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A ética do solteirão – valor autístico do gozo para a sexuação masculina

 
 

 

Jésus Santiago
Psicólogo UFMG
Doutor pelo Departamento de Psicanálise de Paris VII
Professor Adjunto da UFMG
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
Membro da Associação Mundial de Psicanálise
jesussan.bhe@terra.com.br

 

Resumo

Enfrentar os paradoxos da vida sexual na contemporaneidade é confrontar-se com o problema de que não se capta o real apenas com os semblantes, pois, existe, nele esse gozo impossível. Lacan, formula que a reticência do sujeito masculino à alteridade do feminino se explica pelo seu refúgio no âmbito do Um fálico. A epidemia do desencontro que contamina a própria existência das parcerias sexuais, na atualidade, se suporta no fator estrutural do mal-entendido dos gozos para os dois seres sexuados.

Palavras chave: ética e diferença sexual, gozo masculino, mal-entendido entre os gozos, contemporaneidade

 

   
 

 

The bachelor’s ethics

 

Abstract

Facing the paradoxes of sex life in contemporaneousness is to face oneself with the problem that one does not capture the real only with the countenances, for it brings this impossible enjoyment. Lacan stipulates that the male subject’s reticence to the difference from the female one is explained by its refuge on the ambit of the One phallic. The epidemy of the failure to meet that contaminates the very existence of the sexual partnerships, nowadays, supports itself on the structural factor of the enjoyment misunderstanding for both sexed beings.

Keywords: ethics and sexual difference, male enjoyment, misunderstanding between enjoyments, contemporaneousness

 

 

Mais uma vez, a nossa época esbarra com a emergência de um futuro nada promissor para as relações entre os sexos. Um exemplo maior desse diagnóstico é o fato incontestável de que a instituição do casamento se vê afetada por transformações, até bem pouco tempo, inesperadas[1]. Chega-se a pensar que apenas as mulheres acreditam no casamento, sendo que esta crença é levada a tal ponto que o primeiro parceiro delas não é um homem, mas a própria instituição matrimonial. Afirma-se, entre outras coisas, que as mulheres casam com o casamento! E os homens? Diz a opinião corrente que eles continuam sendo eternas crianças, coladas à mãe e, enquanto tais, solteirões inveterados. Cultivam durante uma vida inteira um humor adolescente. Não têm a menor idéia de si próprios, não entendem patavina de seu mundo íntimo. Se encontram um amigo em algum happy hour, na passadinha regulamentar depois do expediente, são capazes de esquecer a hora do jantar, a mulher e a família com a maior displicência. Enfim, o que o senso comum afirma, sem meias palavras, é que se ainda gozamos tão mal, nos dias de hoje, é por culpa da solidão que solapa as mínimas possibilidades de encontro entre o gênero masculino e o feminino. Ou ainda, cai-se no ridículo de pensar que se tudo isto acontece é devido ao feminismo e ao seu ideal de igualdade entre os sexos: se as mulheres querem mandar, os homens, por sua vez, aproveitando-se da situação, fazem apenas o que têm vontade.

Parece-me claro que a psicanálise não pode evitar lançar o seu próprio questionamento sobre o mal-estar entre os sexos, particularmente, quando este repercute sobre as diversas formas de parcerias amorosas. Evidentemente, isto traz conseqüências para a própria instituição do casamento. Se, no passado, o casamento era um ideal, na época da inexistência do Outro, ele tornou-se um instrumento, submetido à pergunta que cada um dos cônjuges coloca para si mesmo: isto serve, ou, não serve à minha maneira de gozar? Há algum tempo atrás, o casamento constituía o destino inevitável de toda parceria amorosa, e mais ainda seu laço era, praticamente, inquestionável e indissolúvel. Hoje, ele tornou-se um instrumento para gozar: se ele nos serve…, tudo bem! Se não serve…, joga-se fora, arruma-se outro, e ponto final[2]. Por outro lado, admite-se que essa desidealização, essa banalização instrumental da relação conjugal não está em contradição com os ideais do amor-paixão, em que se agregam tanto o amor eterno quanto a paixão erótica sempre renovada. Isto faz com que essa banalização do casamento não atenue nem alivie as pressões do ideal. É por isso que a psicanálise toma o casamento enquanto um laço, que para certos sujeitos, assume um valor de cunho bastante exigente e, até mesmo, inatingível. A clínica demonstra a cada dia de que maneira essa exigência é posta em jogo em cada crise conjugal, em cada separação e, mesmo, em cada divórcio litigioso.

