFMG.

 

Notas:


[1] BAUDRILLARD, 1996.

[2] Na Alemanha já se discute, nos meios científicos e jurídicos, com quantos anos uma criança teria o direito de escolher o próprio sexo.

[3] O transexualismo elucida sobre o diagnóstico diferencial na intersecção de uma clínica estrutural e de uma clínica dos nós. Duas citações de Lacan sobre o transexualismo nos anos 70 assim o testemunham. Em 1971, no seminário D’un discours qui ne serait pas du semblant, Lacan sublinha o quanto a forma desses casos, que consiste num desejo muito enérgico de passar ao outro sexo, se explica facilmente e logo, quando se tem em conta a guia da foraclusão do Nome-do-pai. No seminário do ano seguinte, 1972, ...Ou pire, Lacan relaciona a paixão transexualista com a loucura de querer se liberar de um erro, o erro comum de que padece esse sujeito que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado do gozo. Nessa segunda referência, o transexualismo é compreendido em relação à posição de gozo do sujeito enquanto uma recusa da sexuação, que termina por compelir na errância de mais um engano, o de querer forçar o discurso sexual pela cirurgia. Na intervenção de uma referência sobre a outra é que o fenômeno do transexualismo pode ser designado uma invenção de identificação. Desde essa invenção é possível evidenciar os elementos da identificação que subordinam o modo de gozo, tanto quanto interrogar sobre o que é preciso tentar extrair da identificação para tratar o sintoma. Nessa circunstância explicita-se um arranjo possível entre ser e parecer que prescinde da significação fálica e que pode ter lugar nas psicoses

[4] Disjunção entre sexo e gênero – Transtorno da Identidade de Gênero ou Disforia de Gênero. (DSM IV)

[5] O transexualismo é um efeito do discurso da biologia sobre o enigma da diferença dos sexos. Sem a afirmação do arranjo multifatorial dos determinantes da diferença dos sexos, sem o isolamento dos princípios ativos dos hormônios na diferenciação dos caracteres sexuais secundários, e sem a técnica cirúrgica de mudança de sexo, nada de transexualismo. O DSM IV classifica o fenômeno como um transtorno da identidade de gênero que persiste em disjunção com o sexo. A propensão a universalizar as respostas de cada sujeito diante do mal estar com a sexualidade, não deixa de se constituir em uma oferta de identificação para o sujeito que lhe obtura a possibilidade de inventar seu próprio sintoma. Uma organização a partir do transtorno traz em si a redução do sujeito ao traço que o representa no Outro. Ela objetiva o sintoma em sua versão de mensagem, um transtorno para o Outro. É por isso que estes dispositivos são terrenos férteis para as terapias comportamentais cognitivas e para as intervenções dos artifícios da técnica: assim, os transexuais se dirigem agora aos cirurgiões e se adaptam bem às técnicas de feminização imprimidas nas hormonoterapias.

[6] O sujeito transexualista padece do erro comum pelo qual considera que o órgão é a causa de seu tormento de ter sido designado homem, e não ter sido designado mulher. Sua empreitada delirante é de ser redesignado mulher pelo discurso sexual. A loucura é querer se liberar de seu órgão, para alcançar tal intento, pois o órgão só está em tudo isso como instrumento, ou seja, como significante. Aquilo de que o transexualista quer se ver livre não diz respeito exatamente ao órgão em si, mas à função significante que se veicula por intermédio do órgão. Se há alguma subtração do órgão a ser procedida, isso não é senão uma subtração de natureza simbólica. Na castração real do órgão, o sujeito se verá livre do órgão sem, no entanto, se ver livre do gozo, tampouco sem se ver livre de ser significado de acordo com a lógica fálica. Roberta Close é considerada um transexual que parece ser mulher de verdade. Mas, a cada vez que a mídia focaliza Roberta Close, o que está sempre em foco, é o fato de que enquanto transexual esse sujeito tenha se configurado impressionantemente numa forma que parece mulher de verdade. De toda forma, o sujeito não se livra de ser objeto do gozo do outro que quer ver para crer.

[7] O empuxo-à-mulher é uma orientação do gozo que pode ocorrer nas psicoses em resposta à foraclusão do Nome-do-Pai e à ausência de significação fálica. Essa orientação dita empuxo-à-mulher é o modo como Lacan vai ler o termo assintótico de Freud: gozo que se abre ao infinito. O empuxo-à-mulher exprime uma tendência freqüente de interpretar o gozo nas psicoses rumo à feminização. Nesses casos, tipicamente de paranóia, verifica-se que o sujeito padece de uma identificação precoce e massiva com a mãe. Nessa orientação feminina do gozo, verifica-se a prevalência do registro especular, há uma relação disjunta entre a imagem do corpo e sua matriz. Mas o empuxo-à-mulher não é só uma interpretação de gozo, por sua exigência perpétua de satisfação, é uma tendência da pulsão específica à psicose. Entretanto, o empuxo-à-mulher não é um conceito que permite subsumir todos os casos de psicose e fazer o todo da psicose. Podem ser substitutos do Nome-do-Pai que faltou, o álcool, a droga, a escritura, as matemáticas, as práticas perversas, a abstinência, identidades sexuais.