Com a psicanálise se pode afirmar que se os ventos da “maldição sobre o sexo"[3] continuam a soprar, eles agora se transmutam no entrincheiramento, cada vez mais crescente, do ser falante no chamado gozo do Um. Se, antes, a maldição sobre o sexo aparecia, segundo a tradição judaico-cristã, como uma força perigosa, destrutiva e negativa, uma força, inteiramente, assimilada à idéia de pecado[4], agora, essa mesma maldição sobre o sexo adquiriu novas roupagens. Não é raro, formular-se, nos dias de hoje, a maldição como sendo o efeito de contaminação próprio de uma epidemia dos tempos atuais – a epidemia do desencontro que se abate sobre os mais diversos estilos de parcerias amorosas. Há bem pouco tempo atrás, ainda, corria o rumor de que se gozamos tão mal é porque há muita repressão do sexo e, se isto acontece é por culpa da família, da sociedade e, mesmo, do capitalismo. É o que se reafirmava na interpretação freudo-marxista dessa epidemia do desencontro entre os sexos. Parece que, hoje, já estamos distantes de mais uma ficção produzida, com o intuito de racionalizar o impossível de onde provém todo o impasse das relações entre os sexos.

 

Gênero ou sexuação
 

Como a crítica freudo-marxista não tem a mesma força de antes, surgem, nos tempos atuais, outras ficções que buscam dar conta deste impossível, como é o caso do saber sociológico feminista, quase sempre municiado pela idéia de que as diversas identidades de gênero se constroem[5]. À luz de uma concepção que busca subverter a própria noção de identidade de gênero, critica-se não apenas que as relações sexuais tenham como fim a procriação ou que a família seja uma unidade natural, denuncia-se, antes de tudo, o pensamento binário, segundo o qual os sexos são somente dois[6]. Sugere-se ainda que as transformações e os deslocamentos que tanto a condição masculina como a feminina sofrem ao longo das épocas, não podem ser apreendidas pelas categorias estáticas e normativas de homem e de mulher, categorias oriundas da sociedade patriarcal e totalitária. Segundo esse ponto de vista, para se desfazer de uma visão essencialista da diferença entre os sexos – a crítica incluí a psicanálise, pois para esta existe a diferença entre os sexos –, é preciso desvincular o gênero do sexo, ou seja, desvincular o gênero de toda homologia do sujeito com o sexo biológico. Percebe-se, assim, que a inovação conceitual na interpretação sociológica atual sobre a diferença dos sexos e sobre a dominação masculina, funda-se na tentativa de definir o gênero a partir das cadeias de representações, identificações e comportamentos que permitem a construção de uma identidade sexual. Assim, tanto o gênero feminino como o masculino, a paternidade, a maternidade, o casamento, acabam funcionando como "significantes-mestres" (S1), fornecidos pelo Outro, significantes que, em última instância, explicam a emergência de um sintoma que afeta a vida sexual, ou, mesmo, um conflito causado pelo exercício, muitas vezes, conflitante da paternidade.

Para o ponto de vista da identidade de gênero, se existe mal-estar na esfera do sexual e da vida amorosa, isso ocorre não apenas porque esses semblantes que o Outro social dispõe como adequados ao masculino se tornaram anacrônicos e frágeis, mas também porque faltam aos gêneros novas representações, novas referências identificatórias. Prevalece, assim, o diagnóstico de que não é preciso o homem contemporâneo apressar-se na busca dessas novas representações, ressignificações e referências identificatórias. Goza-se mal hoje porque é difícil suportar o tempo de transição entre uma representação do masculino construída pelo modelo patriarcal e a possibilidade de conviver, temporariamente, com a escassez dessas representações, de forma que, no futuro, novas combinações e identidades de gênero sejam possíveis.

O psicanalista não desconhece o processo de mutação que incide sobre as identidades sexuais, nem tampouco negligencia que o discurso do mestre busca, por meio dos seus diversos dispositivos históricos, produzir e codificar as novas representações e os novos trajetos para a diferença entre os sexos. Ele sabe, também, que toda e qualquer tentativa de estratificar, hierarquizar e dar prioridade a uma prática sexual sobre as outras, é um procedimento que se inscreve sob as ordens do discurso do mestre[7]. Não se pode, no entanto, esquecer que tanto o heterossexual, como o homossexual, ou, alguma outra identidade sexual emergente, constituem respostas sintomáticas ao real concernente ao impossível da relação entre os sexos. Esta é a principal diferença entre a psicanálise e as teorias político-sociológicas sobre os gêneros. Para a primeira, essas identidades não são apenas semblantes construídos pelos dispositivos que agenciam sexo, saber e poder, pois é preciso admitir que a tensão estrutural entre um significante-mestre e a modalidade específica de gozo resulta de algo particular, de algo que remonta ao percurso único dos descaminhos paradoxais próprios da vida pulsional de um sujeito. Enfim, é insuficiente, para o trabalho clínico cotidiano do psicanalista, achar que há apenas semblantes acoplados aos diversos tipos de gozo. Há também o real que resulta do impossível próprio da relação sexual e, a sua necessária resposta pela via do sintoma, o qual vem suprir esse exílio de que cada um padece devido a ausência de proporção e de harmonia entre os sexos.

Enfrentar as dificuldades, os paradoxos da vida sexual, na contemporaneidade e as perspectivas clínicas futuras que se abrem, para o psicanalista, a partir daí, é confrontar-se com o problema de que não se capta o real apenas com os semblantes, pois, existe, nele, esse gozo impossível.Nesse sentido, interessa ao psicanalista virar a página da dicotomia entre o gênero e o sexo, para aceder ao capítulo magistral do ultimo ensino de Lacan sobre a diferença dos sexos, capítulo que ele mesmo nomeou de sexuação. A esse respeito, devo dizer que as elaborações do seminário Mais ainda, descortinam todo um horizonte novo sobre as parcerias sexuais contemporâneas.

É ao longo desse seminário que se toma contato com a formulação clínica de que a reticência do sujeito masculino à alteridade do feminino se explica pelo seu refúgio no âmbito do Um fálico. Além disto, afirma-se ainda que a epidemia do desencontro que contamina a própria existência das parcerias sexuais, na atualidade, se suporta no fator estrutural do mal-entendido dos gozos para os dois seres sexuados.

É verdade que Lacan levou um certo tempo para conceber esse mal-entendido, nos termos de uma discordância inerente entre o modo de gozo no homem e na mulher. Se, de um lado, considera-se que, apesar da modalidade fálica do gozo ser preferencialmente masculina, as mulheres não estão, portanto, excluídas dele, por outro, ao definir-se pela relação de identidade, o gozo fálico se apresenta como o inverso do Outro gozo, uma vez que este, aparece, no lado feminino da sexuação, como puramente contingencial, como gozo infinito, sem limites e, em última instância, diz respeito ao significante da falta no lugar do Outro S(). Em suma, se o masculino se apresenta como localizável, finito, marcado pela relação de identidade é preciso, no entanto, reconhecer que os fatores da extensão, da alteridade, do ilimitado próprios do feminino não se confundem com uma incompletude inefável.

 

O dandismo e vontade de castração inscrita no Outro

Com relação à sexuação masculina, eu diria que é no ponto preciso de um certo uso do gozo fálico que advém o traço de atualidade das suas formas de sintomas, para os homens, dentre as quais se destaca a ação pretensamente consoladora dos gadgets. É como se, por meio desses objetos – que não demandam e não desejam –, o sujeito encontrasse uma espécie de fiador sexual que garantiria alguma harmonia na sua parceria com o gozo do corpo[8]. Antes de abordar a atualidade clínica do intenso fascínio que os gadgets provocam no homem moderno, é o caso de situar um modo de gozo, tipicamente masculino, que surgiu ainda no início do século passado. Trata-se da figura masculina marcante do dândi, figura que se caracteriza pelo uso exacerbado da estratégia do semblante como uma forma de dar expressão ao seu modo de gozo. É sabido que o imaginário literário, de autores como George Brummel, George Byron, passando por Charles Baudelaire e Barbey d’Aurevilly, consagra extrema importância à figura do dândi[9].