[8] “Sempre fui uma criança solitária. Em casa não recebia ninguém e o que mais gostava de fazer era ir ao quarto da minha mãe. Passava horas me olhando no espelho, vestida com as suas roupas e sapatos e me achava linda. Eram os momentos mais felizes do meu dia. Ficar mexendo nas suas bijuterias, na sua maquiagem, experimentando os sapatos de salto e as sandálias femininas. Aqueles objetos tinham mais importância para mim do que as bolas e os carrinhos dos meus irmãos que não me diziam nada. Odiava usar os shorts e as camisetas, e não me sentia à vontade com os meus irmãos. Era muito oprimida em casa. Meu pai nunca aceitou a minha imagem andrógina e ficava fora de si quando me via com um brinquedo de menina. Ele me batia, dizia que eu tinha que ser como os meus irmãos”. (Rito, 1998, p. 45)

[9] “Olhava as outras garotas da minha idade e me culpava de não ser igual a elas” (Id., p. 66).

[10] Foraclusão é um conceito lacaniano para designar a não inclusão de algo no campo das representações psíquicas. Esse algo que não foi, digamos traduzido, mesmo ficando de fora, no entanto, não deixa de existir, pois o que está foracluído do simbólico retorna no real. Esse termo foi tomado por Lacan do âmbito jurídico, no qual diz de um processo sobre o qual não se pode apelar, recorrer, por se ter perdido o prazo legal. O termo indica a exclusão de uma faculdade que não foi utilizada em tempo útil. O Significante do Nome-do-Pai é esse algo foracluído, nas psicoses, que retorna no real, por exemplo, nas alucinações, nos fenômenos de automatismo corporal. A foraclusão do Nome-do-Pai implica a não travessia da epopéia edipiana, uma vez que o sujeito não é submetido à castração simbólica, não tendo, portanto, possibilidade de ter acesso à significação fálica do gozo. Por não ter acesso a essa significação, o psicótico se encontra desalojado da partilha sexual, ou seja, o psicótico é um sujeito fora-do-sexo.

[11] Antes da redesignação civil, que acontece em 2005, Roberta Close anunciava sua opção pelo nome que usava na Suíça - Luiza Gambine.

[12] Trata-se, antes de tudo de uma invenção de identificação que é índice de um retorno tópico à dinâmica perturbada do estádio do espelho[12], na qual o sujeito ficou exilado de se reconhecer na miragem que é o eu ideal. No momento em que o estado nativo do sujeito deveria se reconhecer numa imagem de corpo no estádio do espelho, o sujeito ficou exilado desse reconhecimento de si na imagem especular, e assim, o corpo aparece invadido por um Outro gozo. Lacan assinalou que se pode haver um parentesco consistente entre ser e parecer, isso está condicionado a que as identificações estejam organizadas em razão do semblante fálico (Lacan: 1972). Imaginário e Simbólico se articulam em torno da inscrição do falo, ao mesmo tempo em que o gozo do corpo é distribuído em três efeitos de gozo: mais-de-gozar, gozo fálico e gozo feminino, donde três sentidos de corpo se organizam: corpo simbólico, corpo imaginário e corpo real. No início de seu ensino, essa operação, designada ponto-de-basta, é função do Nome-do-Pai que subordina o desejo àquilo que o Outro Materno, enquanto incompleto, deseja. Desse ponto em que o Outro aparece em falta é deduzida a consistência lógica do objeto a como causa de desejo. O objeto a assinala um lugar vazio em torno do qual a estrutura se enlaça, condição prévia necessária para que o objeto seja introjetado por um investimento narcísico. (Lacan: 1963). Encoberto por uma vestimenta narcísica esse objeto passa a ser suportado por uma imagem, i(a), que é equivalente ao desejo do Outro enquanto falta. A cobertura imaginária do objeto a, cria um eixo na superfície mediante o qual o sujeito poderá se espelhar para ser. A imagem especular, eu-ideal, é o canal pelo qual se dá a transfusão da libido do corpo para o objeto, dando passagem a que o sujeito se separe da incidência mortífera do gozo do Outro, se alienando no desejo do Outro. A alienação do sujeito faz com que o ser apareça, pois o falo vem se assentar sob o resto do investimento libidinal na imagem. Por essa manobra o Outro libera os significantes da identificação. A partir de 1975, Lacan passa a designar essa operação como aquela pela qual a neurose faz do Nome-do-pai um sintoma. Desde então, assinala que o Nome-do-pai é uma das formas de amarrar real, simbólico e imaginário. A consistência sintomática desse nó tem como razão a identificação fálica, e os elementos da identificação dão passagem à inscrição do sintoma na estrutura. No transexualismo, a elisão do falo tornou impossível a extração do objeto a na passagem entre a imagem e o significante. Nesses casos, o imaginário não está enlaçado ao simbólico e há algo de real imiscuído na imagem que assombra o sujeito, que desde muito cedo na vida, testemunha o exílio de si no gozo da imagem que subordina o sujeito ao travestismo de sua imagem.