Há um modo de gozo dândi que consiste em apresentar-se “sempre impecável, sem se curvar, superior a tudo, impassível e impossível de ser surpreendido”[10]. O modo masculino de gozo dândi implica uma disciplina severa, uma verdadeira ascese, a qual Baudelaire tornava um exemplo do heroísmo moderno, visto que, no fundo, este se efetua na órbita da pura perda do que se constitui como os ideais prevalentes. O poeta diz isto de modo explícito: “desabusado e melancólico, o dandismo seria a ultima expressão do heroísmo nas decadências”.[11] É uma ascese vã, em todos os sentidos do termo, pois mesmo o culto da imagem expresso numa vaidade sem limites é centrada no nada. Nela não há Outro do qual seria preciso assegurar a satisfação. Pelo contrário, caso seja um modo de gozo, é um modo de gozo centrado no “nada”, nesse “nada que aparece exaltado pelo fútil, isto é, pela capacidade em retirar lucro da futilidade dos pequenos nadas”. A posição do dândi repousa sobre o respeito e o cuidado com os diversos pequenos nadas, que são elevados ao valor da Coisa[12].

Talvez, se possa dizer que a figura do dândi importa porque ela é um prenúncio do lugar preponderante que a moda passa a ocupar nas sociedades contemporâneas. Tal como propõe o sociólogo, a moda, hoje, não é mais um luxo estético e periférico da vida coletiva, ela tornou-se um fator de agenciamento essencial, no interior do tecido social, fator esse que comanda a produção e o consumo dos objetos, a publicidade, a cultura, a mídia, as mudanças ideológicas e sociais. Para além das inquietações que se originam de uma sociedade devotada ao caráter obsoleto e fútil das coisas e do sentido, a moda aparece, paradoxalmente, e não sem ambigüidades, como um instrumento de consolidação da dinâmica modernizadora destas sociedades.[13]

Ao elevar os pequenos nadas ao valor da Coisa, o dândi cunha sua posição subjetiva com uma sublimação perturbadora, tendo em vista que à diferença da sublimação artística, seu produto é intransmissível[14]. Ao contrário da obra de arte, o produto do modo de gozo dândi não circula, uma vez que esse produto é o próprio sujeito e seu corpo. A obra, nesse caso, é revestimento elegante e requintado de seu corpo. É a exposição pública de seu corpo. É claro que o dândi circula, viaja. Foi o que, por exemplo, fez Byron, pois, era um artista e um poeta. O intuito em evocar, aqui, a figura do dândi é porque seu modo de gozo ilustra a sublimação do homem celibatário e individualista, uma sublimação estéril – nascida, no início do século XIX –, que aponta algo dos sintomas do masculino que busca fixar-se nos tempos em que não existe mais o Outro para fazer a lei.

Se o Outro desaparece é a própria crença nele que se mostra ausente nas manifestações e estilos de vida atuais. E isto tem conseqüências, pois o que situa um determinado modo de gozo é o Outro. Para que o sujeito possa se situar, se localizar, com relação ao gozo, é preciso o Outro, é preciso sempre que o Outro se faça presente. Nesse sentido, há sempre uma espécie de situacionalidade fundamental do gozo, uma relatividade do gozo para com o Outro. Porém, para situar o nosso modo de gozo em relação ao Outro, é necessário ainda estar, de alguma maneira, separado dele. É o próprio Lacan que adverte, para quem quer estar separado dele, é preciso abrir a via de experimentar não a demanda do Outro, mas, sua vontade de castração[15]. Vê-se, portanto, que o Outro apresenta faces distintas: uma coisa é o Outro da demanda, outra é a vontade de castração que, nele, se manifesta. Ir além do circuito da demanda do Outro, supõe que o sujeito confronte-se com o que foi, para ele, a incidência singular dessa vontade de castração, interpretando-a. É sabido, então, que o que mantém um modo de gozo no lugar, para que não haja descaminhos, desatinos, é preciso situar o laço particular do sujeito com relação a vontade inscrita no Outro.

A esse propósito, é esclarecedor o comentário que faz Jacques-Alain Miller, sobre o parágrafo final de “A subversão do sujeito e a dialética do desejo”, em que se discute os dois modos de gozo, vistos como dois modos extremos de reposta ao que se instala como a vontade de castração pertencente ao Outro[16]. Essa resposta do sujeito ao Outro desejante – exista ele ou não –, pode consistir em ir até o final na sua própria realização como objeto, ou, levar às últimas conseqüências a exaltação narcísica do eu. Para a primeira destas soluções à vontade de castração do Outro, que se presentifica na realização de si como objeto, toma-se como exemplo o que ele próprio designa como o “masoquismo objetal”. Trata-se, precisamente, da mumificação que se prescreve na iniciação budista, e que se localiza para-além do narcisismo. Como se sabe, exige-se daquele que se inicia na ascese budista ultrapassar o plano da imagem para atingir um status propriamente mumificado.

Segundo Miller, nesta mesma passagem dos Escritos, Lacan se refere a uma segunda via de solução que, também, se constitui como um outro modo de gozo, que, nesse caso, se caracteriza pela devoção a uma causa perdida, devoção denominada “narcisismo supremo”. O termo narcisismo adquire, aqui, uma tonalidade inteiramente particular, uma vez que, enquanto modo de gozo, ele é obtido por meio de um sacrifício que se consuma pela crença em valores que perderam a força e a consistência que já possuíram antes. O inusitado e o mais belo, nisso tudo, é que se sacrifica pelo que se mostra destituído de valor e de sentido. Não é sem razão o fato de que Lacan tenha feito, desta segunda via um traço marcante da modernidade. Isto se exemplifica pela obra do escritor Paul Claudel, tendo em vista que o autor revaloriza e restitui a dimensão trágica, numa época em que se assiste a uma nítida dissolução das circunstâncias para a enunciação do discurso trágico.

Ora o dandismo é um modo de gozo masculino que apresenta uma estratégia bastante particular com relação ao Outro, com relação à vontade de castração inscrita no Outro. Em primeiro lugar, ele se constitui como uma “aristocracia de imitação”, embora talvez seja a única possível, interessante, inventiva, desde que Deus está morto, para buscar uma referência em Nietzsche. É um modo de gozar onde não mais se procura alegrar a Deus. Para que o gozo não se extravie em todos os sentidos e direções, situa-se o gozo em função de um Outro, que, embora não exista, ambiciona-se, de algum modo, preservá-lo enquanto um lugar vazio. Em segundo lugar, o dândi ocupa uma posição de sujeito que encarna o controle, a vigilância, segundo uma perspectiva em que prevalece o que Michel Foucault designa como “preocupação de si”. Esta ocupação excessiva com o si mesmo é levado a um limite tal, que o único dever que se impõe, ao dândi, é de “nunca se deixar levar” pelas ofertas do Outro da civilização. Eis, aqui, então, a maneira especial pela qual emerge a recusa do dândi, visto que é uma recusa em se submeter ao Outro da demanda[17].

Nesse ponto preciso, compreende-se porque o dandismo é uma via de satisfação da chamada vontade de castração inscrita no Outro, ainda que a crença nesse Outro, mostre-se fortemente abalada. É a prova mais cabal de que uma tal vontade pode se fazer presente, ainda que não se acredite mais no Outro. Apesar do seu descrédito no Outro, o dândi encontra um meio de resposta à vontade de castração presente no Outro, a partir de sua localização no âmbito do gozo. É por isso que se pode classificá-lo no interior das condutas de impassibilidade. Em outros termos, a impassibilidade do dândi inscreve-se no plano da “ética do solteirão”, da qual Lacan diz, em “Televisão”, que tomam ao pé da letra a não-relação com o Outro[18]. Nesta conduta de impassibilidade, observa-se, como se disse antes, uma ascese que se qualifica pelo desinvestimento, na medida que se trata de encontrar algum recurso para evitar o sofrimento e, de alguma maneira, por esse meio colocar o gozo fora do jogo. Em suma, o dândi é um personagem que empunha uma estratégia cujo intuito último é atingir o gozo do Um pela via de uma separação com as ofertas do Outro, sobretudo, se levarmos em conta a separação de seu corpo munido pela elegância, ao mesmo tempo, fabricada e requintada.

 

A ética do solteirão

É possível também recorrer à figura do celibato para caracterizar o essencial desse modo de gozo solitário do homem moderno, que se exprime pela devoção dedicada a esses objetos também fúteis que são os objetos que, por obra da ciência, povoam o mundo. No fundo, se o homem lhes dedica tanto interesse, é porque, neles, ele capta algo do gozo do corpo. Esses objetos tornam-se, pouco a pouco, órgãos necessários, ditando ao sujeito novas funções e impondo-se como próteses suscetíveis de anular a relação singular do humano com o desejo. A indagação que surge da constatação dessa adesividade libidinal dos homens a esses objetos vai muito além do problema do aumento do celibato na modernidade, para exprimir-se enquanto uma pergunta sobre quem é o outro ou, ainda, quem é o parceiro desses sujeitos.

O próprio Lacan formula que o solteirão ergue, para si, uma dimensão ética, tendo em vista a ousadia de sua ação em responder pela não-relação com o Outro, principalmente quando se contenta em tomar tal relação ao pé da letra.[19] Tomar ao pé da letra essa relação com o Outro é considerá-la segundo a verdadeira face em que ela se apresenta para o ser sexuado, a saber, o Outro sexo. Logo, o celibatário evita o encontro com o parceiro sexual por meio de uma ética que promove um curto-circuito na relação com o Outro, ou, mais precisamente, é alguém que não consente qualquer possibilidade de estabelecer uma comunidade íntima e durável com o Outro sexo. Pode parecer inteiramente paradoxal que se tenha, antes, formulado uma questão sobre a parceria ou, ainda, sobre o outro desse homem celibatário. Pela própria definição do termo celibatário, era de se esperar que se tratasse de um sujeito que excluísse, a priori, o estabelecimento de qualquer tipo de aliança com um parceiro. Porém… não! Eis aí, então, o paradoxo: o celibatário, tal como se pode depreender da elaboração de Lacan sobre a sexuação masculina, é alguém que se revela casado com o gozo do corpo, alguém que escolhe como parceiro sexual: o Um fálico. O sujeito estando, assim, casado com seu órgão, valendo-se desta forma de gozo com seu parceiro "parassexuado"[20] rechaça qualquer laço com uma mulher. Aliás, como se refere Lacan em A terceira, a vertente propriamente parassexuada dessa modalidade paradoxal de parceria se ilustra, aqui, pelos gadgets ready made.

Do ponto de vista de seu modo de gozo, conclui-se que o verdadeiro parceiro do celibatário não é o Outro e, sim, o que se substitui a este enquanto objeto (a). Para Miller, exprime-se, neste ponto preciso, a principal característica da contemporaneidade que é esse transbordamento do parcial, do que se constitui como marca do não-todo, em suma, o extravasamento do objeto (a) face ao progressivo desaparecimento do grande Outro (A)[21].

Nesse ambiente de inexistência do Outro, evidencia-se a tendência marcante do sujeito a fixar-se do lado do gozo do Um, e isso ocorre por causa de seu encontro com uma das diversas formas desse condensador de gozo que é o objeto (a). No Mais ainda, Lacan afirma, a esse propósito, textualmente : "[…] o parceiro desse eu que é o sujeito, sujeito de qualquer frase de pedido, é não o Outro, mas o que vem se substituir a ele na forma da causa do desejo — que eu diversifiquei em quatro […], em objeto da sucção, objeto da excreção, o olhar e a voz. É enquanto substitutos do Outro que esses objetos são reclamados e se fazem causa de desejo"[22]. Nesse sentido, a verdadeira face do parceiro do sujeito celibatário são esses substitutos do Outro, no âmbito do gozo, são esses objetos — é o caso da voz na ficção cinematográfica referida — que se constituem como a própria marca da perda de gozo para o ser falante.

Se o celibatário responde pela não-relação com o Outro, ele o faz porque consegue colocar o objeto (a) no lugar daquilo que ele não pode perceber no Outro. Logo, a característica essencial da vertente masculina da sexuação é fazer com que, em alguma parte, o objeto (a) seja não apenas um ponto de partida, mas também o "um só do macho — o papel do que vem em lugar do parceiro que falta"[23].

Em função desse parceiro que falta, o circuito da fantasia, muitas vezes complexo e sinuoso, edifica-se e, por essa mesma razão, o homem só tem acesso a uma mulher pela via do objeto mais-de-gozar. Para Lacan, é patente que, do lado do homem, "aquilo com o que ele tem a ver é com o objeto (a), e que toda a sua realização quanto à relação sexual termina em fantasia"[24]. Essa vicissitude, extremamente singular, do modo de gozo no masculino é o que permite esboçar uma resposta problema assinalado, no início, sobre a obstinação do homem em querer encontrar um parceiro que funcionaria como um "fiador sexual”. É possível postular-se que a única caução que um homem pode encontrar numa parceria é o fato de uma mulher consentir em ocupar a posição de objeto (a), tornando-se, assim, flexível às solicitações da fantasia do parceiro.

Por outro lado, ao se insistir em que o objeto (a) aparece como ponto de partida, é-se levado a considerar a máxima de que o sujeito masculino só deseja em consonância com o dispositivo de sua fantasia. É isso que permitiu a Lacan a escritura do matema F(a), cuja interpretação recai sobre uma certa homologia entre o desejo masculino e o desejo fetichista, sendo que, no primeiro caso, se destaca o valor de gozo da série de objetos que pode localizar-se no lugar desse objeto situado entre parênteses.

Com efeito, quando se circunscrevem os objetos entre parênteses, busca-se equacioná-los — tal como o objeto pulsional ou objeto parcial — enquanto uma resultante da vontade de gozo própria da fantasia no masculino. Miller, por sua vez, propõe uma reescritura do matema lacaniano do desejo masculino, de forma a obter o matema da fantasia masculina  — S à F(a) —, na medida em que o gozo masculino se sustenta de semblantes falicizados[25].

Afirma, ainda, que o sujeito masculino, ao atravessar os distintos níveis de sua fantasia, experimenta, no percurso da análise, uma espécie de aglutinação dos termos dessa fórmula, cujo efeito é um intenso reforço da função F. Ocorre, assim, uma intensa impregnação da fantasia nas formas de gozo do masculino, em que, às vezes, longe de se permitir a travessia do lado do desejo masculino, se observa, ao contrário, uma compressão dela. Essa impregnação do gozo fálico no sujeito masculino tem como contrapartida o próprio processo de subjetivação do órgão genital, no qual se verifica, com freqüência, o sentimento de superioridade do proprietário em face de seus bens e posses. Percebe-se facilmente esse fenômeno na clínica, tendo-se em vista que o chamado gozo do proprietário funciona sob o crivo de uma performance, em que se pode contabilizá-lo, acumulá-lo, compará-lo, vangloriá-lo e, mesmo, exibi-lo.

O proprietário, porém, não está imune ao fato de que possam, de uma hora para outra, retirar-lhe seus bens. Isso faz com que o universo subjetivo do proprietário se mostre bastante permeável à prudência e ao medo, que, visivelmente, contrasta com o lado intrépido e sem-limites da posição feminina. É a exaltação do gozo fálico que explica também que o sujeito masculino seja levado a proteger-se da impotência por meio da agressividade, pois é patente que, no momento em que é incitado a dar, ele age como se fosse vítima de um roubo. A tal ponto, que lhe resta, por outro lado, agarrar-se à saída autista com o gozo, mantida como um refúgio que possibilita reservar, para si, suas pequenas posses.

É evidente que esse falocentrismo do proprietário torna o homem, um ser pesado, estorvado, embaraçado pelo ter. O ter é um estorvo e, como o sujeito tem algo a perder, está condenado, como se disse, antes, à prudência. Isto quer dizer que ele é fundamentalmente medroso. E, se vai à guerra, é para fugir das mulheres, para fugir do buraco da castração[26]. Assim, o homem não existe sem semblantes, porém são semblantes para proteger seu pequeno ter. É exatamente nesse ponto que Lacan pôde colocar os homens do lado do sintoma e as mulheres do lado da devastação. Se a resposta do homem à castração é fazer de uma mulher um sintoma, é porque enquanto proprietário que tem horror à perda, esse sintoma tem um nome: agarrar-se aos semblantes para evitar o amor.

 

Referências Bibliográficas

[1] “Desde o início da década de 1960, testemunhamos uma mudança dramáticas nas unidades humanas. O casamento tornou-se uma variável, no sentido social e não apenas no estatístico. Ele não está· simplesmente declinando. Mais do que isso, tornou-se um fenômeno variado nas sociedades ocidentais e entre elas”. THERBORN, Gran. Sexo e Poder: a família no mundo 1900-2000. SP: Ed. Contexto, 2006, p. 287.

[2]THERBORN, Gran. Op. Cit., p. 291.

[3] “Nenhuma efervescência [...] seria capaz de suspender o que ele atesta de uma maldição sobre o sexo, evocada por Freud em seu Mal-estar”. LACAN, Jacques. (1973).Televisão. Em: Outros escritos, RJ: JZE, 2003, p. 530.

[4] “As noites cristãs de sexualidade irão pouco a pouco, apreciar o ser humano desligado do mundo físico. O calor genitalis, o espírito abrasador desatrelado no ato sexual, já não era tratado, como no mundo pagão, com a antiga reverência. A sexualidade deixa de ser encarada como uma energia cósmica que ligasse os seres humanos aos rebanhos férteis e as estrelas flamejantes. Nada é mais acentuado do que a severidade com que os bispos do Ocidente latino passaram a censurar as ocasiões em que a se podia constatar que o animal e o humano se uniam”. BROWN, Peter. Corpo e sociedade- o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. RJ: JZE, 1990, p. 355.

[5] Apesar da crítica radical da hegemonia da heterossexualidade, a autora problematiza os pressupostos básicos da sociologia do gênero como É o caso da categoria de identidade e a maneira usual em que, nesse‚ âmbito, se compreende a construção dos gêneros sexuais. BUTLER, Judith. Corpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2002, p. 27.

[6] Além de admitir que a “regulação binária da sexualidade suprime a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe a hegemonia heterossexual, reprodutiva e medico-jurídica, a autora é contra toda e qualquer perspectiva “fundacionista” para uma política da sexualidade. Sua perspectiva pós-identitária.É levada a tal ponto que o próprio uso de um “nós” feminista é recusado como uma construção fantasística que nega a complexidade e a indeterminação de todas as configurações possíveis dos gêneros e dos corpos. BUTLER, Judith. Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade. RJ: Civilização, 2003, p. 41.

 

[8] LACAN, J. La troisième. Lettres de l’École Freudienne – bulletin interieur de l’EFP, 1975, n. 16, p. 203.

[9] “árbitro da moda, déspota do espírito, amante da beleza, o dândi para transformar, ele próprio, em obra, ponto de partida e ponto de chegada de um circuito egoísta, genial e luminoso. Ele se cria, se fabrica, se mostra, sempre o mesmo e sempre superior, querendo impor a diferença de sua presença, a singularidade de sua pessoa, sem utilizar outras vias que não seja a da elegância e a da conversa.” COBLENCE, Françoise. Le dandysme – obligation d’incertitude. Paris: PUF, 1988, p. 9.

[10]MILLER, J.-A. (1994-95). Silet. RJ: JZE, 2005, p. 156.

[11] BAUDELAIRE, C. Le peintre de la vie moderne. Oeuvres completes Paris: Gallimard-Plèiade, 1976, t. 2, p. 710-711.

[12]MILLER, J.-A. (1994-95). Op. Cit., p. 157.

[13] LIPOVETSKY, Gilles. L’empire de l’Éphemère. Paris: Gallimard, 1987, p. 21.

[14] MILLER, J.-A. (1994-95) Op. Cit., p. 157.

[15] LACAN, J. (1960) Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano. Escritos. RJ: JZE, 1998, p. 841.

[16] MILLER, J.-A. (1994-95) Op. Cit., p. 157-158.

[17] Id., Ibid., p. 157-158.

[18] LACAN, J. (1973), Op. Cit., p 539.

[19] Id., p. 539.

[20] LACAN, J. La troisième. Lettres de l’École Freudienne – bulletin intérieur de l’EFP, 1975, n. 16.

[21] LAURENT, E. ; MILLER, J.-A. L’Autre qui n’existe pas et ses comitês d’Éthiques. L’orientation lacanienne. Cours du 21 mais, 1997. (Inédit).

[22] LACAN, J. (1972-73) O seminário, livro 20, Mais ainda. RJ: JZE, 1992, p. 171.

[23] Id. Ibid., p. 85-86.

[24] Id., Ibid., p. 116.

[25] MILLER, J.-A. Des semblants dans la relation entre les sexes. La Cause freudienne. Revue de Psychanalyse de l’ECF, Paris, n. 36, mai 1997, p. 11.

[26] MILLER, Jacques-Alain. Des semblants dans la relation entre les sexes. La Cause freudienne. Revue de Psychanalyse de l’ECF, Paris, no. 36, p. 11, mai 1997.